Se o objetivo é taxar bens considerados como “de luxo”, por que não aumentar o tributo sobre iates, helicópteros ou taxar dividendos e grandes fortunas?

Bernardo Pasqualette e Rafaela Machado

Especial para o Jornal Opção

Há muito tempo existe no Brasil um consenso de que o livro é essencial para o desenvolvimento do país e esse fato acabou por ser refletido nas políticas tributárias. Em 1946, o então deputado Jorge Amado apresentou uma emenda constitucional que isentou de impostos os papéis usados na fabricação de livros e jornais.

Foi um passo importante, o primeiro de uma longa caminhada. Em 1967, a isenção tributária foi estendida para o livro em si. Em plena ditadura militar, uma vitória da cultura sobre o arbítrio.

Na Constituição de 1988, a isenção foi mantida, pois na época houve o entendimento de que o livro é, por excelência, a ferramenta básica do conhecimento. No entanto, ao longo dos anos, outros tributos acabaram por ser criados, como o PIS e Cofins, que passaram a incidir sobre a receita de todas as empresas, incluindo aquelas que se dedicam a fomentar a circulação de ideias por meio dos livros.

Toda jornada tem seus percalços. Nada melhor, porém, que um dia após o outro. Reconhecendo a importância do livro para a sociedade, pouco depois foi promulgada uma Lei que reduziu a zero a alíquota do PIS e da Cofins nas vendas de livros.

Uma vitória da luz sobre as trevas.

No momento, sob o pretexto de que o livro é um “artigo de luxo”, esse benefício pode ser eliminado pela nova proposta de Reforma Tributária, passando para 12% o valor do imposto que incidirá sobre o livro. Novas ameaças pairam sobre o horizonte da cultura. Naturalmente, esse fato levou a um amplo debate nacional. Afinal, o que está por trás do projeto de lei que pretende onerar o livro?

As políticas tributárias influenciam diretamente o consumo, estimulando ou desestimulando a compra de um determinado bem ou mercadoria. É o que acontece, por exemplo, com bebidas e cigarros. O alto valor dos tributos é repassado para o consumidor final e esse mecanismo acaba por reduzir o número de pessoas dispostas a consumir esses bens.

No caso do livro, a imunidade tributária funciona da forma oposta, possibilitando que o valor médio desse bem tão fundamental seja mais acessível à população. Isso fez com que o preço médio do livro tenha sofrido reajustes em patamares que se situam abaixo da inflação. A partir de 2004, o preço do livro caiu 40% em relação ao que se praticava antes. Se o livro for tributado em 12% repentinamente, esse preço acabará por ser repassado ao consumidor final, tornando o livro ainda mais inacessível para grande parte da população.

Uma das justificativas da Receita Federal para tanto é simplista — para não dizer simplória — e choca pelo preconceito que traz embutida em seu conteúdo: “Quem consome livro são pessoas de alta renda, pessoas que continuariam comprando livros se eles fossem mais caros”. Certamente, os idealizadores desse projeto de lei nunca frequentaram encontro de leitores em livrarias e bienais do livro. Quem consome livros são pessoas comuns, muitas delas apaixonadas pela cultura. Brasileiros que têm fome, não apenas de alimentos, mas, sobretudo, de conhecimento.

Segundo o IBGE, 50% do consumo de livros vem das famílias que ganham menos de 10 salários mínimos. Já a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil aponta que o Brasil perdeu, entre 2015-2019, 4,5 milhões de leitores, a maioria deles entre os mais ricos. Na classe A, o percentual de leitores passou de 76% para 67%. A pesquisa também apontou que 27 milhões de brasileiros das classes C, D e E gostariam de ler mais caso tivessem maior poder aquisitivo. Uma lástima, pois esse anseio involuntariamente revela que se nega a grande parcela dos brasileiros um direito fundamental: o acesso ao conhecimento. Em suma, a pesquisa revela que os livros são consumidos por toda a população, sejam pobres ou ricos. Mais importante ainda, há um real anseio por mais conhecimento por grande parte dos brasileiros.

Nunca é demais lembrar: quem tem fome tem pressa. E muita.

Outro recorte interessante é entender como ocorre a tributação de livros em outros países. Segundo uma pesquisa da IPA, International Publishers Association (Associação Internacional de Editores), 31 países concederam tributação zero para os livros, dentre eles toda a América Latina, com exceção do Chile. Outros 31 países adotaram tributação reduzida para os livros e apenas 17 países praticam a tributação. Dentre os países com maiores incentivos, destacamos as nações com economia em desenvolvimento.

Segundo a IPA, os livros não são mais uma mercadoria como outra qualquer, mas, antes, são ativos estratégicos que ativam a economia do conhecimento, facilitam a ascensão sociocultural e econômica, bem como o crescimento pessoal, e, por fim, ainda trazem benefícios a longo prazo na esfera econômica e social.

Parece muito, mais ainda é pouco. O livro é o principal agente de transformação social, verdadeiro objeto emancipador, não apenas do corpo, mas primordialmente da alma.

Assim, persiste a dúvida que não quer calar: será que taxar o livro vai ajudar o Brasil a sair da crise econômica? Bem, um dos maiores desafios para o crescimento econômico brasileiro é a falta de investimento em Educação que resulta em uma mão de obra pouco qualificada. A única forma de mudar esse panorama é investindo na democratização da informação, e o livro é fundamental para isso.

Onerar o livro vai contra o crescimento econômico e só beneficia aqueles cujo objetivo é o obscurantismo e a negação do conhecimento. É um projeto de longo prazo que envolve a asfixia de todos os setores culturais, penalizando em especial o mercado editorial, setor que já encolheu 20% desde 2006.

Esse tormentoso processo se inicia na recuperação judicial das duas principais redes de livrarias do país (Saraiva e Cultura), passa pelo fechamento de várias livrarias físicas durante a pandemia e chega até a alta do dólar — que impacta negativamente o preço do papel e prejudica a aquisição de direitos autorais. Dessa forma, o mercado editorial atualmente é pressionado por todos os lados, um verdadeiro tiroteio contra alguém indefeso. Completamente.

Diante desse contexto, restará quase impossível às empresas não aumentar o preço de capa, o que tornará o livro um bem a cada dia mais inacessível. Esse processo de degradação já se encontra em estágio avançado. Se a tributação do livro realmente for aprovada, acaba por se piorar aquilo que já é muito ruim. A situação ficará insustentável. Quem perde são os leitores e, inevitavelmente, o Brasil. Pobre nação.

Embora a Reforma Tributária seja uma tentativa legítima de estancar a grave situação econômica que o Brasil atravessa, não se deve esquecer de que aquilo que o Estado vai arrecadar com essa taxação é infinitamente menor do que a sociedade vai perder em função dela. Para entender os efeitos nefastos da tributação, podemos olhar para o que aconteceu no Quênia, país que passou por experiência semelhante.

O exemplo negativo do Quênia

Em 2013, o Quênia, um pequeno país africano, passou a taxar livros no percentual de 16%. Em apenas um ano, a venda de livros caiu 40%, a indústria editorial mergulhou em uma crise resultando no fechamento generalizado de livrarias, desemprego generalizado no setor, além de o país ter registrado acentuada piora nos índices de leitura de uma forma geral, situação que se intensificou entre os mais vulneráveis. Ainda mais grave, menos pessoas passaram a estar dispostas a escrever livros, a produção cultural caiu nacionalmente como um reflexo da baixa demanda. Um ciclo de destruição. Em massa.

Noves-fora todos esses efeitos macro que conseguimos prever, precisamos ter em mente o efeito que essa tributação terá em relação ao jovem de baixa renda, não só em relação ao seu desenvolvimento cultural, mas na própria saúde emocional desse leitor que está há mais de um ano confinado em casa, longe das experiências formadoras tão importantes e próprias dessa idade, e que vê no livro uma rara forma de suprir esse vazio. Não é “luxo” propiciar a essa parcela da população acesso ao conhecimento.

Por outro lado, se o objetivo é taxar bens considerados como “de luxo”, por que não aumentar o tributo sobre iates, helicópteros ou taxar dividendos e grandes fortunas? Imposto sobre o livro não é um tributo benéfico à economia. Nada disso.

É, antes de tudo e em essência, um tributo à mediocridade.