Uma alegria chamada Caio Jacobson

05 abril 2025 às 21h00

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Cida Almeida
Especial para o Jornal Opção
Guardo um silêncio profundo e alegre pelo meu amigo Caio Jacobson. Uma lágrima rolando em uma caixinha de risos e de boas e humanas histórias. Um dia, talvez, escreva algumas, inspirada nos seus relatos divertidos e despudorados. E você diria, debochadamente, desse meu desejo confessado: “Quer roubar minhas histórias?”. Não, amigo. Quero iluminá-las com a mais fina poesia do seu viver desgarrado, que ficou entranhado em minha escuta imagética e imaginária.
A primeira vez que vi Caio foi numa entrevista coletiva com a Fernanda Montenegro, no saguão de um hotel em Goiânia, algo ainda a ver com o assombro do acidente com o Césio-137. Ele papeava animadamente com alguém, num canto, tão natural naquele ambiente iluminado pela soberba presença de Fernandona. Fiquei ali, dividida entre a atenção na grande dama do teatro e da TV e naquele moço de cabelos ralos na altura do ombro, que irradiava um certo charme displicente.
Tempos depois, passei a encontrá-lo diariamente durante o período em que trabalhamos no Gabinete de Imprensa da Assembleia Legislativa de Goiás. Nossos papos entrecortavam aquelas manhãs frenéticas entre notícias de gabinetes e matérias em tramitação na Casa.
Havia entre nós uma identificação, respeito e carinho profundos escorrendo para nossas conversas. Naquele tempo gostava mais de escutar do que falar. E fui me embebedando de suas histórias, coisas sobre a família, a divertida dona Maria com o seu Galaxie/Landau envenenado e a luvinha preta, à la Ana Maria Braga, arrasando nas estrepolias ao volante para dar conta da tangência da curva fechada para acessar a garagem daquela casa linda, com muro de pedra, na esquina da Rua Dona Gercina Borges com a Alameda dos Buritis, no Centro. Isso sob impropérios entoados aos gritos por motoristas irritados com a intrépida motorista.

Voltemos à casa, onde estive nos idos de 1986 para entrevistar o velho Dr. Eduardo Jacobson, pai de Caio, então proprietário do Hospital Santa Luiza, considerado o primeiro hospital particular de Goiânia, que ficava na confluência das Avenidas Goiás e Paranaíba.
Era a missão da minha primeira reportagem para o “Diário da Manhã”, com a recomendação explícita do jornalista Batista Custódio, dono do jornal, para que eu o ouvisse com delicadeza porque ali havia um homem “machucado” pela vida.
O Dr. Eduardo Jacobson me recebeu amavelmente, com uma expressão entre circunspecto e desconfiado, no seu escritório que ficava no segundo andar da residência. Entabulamos uma longa conversa, em que me contou sobre o fechamento do hospital, um pouco da sua vida de médico e sobre o que mais eu não me lembro. Mas me recordo bem da casa, da decoração refinada e sóbria, de subir encabulada as escadas pensando no desafio da escuta para aquela entrevista.
A casa, penso eu, deve ter povoado a curiosidade de muita gente que passava por ali. Ficava encantada com o feito dela sobreviver às demolições tão na moda para abrir espaço aos edifícios. Por isso achei triste ver a sua ruína lenta, primeiro com pichações e depredações, depois um incêndio, fruto do abandono engendrado por um longo processo judicial de disputa familiar por herança. Por fim, os escombros e mais nada além de um lote vago.
Algumas lacunas sobre aquela casa foram preenchidas pelo Caio, que me levaram de volta à imagem do homem meio triste que entrevistei. Contou-me sobre a morte do irmão médico, nas dependências do próprio hospital e do pai em desespero tentando salvar o filho de um ataque do coração, se não me falha a memória. A imagem que ficou, algo assim, do Caio contando: quando meu pai se ergueu do corpo do meu irmão já era um velho. A imagem ficou na minha cabeça, como um quadro, uma cena de filme. Uma cena indelével da vida.
Por isso, impossível dobrar aquela esquina e não olhar para o lado, não ver a casa de outrora ou ouvir a voz do Caio me contando histórias da juventude vivida ali, das namoradas levadas furtivamente para o quarto, do dia em que levou um flagra do pai. Das histórias do tempo que viveu no Rio, como a de ter perdido uma namorada para o cantor Luiz Melodia, daquela ansiada vodca da madrugada desenhada como uma cena de cinema, dos casamentos, dos tempos do desbunde, dos filhos, do encontro feliz com a mulher Nytia.
Depois, pelas circunstâncias da vida, perdemos o contato. Um dia, muito tempo depois de ficar sabendo do problema dele de perda de memórias recentes, me surpreendi de novo com a sua alegria e o jeito afetuoso ao nos reencontrarmos na saída do Palácio Pedro Ludovico. Eu ainda estava presente na sua memória. Ele me chamava de Cidinha. Falou o meu nome, nos abraçamos e conversamos rapidamente, banalidades, com a leveza e o entusiasmo de sempre. Fui embora com uma sensação boa, o coração aquecido por aquele nosso encontro.
Nos últimos anos, ele aparecia de vez em quando nas minhas redes sociais em postagens de amigos em comum, sempre com um sorrisão e aquele frescor de juventude que nunca passa para quem é por inteiro com a vida, feliz de estar no mundo e não perder a viagem. É assim que lhe guardo, Caio, na minha caixinha de lembrar, como uma agulha encontrada num palheiro chamado vida, um botão de abrir risada, um confete que não quer ser lágrima, mas festa. E vai ser assim, toda vez que eu me lembrar. Você virá, todo alegria, entrega e sorrisos, com direito a gargalhada boa. Escrevo em silêncio com a sua presença ruidosa, como daquela vez que tentou editar o meu texto, mas desistiu porque não conseguia cortar. É só mais uma viagem, amigo, sem corte, com sua alegria presente.
Cida Almeida, jornalista, poeta e prosadora, é colaboradora do Jornal Opção.