Vencedores de prêmio Nobel explicam como inteligência artificial pode acentuar a desigualdade social
16 dezembro 2024 às 16h49
COMPARTILHAR
Salatiel Soares Correia*
Daron Acemoglu e Simon Johnson, laureados com o prêmio Nobel de 2024, apresentam uma análise profunda sobre mil anos de história, destacando o papel da inovação tecnológica no desenvolvimento da sociedade. Os autores partem da ideia central de que, embora a tecnologia tenha o potencial de melhorar a vida das pessoas, ela frequentemente serve como ferramenta para perpetuar desigualdades, ao invés de promover o progresso de maneira equitativa.
Acemoglu e Johnson argumentam que a inovação tecnológica tem sido amplamente idealizada, quase como um fetiche. A crença comum de que a tecnologia é intrinsecamente boa e benéfica para todos é desafiada pelos autores, que mostram como as elites frequentemente utilizam avanços tecnológicos para consolidar poder e riqueza. Em vez de redistribuir os benefícios do progresso, muitos sistemas tecnológicos são desenhados para reforçar a concentração de recursos e a exclusão de grandes parcelas da população.
Os autores oferecem uma visão histórica sobre como a tecnologia tem sido usada para moldar economias e sociedades. Desde a Revolução Industrial até as plataformas digitais da atualidade, fica claro que, enquanto alguns avanços melhoraram a produtividade e as condições de vida, outros criaram dinâmicas de exploração e aprofundaram desigualdades.
Uma das principais questões abordadas no livro “Poder e Progresso” é a criação de uma sociedade dual, onde a tecnologia exacerba a divisão entre ricos e pobres. Esse fenômeno, evidente tanto no passado quanto no presente, mostra que os ricos frequentemente têm acesso privilegiado às inovações, o que lhes permite acumular ainda mais riqueza. Por outro lado, os pobres enfrentam uma maior precarização do trabalho e exclusão dos benefícios trazidos por esses avanços.
Os autores mostram, por exemplo, como a automação e a inteligência artificial têm eliminado empregos de baixa qualificação, enquanto concentram ganhos financeiros em um pequeno grupo de empresas e indivíduos. Assim, a tecnologia deixa de ser uma força transformadora para o bem comum e se torna um mecanismo de perpetuação da desigualdade.
Ao analisarmos os argumentos de Acemoglu e Johnson, torna-se claro que o debate sobre inovação tecnológica não pode se limitar ao progresso técnico. É crucial questionar quem se beneficia desse progresso e quem é deixado para trás. O desenvolvimento tecnológico exerce um impacto profundo no imaginário coletivo, frequentemente idealizado como a solução para os problemas de uma nação. No entanto, essa visão simplista ignora as complexas realidades por trás da implementação tecnológica, que tanto pode promover inclusão quanto aprofundar desigualdades.
A história da Coreia do Sul é um exemplo notável de como a tecnologia pode impulsionar uma sociedade. Após enfrentar enormes desafios nos anos 1950, incluindo uma economia devastada e altos níveis de pobreza, o país investiu maciçamente em educação e planejamento estratégico, alinhando governo e sociedade em um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Esse esforço transformou a Coreia do Sul em uma das economias mais inovadoras do mundo, com crescimento tecnológico integrado a uma sociedade mais educada e inclusiva.
Por outro lado, em países cujas elites carecem de compromisso com o bem-estar coletivo, como o Paraguai e algumas nações africanas, o desenvolvimento tecnológico não alcança o mesmo efeito transformador. Nesses contextos, as inovações frequentemente intensificam as desigualdades, reforçam estruturas de poder desiguais e podem até causar impactos ambientais negativos, sem trazer inclusão social significativa. Essa disparidade ilustra que a tecnologia, por si só, não é intrinsecamente boa ou equitativa; seu impacto depende de como é implementada e por quem.
Daron Acemoglu e Simon Johnson abordam essa questão em Poder e Progresso, uma análise histórica abrangente sobre o papel da inovação tecnológica ao longo de mil anos. Eles desmontam o mito de que o progresso tecnológico beneficia a todos igualmente, mostrando que, na prática, a tecnologia é frequentemente usada como ferramenta de dominação política.
Desde a Revolução Industrial até a era das plataformas digitais, os autores destacam como elites têm utilizado avanços tecnológicos para concentrar poder e riqueza, em vez de redistribuir os benefícios do progresso. Portanto, o avanço tecnológico não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas como uma ferramenta que precisa ser orientada para o benefício coletivo e equitativo da sociedade.
O descaroçador de algodão
No livro “Poder e Progresso”, Daron Acemoglu e Simon Johnson apresentam uma análise histórica do impacto da inovação tecnológica, destacando seus efeitos sociais e econômicos. A inclusão do descaroçador de algodão neste contexto histórico reforça a argumentação dos autores sobre como a tecnologia molda sociedades, frequentemente beneficiando elites e exacerbando desigualdades.
O descaroçador de algodão, inventado por Eli Whitney em 1793, revolucionou a produção de algodão, tornando o processo de separação das sementes mais rápido e eficiente. Esse avanço teve efeitos significativos tanto na economia quanto na sociedade. Economicamente, o descaroçador tornou o algodão altamente lucrativo, transformando-o na principal cultura de exportação do sul dos Estados Unidos.
A invenção estimulou a expansão das plantações, aumentando a demanda por terras férteis e gerando um ciclo de crescimento econômico regional. Além disso, proporcionou matéria-prima abundante para a nascente indústria têxtil britânica, fortalecendo o comércio internacional. Por outro lado, os impactos sociais da tecnologia foram profundamente ambíguos. Em vez de reduzir a dependência da mão de obra escravizada, o descaroçador aumentou a demanda por trabalhadores escravizados para plantar e colher algodão em grande escala.
Esse avanço tecnológico, ao invés de aliviar condições sociais, aprofundou uma das maiores desigualdades da história humana. A invenção também consolidou o poder econômico e político das elites proprietárias de terras e escravizados no sul dos Estados Unidos, utilizando a inovação para perpetuar seu domínio. Ao avaliar o descaroçador de algodão no contexto do argumento central de Poder e Progresso, percebe-se que a tecnologia não é intrinsecamente benéfica.
Embora tenha impulsionado setores econômicos, seu uso reforçou sistemas de exploração e desigualdade. Essa análise ressalta a tese de Acemoglu e Johnson de que os impactos da tecnologia dependem de quem a controla e de como ela é implementada. Assim como a automação e a inteligência artificial na contemporaneidade, o descaroçador de algodão exemplifica como avanços tecnológicos podem ser usados para concentrar riqueza e poder, ao invés de promover inclusão e justiça social. Ele é um lembrete histórico de que o progresso técnico, quando desvinculado de objetivos equitativos, pode perpetuar sistemas de opressão, destacando a importância de se questionar o verdadeiro objetivo e impacto das inovações tecnológicas.
*Salatiel Soares Correia é Engenheiro e Administrador de Empresas. Mestre em Energia pela Unicamp, escreveu 8 livros relacionados aos temas: Energia, Economia, Política e Desenvolvimento regional.