Telegram: não cumprir legislação dos países é uma afronta à liberdade de expressão

20 março 2022 às 00h00

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As grandes empresas globais se comportam, do ponto de vista legal, como se estivessem acima das leis de cada nação. E usam o mito da internet livre para justificar suas ações

Há empresas que se tornaram “países” — com “leis” próprias e PIBs superiores aos de várias nações (a Apple está superando o do Brasil) — e não querem cumprir a legislação dos demais Estados. O Google e o Facebook, por exemplo, queriam continuar usando notícias dos jornais sem remunerá-los. Só decidiram negociar, pagando pelo copirraite, depois de ações judiciais e pressões dos governos de vários países. Gestores da Austrália, Nova Zelândia, França, Alemanha e França jogaram duro, criando legislações específicas, e o Google e o Facebook foram obrigados a pagar àqueles que produzem notícias, às vezes a um custo alto. As duas empresas defendem uma “internet aberta” única e exclusivamente porque criaram mecanismos para, usando os usuários de maneira indiscriminada — explorando sua intimidade sem limites, e, em geral, de maneira imperceptível —, auferirem bilhões de reais.
Agora, chegou a vez do Telegram, aplicativo de mensagens criado por Pavel Durov. A empresa que lucra com o aplicativo, agindo como se fosse a James Bond da internet, não quer cumprir as leis dos países. Com o apoio de incautos, os que acreditam em realmente internet livre, quando acossada pelos governos e pela Justiça, passa a defender a liberdade de expressão. Mas não cumprir a legislação de uma nação, se comportando como acima de suas leis, é uma afronta à liberdade de expressão.

De fato, é preciso ter cuidado com imposições, mesmo judiciais, que afetem a liberdade de o indivíduo fazer suas escolhas. No caso de aplicativos, não se deve conter, via Justiça, o “todo”, o que prejudica usuários que atuam legalmente, e sim as “partes”, aquelas que desrespeitam a legislação do país. Censurar o “todo”, por causa das “partes”, é mesmo um atentado à liberdade de expressão.
A ressalva é que, para proteger as “partes” — usuários que descumprem regras de civilidade —, o Telegram não se preocupou com o “todo”. Noutras palavras, agiu como se seu território fosse inteiramente livre. Porém, em nenhuma sociedade, mesmo nas democracias mais sólidas, nada é totalmente free. A lei é o que limita o excesso, daquilo que prejudica um indivíduo ou a sociedade. O empreendimento de Pavel Durov encontrou no Brasil, no ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, uma barreira ao seu liberticídio. A decisão de suspender o Telegram no Brasil, por descumprir decisões judiciais, longe de prejudicar o aplicativo, vai ajudá-lo. Porque a tendência, a médio ou longo prazo, é que passe a responder a ações judiciais com pedidos de indenização. Porque quem publica o que ofende uma pessoa ou uma instituição é corresponsável pela ofensa.
Talvez não seja cinismo, mas, depois da decisão do Supremo, Pavel Durov decidiu aparecer e apresentar uma explicação, que, ainda que não seja convincente, pelo menos admitiu que pretende cumprir as leis do Brasil.
Pavel Durov, admitindo que errou, pediu ao STF a reconsideração do bloqueio do serviço e disse que o Telegram terá representação do país. “Parece que tivemos um problema com e-mails entre os endereços corporativos do telegrama.org e o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Como resultado dessa falha de comunicação, o tribunal decidiu bloquear o Telegram por não responder”, assinalou o empresário.
Não dá para acreditar no conto da carochinha. Porque, além de ter vários funcionários para examinar e-mails, sobretudo os mais importantes, o Telegram tem um representante no Brasil, o escritório Araripe & Associados. Segundo Pavel Durov, os advogados são responsáveis pelo contato da empresa com o órgão do governo federal que lida com o registro de marcas no país. Tal escritório certamente sabia das movimentações do Supremo, divulgadas nos jornais e nas redes sociais, a respeito da necessidade de se cumprir leis locais — no momento, em especial, relacionadas com as eleições de 2022.
Ante a decisão do Supremo, o russo Pavel Durov pediu desculpas aos ministros da instância máxima do Judiciário brasileiro. “Em nome da nossa equipe, peço desculpas ao Supremo Tribunal Federal por nossa negligência”, declarou. Aos que defendem a liberdade James Bond do Telegram cabe reler as palavras do empresário, que, embora russo, colocou a sede de sua empresa em Dubai, nos Emirados Árabes (certamente, fugindo do rigor do governo russo).
Cabe discutir uma questão: tudo aquilo que o influenciador bolsonarista Allan Lopes dos Santos publicar deve ser expurgado do Telegram? O mediador tem de saber o que é excessivo, o que fere a lei, do que é tão-somente crítica. Porque corre-se o risco de, daqui pra frente, críticas serem consideradas como “ataques” e, daí, serem censuradas pelo próprio Telegram ou pela Justiça.