O governo de Lula da Silva esmera-se nos diagnósticos, mas descuida das soluções. Quando apresenta uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de Segurança Pública — para criar o SUS da Segurança —, como na quinta-feira, 31 de outubro, a gestão petista passa a impressão de que os problemas já “começaram” a ser resolvidos. O PT parece ter o hábito de “inaugurar” as obras antes de construí-las. Talvez por isso se preocupe mais com a teoria, o que deveria ser, do que com a prática, o mundo real, o que é.

Em um ano e dez meses, o governo de Lula da Silva fez muito pouco pela segurança, talvez porque muitos petistas, quiçá os de proa, parecem acreditar que a criminalidade “decorre” necessariamente de problemas sociais. Sim, os problemas sociais podem colaborar, mas não é tão decisivo quando assinala parte da esquerda. Associar pobre e criminalidade é, por si, um bruta preconceito contra os despossuídos. Além de desconsiderar que o crime organizado se tornou um empreendimento altamente lucrativo e poderoso. Trata-se de uma empresa.

O Primeiro Comando da Capital se tornou uma transnacional, com atuação no Brasil, em países da América do Sul e da Europa (associado à máfia italiana ‘Ndrangheta) e nos Estados Unidos. Se fosse possível, o PCC apareceria na lista das maiores empresas brasileiras. A Forbes acabará tendo de inclui-lo. Porque a Máfia tropical já opera na escala dos bilhões.

Primeiro Comando da Capital: forte nas ruas, nas cadeias e nos negócios | Foto: Reprodução

Na reportagem “Por que a América Latina, região mais violenta do mundo, precisa de uma nova abordagem para o crime”, de maio de 2024, a revista britânica “The Economist” informa que “o PCC é a maior facção criminosa da América do Sul, ligada à ‘Ndrangheta, o grupo mafioso mais poderoso da Itália, e aos chefões da droga nos Balcãs”.

O governo Lula da Silva “planeja” combater os grupos criminosos, como o PCC e o Comando Vermelho (CV), entre outros, com meras palavras e mudanças nas atribuições da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Federal? Se for, está fadado ao fracasso. (A rigor, o governo me parece bem-intencionado, o que lhe falta, por assim dizer, são vontade prática e senso do imediato.)

São as polícias estaduais, como a Polícia Militar e a Polícia Civil (que faz os inquéritos), que realmente combatem o crime organizado. A duras penas, com custos altos. Então, se o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) for para auxiliá-las — armando-as adequadamente e ampliando sua operação na área de inteligência —, aí, sim, o crime organizado poderá ser combatido com mais energia.
Os Estados, e não a União — que tem sido omissa —, têm mais expertise no combate ao crime organizado. Este combate é muito difícil e de alto risco para as forças policiais estaduais. Muitos policiais são assassinados. Porque há uma guerra.

Ricardo Lewandowski: falta integração de polícias, Justiça e Ministério Público | Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Por isso, no lugar de enfraquecer as polícias estaduais, o mais adequado é fortalecê-las. Porque, insistindo, o combate ao crime organizado é uma guerra — uma espécie de Rússia versus Ucrânia. Sem expertise, sem experiência de guerra, a União, longe de combater o crime organizado, pode permitir que fique mais forte.

Portanto, Lula da Silva deveria deixar as pilhérias de lado e convocar os governadores, não para ouvir propostas de mudanças cosméticas, e sim para, junto com o governo federal, numa aliança acima de ideologias, tentar derrotar o crime organizado.

“Economist” informa que “a criminalidade custa à América Latina, em média, o equivalente a 3% de seu PIB, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento: aproximadamente o mesmo que a região gasta em infraestrutura — o que acelera uma espiral de declínio. Economias assoladas pelo crime oferecem menos chances aos jovens, tornando os grupos criminosos mais atrativos, perpetuando a violência e impondo custos mais pesados”.

Coronel Renato Brum: eficiência na Secretaria de Segurança Pública | Foto: Reprodução

Ao propor o SUS da Segurança, Lula da Silva não propôs nada para conectar, de maneira mais adequada, polícias e tribunais de justiça. “Economist” sugere que, no combate ao crime organizado, “uma abordagem mais paciente e centrada, liderada por polícias civis e tribunais, é a melhor maneira de combater a violência a longo prazo”.

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ao propor o Sistema Único de Segurança Pública, parece não ter pensado na decisiva “integração” de policiais, promotores de justiça e juízes. Curiosamente, foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Um dos melhores, por sinal.

O governo Lula da Silva, ao apresentar o SUS da Segurança Pública, parece não ter percebido, pelo menos não com largueza de visão, que o combate ao crime organizado — que está espraiado pela América Latina e até pela Europa — precisa de um esforço concentrado não apenas da União com os Estados, como Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará etc. É crucial unir os países: Brasil, Equador, Bolívia, Paraguai, Colômbia, Argentina, entre outros.

“Economist” sublinha, com razão, que, “sozinho, nenhum Estado [país] é capaz de derrotar gangues ativas em seu território porque elas também operam em todos os países vizinhos”.

André Ganga: diretor-geral da Polícia Civil de Goiás | Foto: Reprodução

Como o governo Lula da Silva, enfeixando poderes na União, vai combater o crime organizado? Não se sabe. Até porque, até o momento, o governo federal tem sido falho tanto no combate quanto no apoio aos Estados, que ficam ao deus-dará.

Há Estados que funcionam no piloto automático e há Estados, como Goiás, que combatem duramente, com eficiência, o crime organizado. O combate depende mais do interesse de alguns governadores, como Ronaldo Caiado, que, em cinco anos e dez meses, fez uma mudança drástica na segurança do Estado.

Lula da Silva ironizou, sugerindo que Goiás, sob o gestor do União Brasil, não tem problemas. Claro que tem. Porque não há como resolver a questão do crime organizado se os demais Estados não têm uma segurança firme, com um serviço de inteligência estruturado e eficiente.

O presidente da República deveria ter elogiado quem está tentando resolver, de maneira prática, a questão da violência em seu Estado, como é o caso de Ronaldo Caiado, do secretário de Segurança Pública, coronel Renato Brum, do diretor-geral da Polícia Civil, André Gustavo Corteze Ganga. Não deveria ideologizar e politizar a questão. O presidente da República não deveria menosprezar o trabalho eficiente da Polícia Militar e da Polícia Civil de Goiás.

Uma pesquisa simples com motoristas de Uber e outros aplicativos que dirigem à noite poderia mostrar o que, de fato, está acontecendo em termos de segurança no Estado onde nasceram o prosador Edival Lourenço e a poeta Darcy Denófrio.

Coronel Marcelo Granja: comandante-geral da Polícia Militar de Goiás | Foto: reprodução

A força da dissuasão focada

“Economist” sugere que “o Equador e outros países latino-americanos assolados por violência de gangues fariam melhor se concentrassem sua atenção nos indivíduos mais brutais em vez de tentar desmantelar todos os grupos de crime organizado de uma só vez”.

A revista inglesa sublinha que “uma estratégia com alvos específicos, conhecida como dissuasão focada, significa deixar estar os grupos menos sanguinários”.

O pesquisador Rodrigo Canales, da Universidade de Boston, postula que “nenhuma força policial no planeta tem capacidade de atacar tudo de uma vez. Mas colocando foco sobre a violência extrema é possível tornar as coisas difíceis para o grupo, que passa a se dedicar a diminuir a violência”.

Claudia Scheibaum é a nova presidente do México. Quando era prefeita da Cidade do México, testou, com o apoio de policiais e acadêmicos dos Estados Unidos, como Rodrigo Canales, a dissuasão focada no bairro Plateros, que tem 260 mil habitantes. O índice de homicídios caiu de 22 para nove a cada 100 mil habitantes.

“A equipe [da dissuasão focada] identificou 25 homens muito propensos a matar e então ser mortos — e então ofereceu-lhes uma mescla entre favores e ameaças. Os favores incluíam aconselhamentos e, em casos extremos, realocações. A ameaça era que esses homens sabiam que era vigiados constantemente e seriam encontrados assim que cometessem qualquer crime”, diz “Economist”.

A revista ressalva que, se “no curto prazo, a dissuasão focada é capaz de reduzir a violência, pode permitir às gangues se consolidar”.

“Economist” sustenta que “os grupos criminosos mais bem-sucedidos preferem a paz à guerra. São Paulo ficou mais segura depois que o PCC conquistou o monopólio da força”.

Soluções a médio prazo são cruciais

Não bastam soluções de curto prazo, com o objetivo de reduzir a mortandade. “Soluções a médio prazo são necessárias”, anota “Economist”.

“Uma vez que os índices de violência se estabilizam, os Estados devem colocar foco em prejudicar os lucros dos criminosos impondo custos maiores para suas atividades — o que significa expurgar instituições de autoridades corruptas e impulsionar a criação de unidades especiais para detectar lavagem de dinheiro e tráfico de armas”, indica “Economist”.

A revista europeia sugere que “os Estados [países] deveriam se dedicar a reduzir o recrutamento para as gangues e tornar públicas as nefastas realidades de seus integrantes. O índice mundial de homicídios de homens com idades entre 15 e 29 anos é de 16 a cada 100 mil habitantes; na América Latina é de 60”.

Os técnicos do governo Lula da Silva deveriam pesquisar, sem preconceito ideológico, o que cada Estado tem feito para combater a violência, sobretudo aquela articulada pelo crime organizado. Ganharia muito mais se parasse de fazer graça para virar meme e manchete de jornal. Dada sua sensibilidade política, e origem social, o presidente sabe que as principais vítimas da violência são os pobres, ou seja, aqueles que o petista-chefe mais defende, e de maneira genuína.