Talvez seja mais inteligente a imprensa não acuar militares que tentam moderar Bolsonaro

10 maio 2020 às 00h00

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O presidente aproxima-se de golpistas para tensionar relação com STJ e Legislativo. Militares trabalham para segurá-lo, mas não podem desautorizá-lo publicamente

Em dois livros, ao estudar a Al-Qaeda e a herança positivista do marxismo — também filho do Cristianismo, com sua ideia de paraíso perdido (o comunismo seria uma volta a Adão e Eva antes do pecado) —, o filósofo britânico John Gray sugere que o postulado do “progresso”, o avanço contínuo e linear, nem sempre é verdadeiro. O que a história ensina, se ensina alguma coisa, é que há grandes momentos de recuo. Na Rússia, cujo czarismo foi derrubado por democratas e pelo povão — mais organizados, os comunistas aproveitaram-se da fragilidade das instituições e da frouxidão dos democratas para “tomarem” o poder —, processava-se uma modernização conservadora, em 1917. Os comunistas, notadamente Ióssif Stálin, deram continuidade à modernização, dita “progressista”. Mas o comunismo foi um “avanço” ou um “recuo” histórico? Talvez tenha sido um retrocesso, porque impediu a democratização da Rússia e de outros países conectados que se transformaram em repúblicas. O nazismo de Adolf Hitler, na Alemanha, é outro exemplo flagrante de “recuo”.
No Brasil, em 1964, havia um certo caos político e não há dúvida de que João “Jango” Goulart queria continuar no poder. Mas certamente mexeria na legislação para conquistar a possibilidade de reeleição (o que irritava, por exemplo, Juscelino Kubitschek). Seria um golpe? Na verdade, mais uma “chicana” jurídica do que um golpe. O presidente era tão nacionalista quanto alguns militares e nada tinha de comunista. Politicamente, ele nem era tão próximo de Leonel de Moura Brizola, seu cunhado radical.

Os militares e vivandeiras, como Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro (ele foi governador da Guanabara, e muito bom), derrubaram João Goulart e governaram o país durante 21 anos — de 1964 a 1985.
Certa feita, quando perguntaram ao presidente Ernesto Geisel, porque, junto com o general Golbery do Couto e Silva, havia decidido acabar com a ditadura — chegou a defenestrar o ministro do Exército, Sylvio Frota, provando ter a coragem que Castello Branco não teve ante Costa e Silva — disse que simplesmente porque havia se transformando numa “bagunça”.
Não há a menor possibilidade de construir sociedades e indivíduos perfeitos — até escritores têm dificuldades de imaginar seres angelicais, sem nuances — e a tendência é que, na tentativa de “refazê-los”, de buscar o ponto zero, se chegue à ditadura. Porque a democracia não tem como “ajustar” a diversidade de uma sociedade, porque a liberdade individual — a liberdade de não ser “igual” — é central. Geisel e Golbery, realistas absolutos, perceberam, de cara, que não dava mais para continuar. A ditadura havia se transformado, até aos seus olhos, numa desgraceira. Generais deixavam oficiais matarem presos políticos, totalmente indefesos, nas dependências militares. A partir de certo momento, não havia mais uma guerra contra a esquerda radical, que havia sido dizimada, mas certos militares se alimentavam de uma guerra (e de uma conspiração) que só existia, na defesa de seus interesses, na cabeça deles. Geisel decidiu pôr um fim nisso. Por isso pode-se dizer, como o faz Elio Gaspari, que um general “matou” a ditadura.

Terminado o governo militar, como Tancredo Neves morreu, depois de eleito no Colégio Eleitoral, assumiu o vice José Sarney, que, tendo apoiado todos os governos da ditadura, pode muito bem ser considerado o último “general” — civil, claro — da ditadura. Tanto que, de alguma maneira, ficou sob a tutela do general Leônidas Pires Gonçalves. Mesmo aos trancos e barrancos, com setores do MDB governando paralelamente — dentro do governo —, não se pode postular que José Sarney fez um governo antidemocrático. Em termos de economia, a gestão foi fraca. Entretanto, com sua moderação, consolidou a democracia. A Constituição de 1988 é do tempo em que era presidente.
Depois de Sarney, vieram Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e, agora, Jair Bolsonaro.
Bolsonaro fez discursos contundentes para pressionar o STF. Mas
acabou entregando o vídeo em que ameaça demitir Sergio Moro
Como colocar o presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018, em perspectiva histórica se seu governo mal começou? Difícil. Mas é possível expor algumas cositas. Politicamente, Bolsonaro é uma novidade, quiçá um avanço — no sentido de que a direita que se assume como tal (no Brasil, direitistas têm o hábito de se apresentarem como integrantes do centro político) finalmente chegou ao poder.
Mesmo que a ideologia não seja o forte de Bolsonaro, há uma direita ideológica que o ampara, inclusive no discurso. O filósofo Olavo de Carvalho, embora subestimado por articulistas de jornais e revistas — às vezes é tratado como “astrólogo” —, contribuiu para a formação de uma militância política ideologizada que trabalha de maneira quase paramilitar na defesa do presidente e no ataque aos seus adversários. A força de pressão e dissuasão desta direita impressiona e, para além das denúncias — de que é artífice de fake news, e é mesmo —, deveria ser mais bem estudada, inclusive por acadêmicos.

O que Bolsonaro e a direita ideológica querem de fato? Governar e, obviamente, ficar oito anos no poder — e até mais. O projeto é parecido com o do PT — que azeitou a corrupção da máquina pública para continuar no mando político em termos nacionais.
Mas Bolsonaro quer governar impondo seus projetos, pressionando o Legislativo para apoiá-los e contestando decisões do Poder Judiciário. No enfrentamento recente com o Supremo Tribunal Federal, que impediu a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal e impediu a expulsão de diplomatas venezuelanos, o presidente chegou a dizer que estava no seu “limite”. Quis dizer, provavelmente, que pode descumprir decisões da Justiça — o que, de alguma maneira, sinalizaria para ação de ditador ainda sem ditadura. Pouco depois, tendo cantado de galo — parece acreditar que “manda” em todos os terreiros —, de usar recursos legais para não entrega-lo, acabou repassando o vídeo com a conversa entre ele, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e outros ministros no Palácio do Planalto. Quer dizer, o presidente não descumpriu a decisão judicial. Não desrespeitou a Corte Suprema. A democracia, portanto, está mantida.
Há um porém. Bolsonaro tem participado de manifestações que pregam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. De fato, não se participa de atos com os quais não se concorda. Mas ele quer mesmo a ditadura? Talvez não. Quer governar com parlamentares e magistrados se comportando como cordeirinhos. Os três poderes que mantêm a estabilidade da democracia — o Judiciário, o Legislativo e o Executivo — são igualmente importantes. Bolsonaro parece acreditar que só o Executivo tem relevância. Mas até agora, apesar das pressões, tem jogado pelas regras democráticas. Seu discurso é mais autoritário do que o seu governo. Talvez queira ajustar o governo ao seu discurso. Mas, enquanto o Legislativo e o Judiciário forem independentes, o Executivo será contido para o bem da democracia.

Militares querem Bolsonaro como democrata. Portanto, acuá-los,
numa tentativa de carnavalizar alguns deles, não ajuda em nada
Entretanto, o que dizer dos militares que estão no governo e dos militares que estão nas casernas?
A ditadura civil-militar acabou há 35 anos. Nesse período, de duas gerações, o Brasil e os militares mudaram. Houve crises pesadas em 1992, na queda de Fernando Collor, as crises provocadas pelo mensalão e, mais tarde, pelo petrolão, a queda da ex-presidente Dilma Rousseff, a quase queda do ex-presidente Michel Temer, mas os militares mantiveram-se quietos, guardiões dos quartéis. Vivandeiras andaram por lá, foram ouvidas, mas não acatadas. As Forças Armadas — Marinha, Aeronáutica e Exército — do Brasil são democráticas. O espírito instalado na caserna é democrático. A nova geração até hoje sofre com preconceitos por causa da ditadura — cujo fim ainda é recente. Acredita-se, pelo passado, que militares têm vocação golpista. Por isso, como Bolsonaro se cerca de aliados que pregam o golpe militar, os militares se tornam suspeitos.
Mas, a rigor, os militares, os dos quartéis e os que estão no governo de Bolsonaro, propugnam por um golpe militar e por medidas discricionárias? Não.
Os militares apoiam Bolsonaro e o respeitam. Mas são contrários a ações que possam levar a golpe militar. Eles sabem que, quanto termina a ditadura, os civis, os primeiros a propô-la, saem de fininho e deixam o desgaste para coronéis e generais. Não só por isso. A nova geração é democrata e nem se aproxima dos que pregam a ditadura.
Não toda a imprensa, mas parte dela começa a tratar alguns generais como se fossem tão erráticos quanto Bolsonaro. Não são. Os generais Walter Braga Neto, Hamilton Mourão, Luis Eduardo Ramos, Augusto Heleno, Fernando Azevedo e Silva, Bento Albuquerque são, além de democratas, homens equilibrados. Disciplinados, não contestam o presidente publicamente, e acreditam mesmo que ele tenha as melhores intenções, apesar de atabalhoado. Privadamente, aconselham-no a ser mais moderado, a ouvir mais os ministros e a tensionar menos com os integrantes de outras instituições, como o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e os ministros dos Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo, estão altamente preocupados com a questão administrativa do governo. Sim, a maioria é conservadora, de direita ou de centro, mas, pragmáticos, não tem interesse pela discussão puramente ideológica. Porque sabem que isto não ajuda a governar, quer dizer, a consertar estradas, a fazer pontes, a gerar empregos, a cuidar de doentes como no caso da pandemia do novo coronavírus.
Os militares querem Bolsonaro como democrata, mesmo que o presidente ceda, às vezes, ao discurso autoritário. Portanto, “acuar” os militares, numa tentativa de carnavalizar alguns deles, como o general Augusto Heleno, não ajuda em nada. A imprensa tem o dever de divulgar tudo o que acontece — embora não raro esconda seus próprios problemas —, mas perderá tempo se avaliar que os militares, no momento, são o lado ruim do governo Bolsonaro. São, isto sim, o que há de melhor — inclusive em termos de moderação política e retidão moral.
Há militares que apoiam a crítica de Bolsonaro à TV Globo e à “Folha de S. Paulo”? Por certo, sim. Mas não recomendam que o presidente faça ataques a jornais e emissoras de televisão. Pelo contrário, clamam por moderação. O exagero é uma decisão exclusiva do gestor federal.
O discurso de Bolsonaro contra a TV Globo e a “Folha de S. Paulo” ecoa, muito de perto, o discurso da esquerda. Durante anos, o petismo fez uma campanha cerrada tanto contra a Globo quanto contra a “Folha”. Bolsonaro está repetindo o que se dizia antes — acrescentado seu exagero de praxe.
“Globo lixo” e “Folha lixo” são palavras que não param de sair da boca de Bolsonaro, como uma espécie de “senha” para a militância repercutir nas redes sociais.
A TV Globo — assim como o jornal “O Globo” — e a “Folha de S. Paulo”, assim como “O Estado de S. Paulo” (“Estadão”), são o que se tem de melhor no país, em termos de imprensa que apura bem e critica o que avalia que está errado. Mas há uma tendência, sobretudo no lumpenzinato que acompanha Bolsonaro, de tratar o que se tem de melhor como “monturo”.
Nota-se uma radicalização da Globo contra Bolsonaro, mas é uma resposta, um contra-ataque. Se o presidente se moderar, expondo sua crítica na linguagem que se espera de um presidente, certamente a rede da família Marinho também vai se moderar.
No momento, Bolsonaro está no ringue junto com parte da imprensa. Pode até vencer alguns “rounds”, mas a vida ensina que quando um presidente briga com a imprensa, se estiver errado, a história vai tratá-lo duramente. Bolsonaro parece agir como se fosse se tornar um Vladimir Putin — seria o seu modelo? — dos trópicos, ou seja, governar o Brasil por décadas. Com sua guerra contra quase todo mundo, corre o risco de estar cavando a sepultura política da direita no país. Quer dizer, seu próprio fim.