A violência parece resultar de uma tentativa de restabelecer o poder masculino supostamente perdido devido às conquistas femininas

Cleiton da Silva Rodriguês e Renata Wirthmann

Especial para o Jornal Opção

O que é um homem? Significantes como provedor e viril são, habitualmente, utilizados para definir um homem. Esses e outros significantes nos apresentam uma masculinidade estruturada a partir de estereótipos, que parecem ter o objetivo de determinar como deveria ser o homem-ideal na sociedade. Entretanto, o avanço dos estudos feministas tem impulsionado a quebra desse ideal e, no lugar dele, assistimos a uma espécie de “crise da masculinidade”, na qual esses estereótipos de masculinidade não são mais suficientes para balizar como os homens devem agir diante das novas configurações e direitos conquistados pelas mulheres.

Tais constatações nos levam a duas questões. Em primeiro lugar, supondo uma construção subjetiva sustentada por estereótipos, quais seriam as consequências emocionais sobre um sujeito quando condenado a ter que se definir por tais imperativos categóricos, na busca por uma espécie de masculinidade ideal? Em segundo lugar, quais as consequências frente a impossibilidade de sustentar-se por estereótipos diante da inquestionável queda de sentido destes na contemporaneidade?

Situações emergenciais e de exceção, como a pandemia, evidenciam, de modo ainda mais explícito, algumas consequências investigadas pelas duas questões acima e nos convocam ao estudo acerca da masculinidade. Dentre elas, o aumento do índice de violência doméstica e de abusos sexuais durante o período de distanciamento social.

Desde o início da pandemia, devido ao distanciamento social, famílias têm passado períodos mais longos juntas, simultaneamente a esta constatação, assistimos aos indicadores de violência doméstica aumentar de forma significativa. Segundo índices do projeto Celina, em São Paulo, as denúncias de violência doméstica tiveram um aumento de 30% em março, com relação a fevereiro deste ano, e no Rio de Janeiro esse aumento chegou a 50%. Em todo o território nacional, em março, o número de denúncias recebidas pelo canal Ligue 180, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), aumentou 17,9%, em comparação com o mesmo período de 2019. No mês seguinte, em abril, o crescimento foi de 37,6%. A partir desses dados, é possível inferir uma relação entre a primeira pergunta — o que é um homem?— e os dados de aumento de violência, pois a maior convivência entre os membros das famílias, devido a pandemia, tende a reforçar os papeis sociais estereotipados de cada um, bem como suas diferenças.

Essa imagem primeva de homem pode ser encontrada no mito da horda primitiva, formulado por Freud em “Totem e Tabu” (1913), que relaciona esse ideal masculino à figura de um pai mítico que teria a vantagem sobre todos os outros homens, por ser o mais soberano e viril dentre todos. Essa construção descreve a imagem fantasística de um homem viril, soberano e não castrado, que governaria os homens e possuiria todas as mulheres. Esse poder absoluto, com o passar do tempo, incomodaria e causaria inveja nos outros homens, que desejariam ocupar tal lugar. Todos juntos, revoltosos, se uniriam para assassinar o Pai, mas descobririam que esse lugar não poderia ser ocupado por nenhum deles, pois um jamais cederia o poder ao outro e, no esforço de vir a ocupar tal lugar, se matariam. O resultado desse mito do Pai primitivo é a descoberta da castração, ou, ainda, da interdição e do limite. O Pai morto se tornaria a Lei. Outro importante resultado desse mito é a constatação do ressentimento frente a castração e o desejo, interditado, de uma virilidade sem limites.

Situações limítrofes da sociedade, como uma guerra ou uma pandemia, parecem colocar muitos homens tentados a fazer valer essa fantasia primitiva de uma virilidade sem limites. Seu retorno, em forma de violência, parece uma tentativa de restabelecer o poder, supostamente, perdido, devido as conquistas femininas e o novo papel que a mulher passou a exercer na sociedade. Para este homem primitivo, caberia então, dominar sua mulher para poder assumir uma masculinidade plena e sem limites.

Entretanto, alguns dados estatísticos nos mostram que imputar tais estereótipos aos meninos em desenvolvimento também é potencialmente adoecedor também aos homens. Podemos inferir os danos emocionais da masculinidade, a partir do imperativo de viril, provedor e violento, a partir de três dados importantes: homicídio, suicídio e drogas.

Quanto a homicídios: segundo o Estudo sobre homicídios das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), publicado em 2014, 95% dos assassinos no mundo são homens e 82,1% das pessoas assassinadas também são homens.

Quanto a suicídios: a taxa de suicídio entre homens adultos no Brasil é quatro vezes maior que das mulheres. Isso significa que, de todos os suicídios registrados no Brasil em 2019, 75% eram de homens.

Por fim, a drogadição. Os homens são três vezes mais propensos que as mulheres a usar drogas ilícitas, como indica o Relatório Mundial das Drogas 2018. Na cracolândia em São Paulo, por exemplo, 79% dos usuários são homens.

Importante ressaltar a responsabilidade do sujeito em escolher repetir ou recusar o que está preestabelecido pela sociedade quanto à masculinidade. Ou seja, para que os estereótipos se sustentem na nossa cultura, é necessário que o sujeito compactue com eles. Esse pacto, de assimilação e repetição dos estereótipos masculinos, firmado entre os homens, tem, como objetivo, lhes fornecer certos traços que os classifiquem como tal. Apesar desse pacto, esse ideal de masculinidade se torna cada dia mais insustentável e a violência parece ser uma das reações mais abruptas e imediatas frente a queda desse homem estereotipado. Talvez possamos pensar que se, desde Simone de Beauvoir, ninguém nasce mulher, torna-se mulher, o mesmo poderia vir a ser pensado na construção do masculino. Ninguém nasce homem, torna-se homem e, portanto, esse vir a ser pode ser reconstruído a partir de outros novos significantes, que não viril, provedor e violento.

Cleiton da Silva Rodriguês é aluno do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (Ufcat); Renata Wirthmann é psicanalista, professora do curso de Psicologia da Ufcat e colaboradora do Jornal Opção.