Uma carta de Manuel Bandeira para a alemã Gertrud Bühler

17 janeiro 2015 às 10h31
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Gertrud querida,
Tenho recebido muito chocolate, mas carta nenhuma. Gosto muito de chocolate, os que você mandou são deliciosos, mas gosto ainda mais de suas cartas.
Tenho andado muito ocupado traduzindo — imagine? Mireille, de Mistral. Tradução em verso. Nunca fui grande apreciador de Mistral, mas a proposta era tentadora e eu traduzo com prazer, acho uma boa ginástica. Mas a princípio quase desisti, porque o primeiro verso do poema é: “Cante uno chato de Prouvènço”. Quer dizer: “Canto uma moça da Provença”. Em provençal “moça” é “chato”. Que língua! Já traduzi o primeiro canto. São onze!
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Moussy* ficou encantada com a sua carta. Já lhe respondeu? Ela anda muito sem animação para os trabalhos. Ainda não começou o seu “blotter”. Começa as coisas e não acaba. A falta de memória tem se agravado e traz sempre complicações.
Felizmente arranjou-se uma empregada (por Manolita) que tem boas maneiras, cozinha mais ou menos, mas está se dando bem com ela. E Jo em Bruxelas? Moussy está entusiasmada, sentindo Jo mais perto, porque Bruxelas lhe é muito familiar., era o petit Paris da família quando Moussy era menina e mocinha.
O calor aqui já começou: quando chegará o tempo de fazermos troca de frio e calor entre latitudes? Escreva, minha bela. Tenho saudades de você, dos beijos intermináveis, dos olhos muito sérios e de repente o sorrisinho inefável…
Com muito carinho
M.
Nota da revista “Época”
Moussy é “holandesa com quem Bandeira manteve um relacionamento de 57 anos”.
Notas do Jornal Opção
1 — Moussy era Frederique (Frédy) Henriette Simon Blank, casada com o brasileiro Carlos Blank. Quando ela morreu, Manuel Bandeira escreveu para sua filha, Joanita: “Depois da perda de Moussy eu vivo numa tristeza de morte. Não tenho mais o gosto que tinha: perdi o gosto da leitura e até da música. Acho tudo pau”. O trecho da carta está no livro “A Trinca do Curvelo — Manuel Bandeira, Ribeito Couto e Nise da Silveira”, de Elvia Bezerra. Editora Topbooks.
Elvia Bezerra acrescenta: “Madame Blank e Manuel Bandeira desenvolveram uma amizade especial, preservada com extremo carinho pelo poeta. Uma amizade que durou até a morte dela, em 1964, e que foi continuada pelos filhos e netos” (página 60). Elvia Bezerra é recatada.
2 — Como Manuel Bandeira traduziu a chilena a poeta chilena Gabriela Mistral, vale não confundir com o poeta francês Frédéric Mistral (1830-1914), que é citado na carta.