Às vezes, é preciso avançar na “contramão”, mesmo correndo o risco de errar. Há um consenso de que, se Lula da Silva for eleito presidente, o Brasil corre o risco de golpe de Estado. Não falta senso lógico a quem pensa assim, mas há uma excessiva “confiança” na capacidade de o presidente Jair Bolsonaro mobilizar as Forças Armadas e, em seguida, a sociedade para a instalação de um regime discricionário.

O “poder” de Bolsonaro talvez advenha mais da força que lhe atribuem adversários — inclusive intelectuais (que usam todo o seu background nas análises) e jornalistas gabaritados — do que do fato de ser presidente e agregador de grupos políticos (minoritários, por certo) e militares (poucos, certamente) golpistas.

Se o presidente tem tanta força, num país de presidencialismo relativamente hipertrofiado, por que, sem nenhum fuzil ou um revólver 22, vem sendo contido pelo Supremo Tribunal Federal — especialmente pela energia, talento e coragem de ministros como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux?

Edson Fachin, Luis Roberto Barroso e Alexandre Moraes, ministros: os três mosqueteiros intimoratos do Supremo Tribunal Federal | Foto: Reprodução

Porque, apesar dos arroubos autoritários e até do desejo de ser ditador, quiçá no estilo “democraduro” do russo Vladimir Putin e do húngaro Viktor Orbán, Bolsonaro permanece como “democrata” (menos ruim do que Putin e Orbán, se é possível a comparação). Por mais complexo que seja dizer isto, porque a maioria sugere o contrário, o presidente não é ditador. Pode até ser simulacro de um ditador. Pode até ser que tenha vocação para ditador (seu filho disse que, para fechar o STF, basta um cabo e um soldado — o que democratas autênticos não dizem). Porém, sendo rebarbativo, o líder do PL não é, ou ainda não é, o que talvez deseje ser: um ditador. É, insistamos, “democrata” — ainda que, ressalvando, com espírito autoritário.

Aqui e ali, ouve-se que o Congresso está “agachado” ante Bolsonaro. Ora, raposas políticas, como Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados, até podem fingir que se “agacham”, mas não se “agacham”. O Centrão, que é uma federação de partidos informal e quase formal, é democrata e não comunga dos ideais autoritários do presidente, de dois de seus filhos e do bolsonarismo. Não quer golpe de maneira alguma. Porque, numa ditadura, o “senhor” do poder — se não precisa respeitar leis democráticas, impondo uma legislação autoritária — não terá necessidade do Centrão, que pode até continuar a existir, mas terá de se submeter.

No momento, paralelamente à conquista de espaço no governo, que significa poder (dinheiro e cargos), o Centrão “modera” Bolsonaro. Goste-se ou não do apetite de membros do Centrão por questões pouco católicas, o fato é que seus integrantes propugnam pela democracia. Eles só podem ser fortes, fingindo que são relativamente fracos, numa democracia.

Alexandre Moraes, Arthur Lira (centro) e Edson Fachin: o presidente da Câmara dos Deputados apoia o governo Bolsonaro, mas não um golpe de Estado | Foto: Secom do TSE

Portanto, sem o apoio do Centrão, que está espraiado pelo país, Bolsonaro não tem condições de convencer a sociedade patropi de que um golpe de Estado é “positivo” e, sobretudo, viável. Em 1964, havia amparo civil (de políticos de primeira linha, como Magalhães Pinto, Milton Campos, Bilac Pinto e Carlos Lacerda) aos golpistas militares. Hoje, fora os aloprados de sempre, repetidores de slogans mas não de ideias, não há um político do primeiro time interessado em golpe de Estado.

Como se sabe, no período republicano, nunca, a rigor, houve um golpe de Estado sem a participação ativa de civis. Os civis estiveram presentes, como figuras de proa, nos putschs de 1889, 1930, 1937, 1945 e 1964. Eram molas propulsoras. Tais golpes foram civis e militares, e não apenas militares. O golpe de 1964 e a ditadura foram tanto militares, a face mais visível e brutal, quanto civis. Políticos experimentados, como Pedro Aleixo, José Maria Alkmin, Milton Campos (por pouco tempo; era um liberal extraordinário), José Sarney, Petrônio Portela, Bilac Pinto, Daniel Krieger, Magalhães Pinto, Marco Maciel, e técnicos refinados, como Carlos Medeiros, Gama e Silva, Roberto Campos, Delfim Netto, Leitão de Abreu, Mario Henrique Simonsen, João Paulo dos Reis Veloso, Ernane Galvêas, Karlos Rischbieter (tradutor de Rilke), foram as principais pilastras da ditadura. A rigor, eles foram os formuladores dos governos ditatoriais.

Hoje, 37 anos depois do fim da ditadura, qual é o político de peso, com influência na Câmara dos Deputados, no Senado e na sociedade, que apoia um golpe de Estado? Aparentemente, nenhum. Bolsonaro, que foi capitão do Exército (sem uma história positiva na caserna) mas é civil, daria um golpe sem base política?. Muito difícil.

Jair Bolsonaro, presidente da República: por que tem medo da democracia? | Foto: Reprodução

Ao lotar seu governo com militares, dando-lhe altos salários, às vezes com gratificações, Bolsonaro — que pode ser “inculto”, no sentido dos altamente letrados, mas é inteligente e pragmático (seu caráter impulsivo é, em parte, racionalizado e, às vezes, resulta de método, e não de “loucura”. A turma de Steve Banon nada tem de maluca) —, sabia o que estava fazendo. Ou seja, trouxe os militares para o seu lado. E, se Lula da Silva disse que, se eleito, vai devolvê-los aos quartéis — no que está coberto de razão (mas falou na hora errada, do ponto de vista político-eleitoral) —, então é “melhor” ficar com o presidente.

O fato de Bolsonaro agradar militares, com cargos e discursos anti-esquerda e anti-corrupção, não significa que terá apoio para um puncht. O preparo intelectual dos protagonistas da Aeronáutica, do Exército (não se tem golpe sem esta força) e Marinha é acima da média. Portanto, sabem, mais do que os bolsonaristas radicais, que não há clima para um golpe. Empresários e banqueiros (assim como políticos) — aliados em 1964 — não querem saber de quarteladas. Porque, num mundo altamente conectado, uma ditadura, tornando o país pária mundial, prejudicará seus negócios e interesses. País isolado pode até ser “bom” para o ditador, mas não será para os homens do dinheiro. Militares não são toupeiras (e não deveriam ser tratados como tais por analistas sérios e equilibrados) e sabem disso, muito mais do que Bolsonaro e, entre outros, Eduardo e Carlos Bolsonaro (Flávio, o mais hábil dos irmãos, não embarca na arca de Noé dos golpistas e vivandeiras).

Braga Netto (à direita) certamente não é o Olímpio Mourão Filho do governo de Jair Bolsonaro | Foto: Mateus Bonomi/Agif/Estadão Conteúdo

Pelo preparo intelectual, pela noção precisa que tem da história, a maioria dos militares certamente não está disponível para tentar “salvar” Bolsonaro e “queimar” sua boa imagem na sociedade. O presidente Bolsonaro, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Emilio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, passará, mas as Forças Armadas, com sua história recente altamente positiva, continuarão.

Pôr radicais nas ruas, uma espécie de lumpemproletariado da direita — mix de integrantes das classes médias, de um moralismo ímpar (crentes, quiçá, numa sociedade perfeita, oásis para incautos) —, para pressionar a democracia, mais do que o Supremo e o PT de Lula da Silva, não é o mesmo que conquistar políticos consagrados e militares de proa das Forças Armadas. O que se quer mesmo é tencionar e assustar a sociedade. Algo do tipo: “Precisamos evitar, a qualquer custo, que o PT volte ao poder”.

Mas isto tem a ver com golpe? Não. Porque não se gesta um golpe com “cuspe” e “bravatas”. Frise-se que o general Braga Netto, o candidato a vice de Bolsonaro, não é um simulacro do general Olímpio Mourão Filho, a “Vaca Fardada” de1964. Ele é respeitado, sobretudo no Exército, mas certamente não teria condições de mobilizar a força para um golpe.

Recentemente, Bolsonaro sugeriu que teme, se perder a eleição, ser preso. O motivo de uma “possível” prisão não explicou. Entretanto, se admite que pode ser preso, o presidente está indicando que se considera relativamente “frágil” (e procede que, sentindo-se acuados, políticos “fracos” às vezes podem cometer insanidades). Porque admite que pode perder a eleição e, ao mesmo tempo, ser condenado pela Justiça e, daí, preso pela polícia.

Um presidente daria um golpe só para não ser preso? É possível. Mas Bolsonaro não é néscio e sabe que, mesmo perdendo e tendo de responder processos, a partir da planície, inclusive saindo da esfera das instâncias superiores da Justiça, dificilmente irá para a cadeia. Desde a liberação de Lula da Silva, será muito difícil colocar outro ex-presidente atrás das grades.

Outro fator “conspira” contra “o” golpe. Do ponto de vista eleitoral, Bolsonaro não é uma galinha morta. As pesquisas de intenção de voto indicam que está “crescendo”, ainda que lentamente, e que Lula da Silva estabilizou-se — num teto alto, ressalte-se. Com viabilidade eleitoral, golpistas se tornam menos golpistas.

Mesmo favorito, Lula da Silva opera, com finura política, para ampliar sua aliança política, buscando o apoio inclusive de partidos menores, como o Avante. Porque sabe que a eleição vai ser muito difícil e tende a ser decidida no segundo turno. O petista, para superar um político que controla a máquina pública — daí o Auxílio Brasil ampliado e o preço da gasolina em queda —, terá de ir atrás de cada voto em todos os Estados. É o que está fazendo. E Bolsonaro está se comportando de maneira mais moderada e enviando recados para os homens do PIB.

Se as condições para um golpe são difíceis, isto não significa que a sociedade não tem de pressionar pela democracia. Tem. Sempre. Um bom exemplo é a carta pela democracia (que assinei), articulada pela Faculdade de Direito da USP. A democracia precisa ser defendida, e com energia. O STF cumpre a sua parte e, aos trancos e barrancos, o Congresso faz o mesmo. Só de não ser golpista, de não aderir ao bolsonarismo radical, já é um avanço.

Para finalizar, uma pergunta: os opositores de Bolsonaro que acreditam em golpe, que “ampliam” sua força, de alguma maneira, ainda que indireta e inconscientemente, não estariam jogando pelas regras do presidente? A política não é o espaço da inocência, e sim do realismo absoluto. Mas, em nome do “bem”, às vezes se excede na exposição do “mal”, o que pode ser um tiro pela culatra. Pois o “mal” demonizado, apresentado como dono da uma força expressiva, por vezes se torna mesmo “invencível”. O presidente, de tão “fraco”, vive falando que é “forte”. Quem é forte precisa dizer isto a todo momento?