Um líder como Bolsonaro deve se moderar e pedir moderação aos seus seguidores

28 outubro 2018 às 00h00

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Políticos em campanha são emocionais. Políticos no poder têm de ser racionais. Forças Armadas podem ser drummond contra aventura golpista

A democracia ensina que é preciso tolerar a ideia divergente — o que não é o mesmo que aceitá-la. A busca da convergência não é a imposição do fim da diversidade de pensamento. O fato de a “Folha de S. Paulo” ter “simpatia” pela candidatura de Fernando Haddad para presidente da República não significa exatamente “apoio”. E, mesmo se for apoio, não há nada de errado. Jornais costumam postar-se, direta ou indiretamente, ao lado dos candidatos com os quais comungam ideias similares ou iguais. A realidade é esta: no Brasil e no mundo. O jornalista deve buscar o máximo de objetividade — o que não é necessariamente sinônimo de imparcialidade. Quando fingem isenção, com palavras estribadas numa retórica melíflua, os jornais por vezes são piores do que os declaradamente não-isentos.
Os editores e proprietários da “Folha de S. Paulo” — jornal que apoiou a ditadura militar até a proximidade de seus estertores — talvez não apoiem, no conjunto, exatamente Haddad. É provável que estejam mais contra Jair Bolsonaro por receio de uma nova ditadura. Se a história pode ser tão progressista quanto regressiva, como postula o filósofo britânico John Gray, uma ditadura deve figurar no horizonte dos indivíduos. Como a ditadura é o que há de pior — seja de esquerda, seja de direita —, porque representa um retrocesso na longa história da emancipação dos homens, os dirigentes do jornal paulista têm certa razão quanto ao candidato do PSL a presidente da República. Falta razão à Imprensa quando se torna histérica e, para piorar a imagem de Bolsonaro — se isto é possível —, deixa de registrar, de maneira ampla, as mudanças nem sempre sutis da retórica de Haddad no segundo turno.
Durante uma campanha eleitoral, fala-se o que se deve e o que não se deve. Agride-se, inventa-se e exagera-se. Haddad, mesmo sabendo que não era verdade, endossou a versão do excelente compositor e cantor Geraldo Azevedo — que disse que o general Hamilton Mourão o havia torturado em 1969. Trata-se de uma mentira. Nesse ano, o general Mourão tinha apenas 16 anos e, logicamente, não participou de nenhuma sessão de tortura. A prática era para homens experimentados e, frise-se, não era feita apenas nos porões. Mas a retórica mais extremada não é a de Haddad. É a de Bolsonaro. Haddad é sutil e nada inocente.
Numa democracia, e o Brasil é uma democracia plena, o presidente da República tem o direito de criticar jornais e quem quiser. Mas um presidente (ou candidato a presidente) não deve ameaçar. Primeiro, porque não é sua função. Se avalia que está sendo agredido, deve procurar a Justiça e processar seus acusadores. Segundo, quando se tem seguidores conflagrados, há sempre um risco de tomarem as dores do líder e cometerem alguma atrocidade. Quando da aprovação do AI-5, o vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, disse ao presidente Costa e Silva que o perigo não era o general, e sim o guarda da esquina. Quando Bolsonaro faz críticas pesadas aos adversários e aos que avalia como adversários, como se houvesse uma conspiração altamente articulada, acaba por liberar, ainda que indiretamente, forças primitivas que às vezes apoiam quaisquer postulantes. Sua ameaça pode ser verbal, sem chegar às vias de fato, mas alguém pode “comprá-la” e executar a suposta “ordem”.
Antes do primeiro turno, um homem determinado, munido de apenas uma faca, tentou matá-lo durante um evento público. Fala-se até em ação do PCC. A possibilidade apresentada pela polícia é outra. Adélio Bispo de Oliveira possivelmente “comprou” o discurso de que Bolsonaro não é bom para a democracia — como se seu ato fosse democrático — e decidiu matá-lo. Não há indício, ao menos até agora, de que alguém tenha mandado assassinar o líder do PSL. No caso, há autores intelectuais? Se há, são as figuras radicalizadas tanto de esquerda quanto de direita. O discurso do ódio é filho de dois pais — a direita e a esquerda — e órfão de mãe, quer dizer, da democracia.
Um candidato a presidente deve ser responsável por si e pela influência que pode causar no público. Bolsonaro deve ser tratado como besta fera? Não. Parte da esquerda, no momento a petista, é hábil em potencializar os vezos antidemocráticos da retórica do político que agregou a direita e praticamente “criou” um eleitorado de direita — no fundo, grupos imensos que foram negligenciados tanto pelo centro quanto pela esquerda e decidiram radicalizar, usando Bolsonaro para apresentar o que pensa e o que avalia como importante para o país. A esquerda tende a tratar os eleitores de Bolsonaro como se fossem todos bolsonaristas — uma militância quase paramilitar. Não é nada disso. A maioria é extremamente pacífica e está apenas demonstrando, ao votar no candidato do PSL, sua insatisfação com os rumos do país. Eleitores estão dizendo, mas não são ouvidos, nem mesmo por jornais equilibrados, que estão “furiosos” com a corrupção superlativa dos governos do PT e do PSDB, no plano nacional, e com a crise econômica derivada de equívocos das gestões petistas. Bolsonaro é a “arma” destes brasileiros indignados.
Não se está sugerindo que Bolsonaro deve parar de criticar a Imprensa — que, a rigor, não aprecia críticas ao seu trabalho e aos seus erros. O que se está dizendo é que um candidato a presidente, com chance de se tornar presidente, deve ter cuidado com as palavras. Quando as críticas se tornam ameaças, num tom acima do tolerável à democracia, corre-se o risco de seguidores exaltados transformarem o radicalismo das palavras no radicalismo das ações. Patrícia Campos Mello é uma jornalista notável e não há nenhum indício de que alguma vez tenha reportado fatos de maneira distorcida. A repórter da “Folha de S. Paulo” pode e deve ser criticada, mas não ameaçada. Bolsonaro deveria, sempre há tempo para tanto, pedir moderação aos seus seguidores e eleitores. É a função de um líder. Mauro Paulino, diretor do Datafolha, é responsável por um instituto íntegro. A política, como a vida, não é exata. Pesquisa-se um quadro e este quadro revela uma verdade. Logo depois, apurados os votos, tem-se outro quadro e outra verdade. Significa obrigatoriamente que o instituto de pesquisa distorceu estatísticas? Não necessariamente. Há duas possibilidades. Primeiro, as mudanças de humor do eleitorado agora são cada vez mais rápidas, porque azeitadas pelo poder de comunicação das redes sociais. Os institutos de pesquisa, mesmo os sérios, não conseguem “capturá-lo” com precisão. Segundo, há eleitores que observam o cenário até bem próximo da votação e decidem em cima da hora. Os institutos de pesquisa tendem a apresentá-los como indecisos, o que nem sempre são. Por vezes, são altamente decididos e, não raro, não querem votar em ninguém. Mas, como têm de votar, escolhem um candidato — às vezes aquele que avaliam que “vai ganhar” ou o que promete mudanças radicais nos campos da moralidade e da economia.
O poder pode moderar os radicais
Quando um político chega ao poder pode radicalizar-se ou moderar-se. O PT, apesar dos arroubos autoritários — e do roubo generalizado —, moderou-se. Aqui e ali, petistas tentaram adotar medidas autoritárias, como a regulação da Imprensa e o controle do Ministério Público, mas, barrados pela sociedade (e a Imprensa foi fundamental), recuaram. O golpe institucional pôde ser contido porque a sociedade democrática era e é sólida. As instituições funcionaram e estão funcionando. O limite para tentativas de golpe é a força da democracia e a determinação dos indivíduos.
Se eleito, Bolsonaro tem como manter a retórica atual? Pode até seguir falando grosso, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas, ao administrar problemas reais e não retóricos, terá menos tempo para deblaterar publicamente. As leis, a realidade e a sociedade são forças que moderam e moldam. O Bolsonaro do poder certamente não será o mesmo da campanha. O poder cria uma nova racionalidade e, até, uma nova moralidade. Além da liturgia do cargo, há o fato de que terá de administrar um país que está entre os dez mais poderosos e ricos do mundo. Trump governa como se estivesse na oposição, mas sua equipe moderadora, e ele mesmo, faz um governo relativamente equilibrado. A retórica é uma maneira de pressionar, mas o governo em si é outra coisa. Portanto, a tendência é que o poder modere e reequilibre a retórica do político que, se eleito, será o representante de todos os brasileiros, não apenas de seus seguidores mais fieis. Seguidores, aliás, que podem ficar decepcionados com seu líder. Porque o poder, se abre portas para se fazer determinadas mudanças, não pode tudo. A realidade é mais complexa e escorregadia do que imagina políticos fortes e determinados. Empurra-se a história e se é empurrado pela história. A vida pode ser planejada até certo ponto, mas sempre há o imponderável. Bolsonaro rapidamente vai perceber isto, inclusive que o problema central do país pode não ser o Congresso Nacional. Talvez seja o apetite pantagruélico do Estado por recursos financeiros — o que sacrifica trabalhadores e empresários, que têm de pagar mais impostos. O problema do Brasil também não é unicamente a corrupção. A corrupção continua campeando no Rio de Janeiro? Talvez não. Talvez menos. Mas o Estado permanece inviável. Porque a folha de pagamento do funcionalismo público impede investimentos e toma praticamente todos os recursos. Alguém quer discutir isto? Nem a imprensa quer. Não é de bom tom.
Depois de seis meses de governo, se eleito, Bolsonaro será outro. Assim como seus eleitores e seguidores. Mais democráticos e tolerantes? Ao menos mais realistas. Políticos em campanha são emocionais. Políticos no governo precisam ser, antes de tudo, racionais.
Quanto à possibilidade de uma nova ditadura, para driblar o Legislativo e o Judiciário, vale “abrir” os ouvidos para o que afirma o comandante do Exército, Eduardo Villas Boas. As Forças Armadas não estão abertas para as vivandeiras da antidemocracia. São democráticas e não querem participar de aventuras contra a ordem democrática. Há um preconceito, nada sutil, contra os militares, e exatamente por causa da ditadura de 1964 a 1985. Há uma desconfiança de que militares não são democratas. É um mito. As Forças Armadas atuais, apesar dos arroubos de um ou dois generais, aqui e ali, são fortemente democráticas. Dadas as visões distorcidas, com a Imprensa cobrindo mal assuntos militares, não se percebe que o Exército, a Aeronáutica e a Marinha têm quadros altamente preparados e de uma sofisticação impressionante em vários campos do conhecimento. São civilizados, modernos e nada trogloditas. Podem, inclusive, ser um drummond no caminho de uma possível aventura autoritária de Bolsonaro.
Thomas Jefferson e jornais
Uma frase do presidente Thomas Jefferson, um dos pais da sólida democracia dos Estados Unidos, permanece válida: “Se pudesse decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último”. Bolsonaro e Haddad passam — o Brasil, a Imprensa e a democracia continuam… São eternos como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Hugo de Carvalho Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Adélia Prado e João Cabral de Melo Neto.