Supremo concedeu habeas corpus para Mauro Borges mas ditadura atropelou a Justiça
05 maio 2018 às 22h27
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Ministro Gonçalves de Oliveira inspirou-se em decisão da Justiça Militar para beneficiar o governador de Goiás. Mas o STF não tinha como segurar a linha dura
O golpe de 1964, o que instalou uma ditadura cruenta no Brasil, sobretudo a partir de 1968 — quando de “branda” passou a “dura” —, permanece uma obra aberta. Quando se pensa que é possível a produção de uma síntese — o livraço, digamos —, nos moldes dos cinco livros do jornalista Elio Gaspari e das obras de Carlos Fico, trabalhos específicos reabrem a questão. Aos 54 anos, o regime civil-militar ainda está sendo contado. Falta, quem sabe, uma pesquisa alentada sobre a participação dos civis na sua construção — antes do putsch e durante o período de exceção (1964-1985). O planejamento e a política fazendária, além da matização institucional e da articulação política, foram laboriosa e acentuadamente uma tarefa destinada àqueles que, por assim dizer, eram generais sem farda — como Roberto Campos, Delfim Netto, Mario Henrique Simonsen, Karlos Heinz Rischbieter, João Paulo dos Reis Veloso, Francisco Campos, Luís Antônio da Gama e Silva, Alfredo Buzaid, Leitão de Abreu, Petrônio Portela. Como não eram meramente servis, influenciaram, de maneira decisiva, os rumos do país.
Felipe Recondo, no excelente “Tanques e Togas — O STF e a Ditadura Militar” (Companhia das Letras, 334 páginas), reabre parte da história de 1964. Nesse ano, em abril, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro da Costa, legitimou e apoiou o golpaço dos militares, dos políticos civis e das vivandeiras. Os ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima, que não apoiaram o mandonismo do Executivo no Judiciário, foram “aposentados”. Para escapar à sanha cassadora-caçadora dos militares, Antônio Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada anteciparam-se e pediram aposentadoria”. “O Supremo, até 1988” — muda com a Constituição dita Cidadã —, “era um poder que, na realidade política do país, se encontrava abaixo dos demais”. Na ditadura, o tribunal “não tinha capacidade para fazer sua agenda. O Supremo tornou-se espectador, era coadjuvante, lateral”.
Há uma discussão de vários casos, como a do deputado Chico Pinto, das cassações, da resistência de Adaucto Lúcio Cardoso (irmão do escritor Lúcio Cardoso, autor do livro “Crônica da Casa Assassinada”). A seguir, registra-se apenas o que Felipe Recondo relata no capítulo “O Caso Mauro Borges”. São dezesseis páginas.
Apoio ao golpe
Em agosto de 1961, quando Jânio da Silva Quadros renunciou, militares golpistas, com o apoio de vivandeiras — como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto —, tentaram impedir a posse de seu vice, João Goulart, do PTB. Jango era tido como de esquerda, quando era, no máximo, nacionalista de centro. Alguns governadores, como Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, Mauro Borges, de Goiás, e Miguel Arraes, de Pernambuco, posicionaram-se a favor do político gaúcho e contra a reação dos generais e coronéis. Embora coronel do Exército, o posicionamento do gestor goiano deixou-o marcado junto à linha dura das Forças Armadas.
Em 1964, quando se esperava que mais uma vez se alinhasse com João Goulart, o governador Mauro Borges ficou ao lado do presidente Castello Branco, por quem nutria simpatia. Alegou que, como presidente, Jango não prestigiava Goiás. É provável que, ao perceber que o golpe era sólido e não haveria reação — o presidente fugiu para o Uruguai —, optou pela adesão. Mas, ao contrário de outros políticos que apoiaram o putsch, o gestor de Goiás era democrata e convivia de maneira conciliadora com várias correntes da política regional. Nada tinha de comunista, mas se dava bem com a esquerda.
Como havia apoiado o golpaço, os militares deixaram Mauro Borges no poder. Mas a linha dura, incentivada pelos políticos da UDN em Goiás — afinal, não apoiaram o movimento dos generais para um político do PSD permanecer no poder —, pressionava pela cassação do governador de manhã, à tarde e à noite. De madrugada, descansavam para manter a pressão no dia seguinte.
Em novembro de 1964, tropas militares deslocaram-se para Goiás. Era uma ameaça direta ao governador Mauro Borges. Do tipo: “Saia ou então vamos retirá-lo do poder à força”. Ante a pressão, o filho de Pedro Ludovico — fundador de Goiânia — começou a denunciar a ação dos militares e articulou-se com aliados e com a Polícia Militar.
O tenente-coronel Danilo Darcy de Sá da Cunha Mello — “primeiro oficial na ditadura a associar tortura e indisciplina”, afiança Felipe Recondo — “iniciou a fase do terror”. O médico Simão Kozobudsk (no livro “Golpe em Goiás”, Mauro Borges anota Simão Luty Kossobudzki), professor da Faculdade de Medicina na Universidade Federal de Goiás, denunciou que havia sido torturado diretamente ao presidente Castello Branco (acusado de ser comunista, não o era; o “problema” era o nome polonês e a paranoia anticomunista. Pawel-Paulo Gutko, que tinha transtornos mentais, foi torturadíssimo, sob acusação de ser comunista. De novo, o problema era o sobrenome polonês). Daí assumiu o comando das investigações o general Riograndino Kruel.
Submetido a interrogatório (de 26 horas), Mauro Borges esclareceu os pontos perguntados, mas os militares, como anunciava Riograndino Kruel, queriam mesmo era cassá-lo e prendê-lo. As Forças Armadas estavam “caçando” — pressionando — o governador para, mais tarde, “cassá-lo”. Só estavam esperando a oportunidade apropriada.
Proteção do Supremo
Ante a ameaça de prisão, ventilada por um general importante, Mauro Borges buscou a “proteção” do Supremo. “O habeas corpus — HC 41296 — foi impetrado no dia 13 de novembro de 1964 pelos advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto e José Crispim Borges, consultor jurídico do Estado de Goiás.” As sete páginas mostravam a perseguição política movida por adversários políticos e militares. Tese dos defensores do governador, na síntese de Felipe Recondo: “O governador não poderia responder a processo militar por deter foro privilegiado. A Constituição era clara ao prever que governadores só poderiam ser processados por crime comum pelo Tribunal de Justiça, caso a Assembleia Legislativa autorizasse. Se a acusação fosse de crime de responsabilidade, o processo e o julgamento seriam da alçada exclusiva da Assembleia [Legislativa]. A Justiça Militar não tinha competência para atuar no caso, argumentava a defesa de Mauro Borges”.
O habeas corpus para proteger Mauro Borges dos que estavam contra a lei, mas com o poder supremo, caiu nas mãos do ministro Gonçalves de Oliveira, que mantinha ligação com o ex-presidente Juscelino Kubitschek e, mesmo na ditadura, demonstrou coragem e respeito à lei e à Justiça.
Castello Branco, na versão do chefe da Casa Civil, Luís Viana Filho, estaria “disposto a esfriar a crise política”. “Mas o recurso de Mauro Borges ao Supremo mudou o clima no Palácio do Planalto. A eventual concessão do habeas corpus criaria uma atmosfera de insubordinação entre os oficiais em Goiás”. Luís Viana Filho escreveu que, “na realidade, o habeas corpus deixava de ser um remédio para se tornar uma provocação.” O ministro da Justiça, Milton Campos, divulgou, em 14 de novembro, que “74 fuzis e 1,2 mil cartuchos haviam sido roubados de um depósito de armamento e munições do Tiro de Guerra 53 do Exército”, em Anápolis. O governador acabou sendo falsamente “responsabilizado” pelos militares. Tratam-se de explicações, a do chefe da Casa Civil e a dos militares, arranjadas para justificar a intervenção. Nem mesmo Castello Branco era capaz de segurar Mauro Borges no governo. O presidente era agente da ditadura e, ao mesmo tempo, refém da linha dura, a dos generais e coronéis liderados por Costa e Silva. Entregar a cabeça do político goiano era mais adequado do que entregar a sua… ou demonstrar fraqueza. Era saudável ficar ao lado dos “fortes”…
Provando que era incapaz de “tranquilizar” — o termo menos impróprio é “controlar” — a linha dura, Castello Branco “ordenou o deslocamento de tropas do Batalhão de Guardas de Brasília para Anápolis e para Goiânia, com a missão de ocupar o aeroporto e bloquear as estradas”. Riograndino Kruel dizia a jornalistas, sem meias palavras, que Mauro Borges seria preso. “Se decretada, a prisão ocorrerá, ainda que a Assembleia se negue a autorizá-la. O Tribunal de Justiça Militar não precisa de permissão legislativa”, ensinava, judicioso, o general.
Ante a intromissão de Riograndino Kruel, Mauro Borges apelou a Brasília: “Se o presidente da República e o Supremo Tribunal Federal não tomarem providências, poderá haver uma tragédia em Goiás. Não praticaremos qualquer ato de subversão ou de contrarrevolução. Mas se formos atacados reagiremos à agressão”. Os militares praticamente haviam invadido a capital, agindo como se o governador fosse um refém, como se estivesse em prisão domiciliar, no Palácio das Esmeraldas. A cidade estava cercada: “Um dispositivo do Exército foi montado na estrada que unia Brasília e Goiânia”. Mauro Borges estava isolado.
Como sabiam que Mauro Borges não sairia de Goiás, porque, se saísse não voltaria ao governo, os militares “encaminharam as investigações para a auditoria de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Sua ausência serviria de pretexto para que os militares decretassem sua prisão preventiva”. Mesmo antes da decisão do STF.
Protocolado o habeas corpus, Sobral Pinto levou seus argumentos ao ministro-relator Gonçalves de Oliveira. Pediu pressa, pois os militares estavam agindo para afastar Mauro Borges. O integrante do Supremo perguntou ao advogado: por que não pediu uma liminar? Em seguida, o advogado José Crispim Borges procurou o ministro em sua residência. “Levou consigo uma folha de papel em que relatava o risco de ‘violência iminente’ contra Mauro Borges e requeria que fosse ‘sustada qualquer medida ou providência’ por parte dos militares contra o governador de Goiás. Gonçalves de Oliveira, sobre o papel, do próprio punho, escreveu ‘Deferido’, datou a decisão e a assinou.”
(Felipe Recondo assinala que “a inspiração para a primeira liminar em habeas corpus do Supremo veio do Superior Tribunal Militar”. Acusado de ter cometido irregularidades, o ex-presidente da Caixa Econômica Federal do Paraná Evandro Moniz Correia de Menezes “impetrou habeas corpus no Tribunal Militar” e conseguiu trancar a investigação policial-militar. A Justiça comum já havia decidido pelo “arquivamento das investigações”. O almirante José Espíndola, ministro do STM, decidiu conceder a liminar e o plenário a referendou. Os militares haviam criado uma “novidade”: “Uma liminar em habeas corpus”.)
Habeas corpus
Com a decisão do ministro Gonçalves de Oliveira, favorável a Mauro Borges, “o movimento das tropas cessou”. Mas tropas continuavam na capital, de prontidão. Faltava o julgamento definitivo do habeas corpus pelo plenário do Supremo. O governo de Castello Branco respeitaria a decisão do STF?
Como Mauro Borges disse que “um dos responsáveis pela ameaça que sofria era Castello”, o ministro Gonçalves de Oliveira pediu informações ao presidente da República. O Palácio do Planalto explicou que não participava de “ameaças” ao governador. Se era assim, havia não um, e sim dois governos: o de Castello Branco, supostamente omisso, e o de Costa e Silva, claramente ativo. Na verdade, Castello Branco, embora fosse moderado, raramente controlava os radicais, que operavam como se fossem “do” governo — e, de fato, eram. Não contestados pelo poder, eram “o” poder.
O jornal “Correio da Manhã” publicou na edição de 20 de novembro de 1964: “Informa-se, apesar do sigilo que cerca o assunto, que foi o caso de Goiás e seu desfecho imprevisível no Supremo Tribunal Federal, onde está o pedido de habeas corpus do governador Mauro Borges, que precipitou a elaboração do novo ato institucional”. O ministro Costa e Silva, o chefe do SNI, Golbery do Couto e Silva, e o jurista Francisco Campos articulavam o AI-2.
No julgamento, “o Supremo teria de decidir, antes de julgar o mérito, se partia do presidente da República algum ato contra o governador de Goiás e se, por isso, era o caso de conceder uma liminar contra Castello Branco, para que ele não cometesse ato ilegal ou arbitrário contra Mauro Borges”. Era uma questão política. “A dúvida era: governador de Estado pode ser processado pela Justiça Militar ou pela Justiça comum sem que antes a acusação tenha sido julgada pela Assembleia Legislativa do Estado?” O governo de Castello permanecia trabalhando para que o processo fosse “transferido para o Superior Tribunal Militar”.
O ministro-relator disse, no julgamento: “Compreendi que era meu dever de juiz, imperativo da minha consciência deferir a liminar requerida. Não tive dúvida em apor, na petição, o seguinte despacho: ‘Deferido, Brasília, 14 de novembro de 1964. Gonçalves de Oliveira’”. Ele defendeu que, se “um ministro pode, sem consultar os colegas, dar uma liminar ao julgar um mandado de segurança, poderia fazer o mesmo no habeas corpus”.
Gonçalves de Oliveira finalizou seu voto, frisa Felipe Recondo, “com a avaliação política de que a decisão por ele concedida funcionou como um freio para os militares mais ‘exaltados’, que queriam insuflar a crise político-militar”. O ministro sustentou: “O regime democrático mede-se pela existência da Justiça e ela não faltou, digo-o com humildade no coração e tranquilidade de consciência, sem pânico nem pavor, naquela determinação indômita de juiz deste excelso Tribunal”.
O Supremo teria de decidir três questões vinculadas. “Se um ministro pode conceder monocraticamente uma liminar ao julgar um habeas corpus.” Pode — decidiram os ministros. Depois, era preciso decidir se o STF “seria o foro adequado para julgar a questão”. Era. Finalmente, a Justiça militar “podia processar e julgar um governador ou se isso competia à Justiça comum”. Não tinha legitimidade. Mas o país não vivia sob um regime legal, democrático. Era uma ditadura, ainda que, como escreveu Elio Gaspari, fosse, no período, “envergonhada”.
Os ministros Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Pedro Chaves e Victor Nunes Leal votaram com o relator Gonçalves de Oliveira. A maioria votou a “favor do habeas corpus concedido a Mauro Borges”. Assessor parlamentar da Presidência da República, Asdrúbal Pinto foi o trombone que levou a má notícia a Castello Branco. O presidente convocou os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.
A intervenção
Uma hora depois da decisão do Supremo, Castello Branco divulgou uma nota, antecipando-se à reação da linha dura. Mesmo sugerindo “a determinação de acatar as decisões judiciais”, o presidente acrescentou que o governo de Mauro Borges “era fonte permanente de agitação e de ameaça à revolução”. Expressando-se para os militares — que eram, por assim dizer, sua “sociedade civil” e seus “eleitores”, afirmou “que não transigiria com a ameaça representada pelo governo de Goiás”. O poderoso chefão estava receitando um “calmante” para os militares, notadamente os da linha dura.
Antes do julgamento no Supremo, Costa e Silva, quase um Poder Moderador no primeiro governo da ditadura, havia conversado com Castello Branco sobre a possibilidade — na verdade, de seu ponto de vista, a necessidade — de uma intervenção em Goiás para derrubar Mauro Borges, que havia se tornado uma espécie de João Goulart regional. Felipe Recondo ressalta que, apesar da pressão, o presidente decidira esperar o resultado do julgamento do habeas corpus. “Passado o julgamento, Costa e Silva voltou ao gabinete presidencial e reforçou a defesa em torno da intervenção. Castello não titubeou. A decisão política estava tomada”, escreve o jornalista.
“Três dias depois da decisão do STF, após reunião de mais de duas horas no Palácio do Planalto, Castello Branco oficializou o pedido de intervenção para assegurar a manutenção da ‘integridade nacional’”, conta Felipe Recondo. O presidente telefonou para parlamentares e o decreto foi referendado pelo Congresso Nacional. “O empenho resultou na aprovação do decreto por 292 a 140 votos e seis abstenções.”
Os militares ocuparam as ruas de Goiânia e prenderam auxiliares de Mauro Borges. “Os militares deram ao governador a alternativa de renunciar ao mandato. Mas ele recusou a oferta e declarou que só morto sairia do governo. Não morreu. Foi tirado do cargo e, em seu lugar, ficou como interventor o subchefe do Gabinete Militar da Presidência, coronel Carlos Meira Matos.” O líder do PSD foi cassado. A ditadura ganhou Goiás, que perdeu um excelente governador, espécie, para o Estado, de Getúlio Vargas do Cerrado. Com a diferença de que, embora tenha apoiado o golpe de Estado e ser coronel do Exército, Mauro Borges era um democrata em tempo integral (o presidente Getúlio Vargas governou o país, como ditador, de 1937 a 1945, embora não se possa dizer que, entre 1930 e 1937, tenha sido inteiramente democrata). Os que chegaram ao poder com sua queda — excetuando Otávio Lage, que foi eleito pelo voto popular — eram velhos golpistas da UDN e de partidos aliados. Alguns “filhos”, outros “pais” e, até, “avós” do político e jornalista Carlos Lacerda, que equivocou-se ao pensar que o golpe havia sido dado para beneficiá-lo, esquecendo-se de que os tenentes de 1930, agora generais, queriam o poder para si — não para civis, mesmo que aliados.