Formado na França e nos Estados Unidos, o especialista diz que a desigualdade está aumentando em todo o mundo, que trabalhadores com altos salários são capitalistas e recomenda mais impostos para reduzir a pobreza

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A França, que tem paixão por lançar moda, compete com a Alemanha em quase tudo. Se a Alemanha tem Karl Marx, com “O Capital”, um dos livros mais influentes da história, a França tem o economista Thomas Piketty, de 43 anos, autor de “O Capital no Século 21” (sairá no Brasil pela Editora Intrinseca). Marx, um clássico, morreu há 131 anos, em 1883, e por isso não tem respostas para o capitalismo remodelado de parte do século 20 e do século 21. Usar seu livro como manual para entender a economia contemporânea pode ser parcialmente infrutífero, o que não é o mesmo que dizer descartável.

Para apreender o “novo” capitalismo é preciso combinar a leitura de vários autores, tanto liberais, como Friedrich Hayek e Milton Friedman (além de Joseph Schumpeter), quanto marxistas, como o húngaro István Mészáros e o inglês David Harvey. Piketty não quer ser o novo Marx, nem mesmo pensa em reinventá-lo, mas pretende compreender o funcionamento anterior e o atual das estruturas capitalistas. Seu livro está sob ataque cerrado de autores liberais. Parte das esquerdas o avalia como “moderado”. Com a falência do socialismo, que praticamente se tornou sinônimo de totalitarismo, a esquerda ficou desnorteada, contestando a primazia do mercado, mas combatendo-o de maneira frágil. Muito disso se dá por falta de instrumental para capturar o capitalismo renovado que as ideias de Marx não têm mais como explicitar e, portanto, combater. O livro de Piketty, que reexamina e critica com rigor o capitalismo, é um novo instrumental para as esquerdas e, sobretudo, “reformistas”. Porém, há uma dificuldade: o economista francês não está sugerindo a substituição do capitalismo por outro modo de produção, e sim uma reforma para torná-lo menos injusto. Pelo que li em revistas e jornais, brasileiros e do exterior, a esquerda está apropriando-se da crítica ao capitalismo e deixando de lado a ideia de Piketty para reformá-lo. Em tempos idos, o pesquisador, formado tanto na França quanto nos Estados Unidos, seria apodado de “reformista”. Hoje, é tratado quase como comunista pelos liberais e pela esquerda. Não é de direita, claro, mas é, no máximo, um reformista.

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No jornal espanhol “El País” (o texto foi publicado originalmente no “New York Times”), o economista americano Paul Krugman, Nobel de Economia de 2008, publicou um artigo — “O pânico em relação a Piketty” — que põe lenha na fogueira. “Os conservadores estão aterrorizados. (…) A direita parece incapaz de organizar qualquer tipo de contra-ataque significativo às teses de Piketty.” Krugman frisa que querem desqualificá-lo, “acusando-o” de marxista. “O pânico em relação a Piketty mostra que a direita ficou sem ideias.” Talvez seja possível outra leitura: a direita e, também, a esquerda ainda não tiveram tempo de fazer leituras atentas e menos apaixonadas da imensa massa de informações e interpretações do livro. Se “O Capital” ainda provoca discussões acerbas entre especialistas e militantes políticos, embora tenha sido escrito no século 19, imagine um cartapácio recém-publicado. Daqui pra frente, com as exposições das críticas, positivas ou negativas, ou meio-termo, é que se verá se a obra tem consistência. No momento, o debate está mais “politizado” do que “compreensivo”. Há os que defendem as ideias de Piketty, como Joseph Stiglitz, Nobel de Economia de 2001, e Krugman, e há os que as atacam, como James Pethokoukis, do Instituto Americano da Em­pre­sa, e o jornal “Wall Street Journal”. “O Capital”, de Marx, foi virado e revirado, com as virtudes e falhas amplamente apontadas (inclusive supostas falsificações de estatísticas), mas resiste como clássico e, assim, como uma obra influente — a ser lida por esquerda, direita e centro. Não dá para contornar Marx, assim como não dá para contornar Kant. Entretanto, Marx não pode ser tomado como único ponto de partida e como bíblia para o estudo de um capitalismo que, “reformulado”, sua opus magna não examinou.

No Brasil, a revista “Piauí” publicou dois textos empáticos às ideias de Piketty, um deles faz ligeiras ressalvas, na edição que está nas bancas. São oito páginas escritas pela jornalista Emily Eakin, ex-editora da revista “New Yorker”, e pelo sociólogo Marcelo Medeiros, professor da Univer­sidade de Brasília (UnB).

O ensaio de Medeiros, “Pi­ketty e nós”, é equilibrado e, embora simpático às ideias do especialista francês, crítico. É, sem dúvida, um dos melhores artigos a respeito do assunto.

Medeiros nota que o foco da análise de Piketty é a distribuição de riqueza. “Ele mostra que o 1% mais rico responde por uma fração gigantesca da desigualdade de renda e determina sua evolução no tempo.” O dado tem a ver com os Estados Unidos, mas a desigualdade cresce também na Europa. O intelectual francês parte de uma ideia do economista americano Simon Kuznets — a chamada curva de Kuznets —, que sugeriu que a desigualdade cresceria, num primeiro momento, e, depois, diminuiria. Piketty afirma que os dados da economia real, longe de secundar a teoria, indicam que ocorre o oposto do que sustenta Kuznets.

Piketty colheu informações sobre heranças, tributos e registros de salários e mostrou “que, em praticamente todos os países do mundo desenvolvido, a desigualdade, que havia caído entre a primeira e a segunda guerras [1914 a 1945], voltou a subir a partir da década de 80. E tudo isso com concentração de renda entre os mais ricos, que ocupam o topo da pirâmide”, registra Medeiros, realçando que a pesquisa do economista resulta de uma investigação promovida por mais de 20 especialistas, como Emmanuel Saez, Olivier Godechot e Gabriel Zucman. Na liderança do grupo está sir Anthony Atkinson.

Krugman diz que “a autêntica novidade de ‘O Capital’ é a forma como joga por terra o mais valioso dos mitos conservadores: a insistência em que vivemos em uma meritocracia na qual se ganham grandes fortunas e estas são merecidas”.

Num didatismo não empobrecedor, Medeiros resume a teoria desenvolvida por Piketty, cujo livro, na edição francesa, “tem cerca de mil páginas”: “Em todo o mundo, o capital é muito concentrado nas mãos de poucas pessoas; tal riqueza gera renda, na forma de aluguéis, dividendos, retornos financeiros — e a concentração aumenta ainda mais toda vez que esse rendimento do capital ultrapassa o crescimento da economia. Quando a concentração aumenta muito, começa a sobrar dinheiro. Algumas pessoas que não são capitalistas, como os executivos das empresas, têm maior facilidade para se apropriar desse dinheiro e fazem isso assim que possível, o que cria os supersalários dos trabalhadores ricos. Mas esses trabalhadores ricos não consomem tudo o que ganham, investem o que poupam e tornam-se também capitalistas. Como apenas uma parte do dinheiro que ganham vira consumo, a parte que chega aos trabalhadores mais pobres é ainda menor. Os mecanismos de acumulação são tão fortes, e os mecanismos de redistribuição tão fracos, que esse ciclo se repete indefinidamente se não houver algum tipo de intervenção”. (Note-se o exemplo de um executivo como Henrique Meirelles. Como presidente do BankBoston, faturava mais de 100 mil dólares por mês e tinha participação quando a instituição financeira se expandia. Na J & F, holding que gere os negócios da família Batista, mais conhecida pela JBS-Friboi, Meirelles teria um salário estimado em 200 mil reais, mais participação em caso de crescimento. Jogadores de futebol, como Neymar, do Barcelona, estão além da categoria trabalhador — tornando-se uma espécie de capitalistas, às vezes sem empresa. Ronaldo, o Fenômeno, tornou-se capitalista, com empresas e funcionários, mesmo antes de parar de jogar futebol.)
Para Piketty, na síntese de Me­dei­ros, capital é “riqueza que gera mais riqueza, capaz de se reprodutir”. “Hoje”, frisa Medeiros, interpretando o economista, o capital, in­vestido de várias maneiras, “se re­pro­duz na forma de rendimentos de aplicações financeiras, de poupança, lucros comerciais e industriais e até mesmos aluguéis e provisões de fundo de pensão privados. Capita­lis­ta não é apenas o multimilionário que vive de rendas, mas todas as pes­soas que em maior ou menor grau se beneficiam da renda do capital”.

Mencionando Krugman, que nota que Piketty relaciona com mestria desigualdade e crescimento, “Santo Graal da economia política”, Medeiros escreve que, para o scholar francês, “a desigualdade crescerá se a taxa de crescimento do capital — se os seus rendimentos — for maior que a taxa de crescimento das outras rendas, como as do trabalho. (…) Se uma parte muito concentrada da economia, o capital, crescer mais rápido que a parte bem menos concentrada, o trabalho, o resultado final será um aumento na desigualdade total”.

Layout 1Desigualdade: que fazer?

Se a desigualdade não cede, dado o modelo de desenvolvimento capitalista, que prioriza os empresários e os altos executivos, o que ocorrerá? “Se nada for feito para controlar a desigualdade, ela continuará a aumentar, e a sociedade se tornará cada vez mais patrimonialista — comandarão a economia os proprietários, e não os produtores inovadores”, anota Medeiros.

Liberais sugerem que o mercado, ao regular, reorganiza a economia, resolvendo, portanto, seus problemas conjunturais e estruturais. Para Piketty, no registro de Medeiros, o mercado não possui “nem os mecanismos nem os incentivos” para travar a concentração de riqueza e, em consequência, reduzir a desigualdade. O processo “precisa ser controlado por instituições, a começar pelo Estado. Piketty invoca a história de mais de 20 países: nos períodos em que os mercados são desregulados, a desigualdade aumenta; nos períodos em que são regulados, cai”.

No país mais rico do mundo, os Estados Unidos, a desigualdade está crescendo. A terra de Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt tem 46 milhões de pobres — cerca de 15% da população. Na Inglaterra, principal aliado dos EUA, não é muito diferente. A desigualdade social na China, segunda potência econômica global, é crescente. O país cresce, mas pouco se desenvolve, pouco “incorpora” os pobres. Noutras palavras, concentra riqueza e pouco distribui os ganhos de uma economia que tem crescido entre 8 e 10% ao ano. Na visão de Piketty, exposta por Medeiros, “os rendimentos do capital são superiores ao crescimento da economia” e beneficiam poucos indivíduos.

Os impostos são altos em todo o mundo? Contrariando liberais, Piketty afirma que a tributação, no lugar de crescer, tem caído. A alíquota máxima nos Estados Unidos, entre 1944 e 1964, chegou a 90%. Nesse período, “a desigualdade era baixa e o crescimento, alto”. Agora, a alíquota máxima é de 40%. “Tam­bém caíram radicalmente os impostos sobre heranças e a tributação sobre patrimônio. Nos países em que as mudanças foram menos radicais, a desigualdade não evoluiu tão rapidamente.”

“Acusam” Piketty de marxista. Mas o que propõe, quando não contorna a ideia de revolução, um marxista? Por certo, não quer a reforma do sistema, e sim sua destruição e, portanto, sua substituição. O economista francês é um reformador do capitalismo; mais do que destrui-lo, planeja aperfeiçoá-lo. Para tanto, avalia que o caminho seguro e funcional são os tributos. Medeiros sintetiza sua proposta: “Uma das maneiras de reduzir a desigualdade é montar um sistema tributário que seja capaz de, idealmente, estimular o investimento produtivo e, ao mesmo tempo, elevar a arrecadação do Estado — a fim de permitir gastos em educação, saúde e proteção social. (…) A recomendação é aumentar a progressividade do imposto de renda, elevando as alíquotas superiores e reduzindo as alternativas de dedução, e implementar um imposto global sobre o capital que alcançaria inclusive os paraísos fiscais”.

Brasil e América Latina

Os governos do PT, de Lula à presidente Dilma Rousseff, mais lulista do que petista, sustentam que, com suas políticas compensatórias, contribuíram para reduzir a pobreza e incluir mais pessoas ao mercado. Medeiros, pesquisador do Ipea, sugere que “a redução da desigualdade brasileira dá sinais de desaceleração. (…) Um dos fatores que frearam a queda ano passado foi exatamente o aumento da renda do 1% mais rico”.

A teoria de Piketty, ressalva Medeiros, não se aplica inteiramente aos países da América Latina. Um dos motivos: “Em todo o mundo, particularmente nas nações subdesenvolvidas e nas de pequeno porte, uma parte importante do capital em setores que tendem a concentrar muita renda pertence a outros países. Parte dos rendimentos de capital dos países em desenvolvimento é remetida ao exterior”. Não se sabe quanto, com precisão. Uma pesquisa de Gabriel Zucman “calcula que 8% de toda a riqueza financeira global resultam de transferência de países pobres para países ricos — principalmente os Estados Unidos e aqueles da Zona do Euro — por intermédio de paraísos fiscais. (…) Piketty e Zucman estimaram que um terço dos rendimentos de capital nos Estados Unidos vem de investimentos feitos em outros países”.

Assim, acrescenta Medeiros, “como parte dos rendimentos de capital é remetida ao exterior, é possível que a desigualdade não se altere depois da sua concentração. Ao remeter recursos ao exterior, as economias subdesenvolvidas exportam não só parte da sua riqueza e potencial de crescimento, mas, também, parte de sua desigualdade”.

Piketty não conseguiu examinar o Brasil, porque neste país “a concentração de renda nos dados tributários é tratada como um segredo”. Mas os poucos dados disponíveis, da década de 1990, sugerem que “a renda era extremamente concentrada, o patrimônio ainda mais”. Medeiros frisa: “Somos tão desiguais quanto outros países muito desiguais”.

No país da presidente Dilma Rousseff, filiada ao Partido dos Trabalhadores, de matiz socialdemocrata, “proporcionalmente, o poder público contribui mais para as rendas dos 5% mais ricos do que para as rendas dos 50% mais pobres, mesmo depois de considerar as transferências da assistência social”, assinala Medeiros. “Por não ser suficientemente igualitarista, o Estado contribui para aumentar a desigualdade, em vez de minorá-la. Serviços públicos, como os de educação e saúde, melhoram o cenário, mas não são suficientes para revertê-lo.”

Medeiros apresenta uma informação curiosa sobre mobilidade social no Brasil. “Quem está entre os mais ricos de hoje quase sempre vem de famílias que já estavam entre as mais ricas no passado. A mobilidade social no país existe, mas é quase sempre de curta distância. Várias pessoas conseguem melhorar um pouco de vida, mas só muito raramente conseguem uma grande ascensão social”, analisa o doutor da UnB. A riqueza de um indivíduo quase sempre tem relação com herança.