Trump foi eleito presidente dos EUA porque os pobres “abandonaram” Kamala Harris
10 novembro 2024 às 00h00
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O “Estadão” (reportagem de Luiz Raatz) e o “Valor Econômico” (entrevista de Clifford Young aos repórteres Fernanda Godoy e Marcos de Moura e Souza) publicaram materiais relevantes sobre os motivos da vitória do republicano Donald Trump, para presidente dos Estados Unidos, contra a democrata Kamala Harris.
O texto do “Estadão” é intitulado “Como Donald Trump levou os republicanos a se tornarem o partido da classe trabalhadora nos EUA”. O do “Valor” foi publicado com o título de “Discurso antissistema de Trump faz parte do DNA dos EUA hoje”.
As duas publicações concordam num ponto: “o descontentamento dos americanos com o custo de vida elevado” (“Valor”) foi decisivo para a vitória de Trump e a derrota de Kamala Harris. “68% dos americanos acreditam que a economia está ruim”, frisa o “Estadão”.
Clifford Young, do instituto de pesquisa Ipsos, assinala que “a vitória de Trump é uma vitória do contexto. Ou seja, economia, inflação, custo de vida. Ele ganhou em cima disso e por causa disso. Há muitas pessoas que estão frustradas, que não conseguem pagar as contas”. Muitos dos que votaram no republicano “se sentem excluídos, sentem que foram deixados para trás”. Eles “perderam renda, emprego”.
Paradoxalmente, o projeto econômico esboçado por Trump é concentrador de renda, prevê “redução de impostos para grandes corporações e para os mais ricos”. As tarifas de importação propostas pelo republicano “tendem a encarecer produtos para o americano médio”, postula Young.
Trump representa um sentimento antissistema
Se Trump joga com as elites, daí o apoio do bilionário Elon Musk, por que atraiu o voto popular de maneira tão ampla? “Trump representa um sentimento antissistema, anti-establishment”, anota Young.
O republicano, enfatiza Young, “fala a linguagem do povo, ele enfrenta o establishment e, portanto, tem credibilidade com o povo por causa disso. O establishment, a elite é de esquerda hoje em dia, para a grande maioria dos americanos. Então, ele representa essa ideia de tentar tomar de volta o país dessas elites”. Trump convenceu os pobres de que só ele pode “explodir o sistema”.
Luiz Raatz enfatiza que Trump conquistou o “eleitorado mais pobre e sem formação universitária. A direita agora é a voz da classe trabalhadora”. Antes, o Partido Democrata — que é mais de centro do que de esquerda, mas é visto como de esquerda quando comparado com o Partido Republicano — reinava entre os trabalhadores. Ao menos desde Franklin Delano Roosevelt — eleito presidente quatro vezes seguidas.
O que aconteceu para os republicanos passarem a “representar” os pobres? Analistas e eleitores ouvidos pelo “Estadão” indicam que há “uma combinação de ansiedade econômica com a construção de uma identidade social conservadora entre os mais pobres. A identidade e o sentido de pertencimento a um grupo político, impulsionados pelo apelo carismático de seu líder, pesam mais que as políticas públicas oferecidas por cada partido”.
Em 2016, Trump foi eleito no colégio eleitoral, mas perdeu no voto popular. Oito anos depois, em 2024, derrotou Kamala Harris no colégio eleitoral e no voto popular. O republicado obteve 50,9% dos votos e a democrata 47,6% (a rigor, uma votação também expressiva).
Na disputa eleitoral de 2016, “41% dos americanos que ganhavam menos de 50 mil dólares por ano votaram em Trump. Em 2020 esse número subiu para 44% e na eleição de terça-feira, 5, para 50%”. Kamala Harris ficou com 47%, atrás de Hillary Clinton (53%) e Joe Biden (55%).
Porém, “entre os mais ricos, que ganham acima de 100 mil dólares por ano, ocorreu o movimento praticamente inverso. Os democratas saíram de 47% com Hillary em 2016, recuaram para 42% com Biden em 2020, e agora tiveram 51% com Kamala Harris”, informa o “Estadão”. (Observe o leitor que, na disputa para prefeito de São Paulo, o candidato apoiado pelo presidente Lula da Silva, do PT, o deputado federal Guilherme Boulos, do Psol, perdeu, em larga medida, porque os pobres optaram pelo candidato apoiado pela direita e pelo centro, o prefeito Ricardo Nunes, do MDB. Parte substancial dos endinheirados de São Paulo e do país optou por Tabata Amaral, do PSB, e Boulos.)
O senador Bernie Sanders, da ala esquerda do Partido Democrata, admite que seus aliados abandonaram a classe trabalhadora. “Hoje, apesar da explosão de produtividade e do avanço tecnológico, a vida dos americanos mais jovens está num nível pior que o de seus pais. E muitos acreditam que isso vai piorar com a robótica e a inteligência artificial”, diagnostica.
Republicano se fortaleceu entre latinos e negros
Os democratas perderam terreno entre os latinos e os afro-americanos, notadamente entre os homens.
Entre os eleitores sem diploma, Trump conquistou 56% dos votos. Ele foi crescendo a cada eleição: 48% em 2016 e 50% em 2020.
Trump também ascendeu quando se verifica a questão de etnia e escolaridade. “Entre os negros e latinos sem educação superior, o apoio a Trump saiu de 20% em 2016 para 26% em 2020 e agora para 34%. Entre os brancos sem diploma, o patamar permaneceu estável: 66% em 2016, 67% em 2020 e 66% este ano.”
Muitos eleitores de origem latina pensam assim, avalia Young: “Minha família está aqui, cumpre as regras e esses que estão chegando ilegalmente não estão cumprindo as regras”. Do ponto de vista dos americanos, inclusive dos latinos, “os imigrantes sobrecarregam toda a infraestrutura social. As escolas de seus filhos estão sobrecarregadas por conta da chegada de grande número de imigrantes ilegais. Isso influenciou as pessoas”.
As questões morais e o erro das pesquisas
A política identitária do Partido Democrata o prejudica eleitoralmente? Na disputa de 2024, o custo de vida — a inflação — pesou mais. Os eleitores votaram com o “bolso”, que está mais vazio. Mesmo assim, é fato que o apoio dos democratas ao aborto, ao casamento gay e a uma política externa não isolacionista pode tê-los prejudicado, notadamente entre os pobres. Fica-se com a impressão de que os republicanos estão mais preocupados com a economia — a infraestrutura, diria Karl Marx — e os democratas com as questões identitárias, que, para muitos eleitores, não tem tanta importância.
Por que as pesquisas erraram ao apontar que Kamala Harris poderia vencer Trump?
A versão de Young: “Existem dois tipos de metodologias que foram empregados este ano. Em uma delas você faz uma amostra aleatória da população e faz as projeções. É a forma mais tradicional, que vem sendo usada ao longo dos anos. A outra metodologia que foi aplicada este ano utilizou a base de dados dos eleitores. Parece que essas pesquisas ficaram muito mais próximas do resultado porque, provavelmente, essas bases dos eleitores permitem uma mensuração mais fiel sobre quem vai votar. Acho importante esclarecer: tem modelos econométricos, tem vários indicadores que apontaram que Trump deveria ganhar”.
Young diz que, “conforme os dados eram agregados e quando se levava e conta os modelos, uma série de inputs e também as pesquisas, dava Trump”.