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Cada vez menos haverá lugar para uma prática clínica em Psiquiatria, Psicanálise ou Psicologia que não considere o sujeito como efeito de uma cadeia de significantes históricos, econômicos, políticos, religiosos

Marcos Antonio Ribeiro Moraes

Especial para o Jornal Opção

Uma palavra dita pela querida professora Maria das Graças Brasil me marcou profundamente. A admirável mestra era e ainda é professora e médica no Hospital das Clínicas (HC). Fui seu aluno na disciplina de neuropsicologia e um dia, durante uma de suas aulas, eu a ouvi dizer que, sempre quando se deparava com a enorme fila de pacientes à espera de atendimento nos ambulatórios do HC, se lembrava de nós, seus alunos de psicologia. E concluiu: “Uma grande parte daqueles pacientes precisavam apenas de ser escutados, pois seus adoecimentos são sofrimentos psíquicos”. Mas infelizmente essa realidade não mudou; muito ao contrário, vem crescendo a cada dia.

Com certeza, o aumento do sofrimento psíquico nos últimos tempos está relacionado à gravidade da situação que estamos enfrentando, sobretudo agora que entramos para um terceiro ano de pandemia. Mas, segundo dados de pesquisas, postados pela Agência Nacional de Saúde (ANS), essa situação vem de mais longe. Tais dados apontam que, já em 2019, os beneficiários de planos de saúde no Brasil realizaram cerca de 29 milhões de procedimentos relacionados ao cuidado em saúde mental. Tais dados, comparados aos de 2011, mostram um aumento de 167% na procura desses serviços.

Dados de estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) revelam que o Brasil é o país mais ansioso do mundo (9,3%) e o segundo maior das Américas em depressão (5,8%). É nesse contexto que também vem ocorrendo, por diferentes motivações e interesses, o crescimento da oferta de tratamentos psíquico e de formação clínica para quem se interessa em atuar com saúde mental. Por um lado, é positivo que haja essa reação, como preocupação e enfrentamento do problema. Sobretudo se levar a uma maior qualificação e democratização do acesso aos serviços em saúde mental. Mas vale considerar que entre tais interesses não ficam fora aqueles mercadológicos. De toda forma, posso dizer que nunca vi tantas propostas de cursos de formação em Psicanálise, como nos últimos tempos. Garantindo a seus candidatos que, ao final de percursos curtíssimos, os mesmos estarão prontos para atuarem na clínica. Outro fato relevante é a quantidade de cursos de graduação em Psicologia que foram surgindo nos últimos anos. Tenho notado também que muitos médicos psiquiatras vêm praticando atendimento psicoterápico. Vale mencionar outras práticas conduzidas por terapeutas holísticos e coachings.

Essa questão da formação para a prática da escuta clínica se acentuou nos últimos dias, a partir de uma autorização dada pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), para que uma universidade no Brasil, ofereça uma graduação em Psicanálise. E nesse caso, o modo como essa proposta vem sendo divulgada, também apresenta características de forte interesse mercadológico, em detrimento do que a tradição psicanalítica propõe para a formação de psicanalistas. Isso ficou bem demonstrado no manifesto contra a criação dessa graduação em Psicanálise, publicado recentemente pelo movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. A partir de então, essa questão vem sendo amplamente debatida no âmbito da formação de psicanalistas, de forma muito rica e valida.

Mas a questão que eu proponho aqui é um pouco mais ampla, ou seja, a formação para a escuta clínica, como intervenção em saúde mental, pode ser oferecida como uma mercadoria como outras formações tecnológicas?   No meu entendimento e de muitos outros colegas, isso não é possível. E seria importante entender por que a oferta de tratamento e formação de clínicos, não pode se reduzir a uma oferta de mercado como outras, no campo das ciências, das tecnologias e nem como se faz em outras áreas da saúde. Os argumentos para tal justificativa são muitos e até mesmo históricos. Aqui, eu vou me limitar a citar dois, que considero de muita importância. Primeiramente vale compreender que, a prática clínica em psiquiatria, psicanálise e psicologia, tem como objeto de estudo e intervenção o aparelho psíquico que é diferente de um órgão anatômico.  As outras áreas da saúde lidam com órgãos do corpo humano que, no exame clínico são palpáveis, escutáveis, verificados em exames de imagem e laboratoriais. Mas o aparelho psíquico é um aparato de memória, percepções e linguagem.  Ele tem bases cerebrais orgânicas, para a sua estruturação e funcionamento, mas tal aparelho não se restringe à fisiologia cerebral. Não sendo de todo palpável.

Dessa forma o sofrimento psíquico, objeto de nossa atuação em saúde mental, articula de forma dinâmica e pulsional, questões biológicas, familiares e sociais.  Inerentes à   constituição psíquica de um sujeito e sua existência no campo da linguagem, na interação com o outro. Constituição referida à sua história, que pode remontar até a gerações anteriores. Isso inclusive faz com que, entre as áreas da medicina, a psiquiatria seja uma clínica com características diferenciadas das demais. O diagnóstico em psiquiatria não é passivo de ser totalmente fechado em todos os casos.  Uma vez que, o psiquiatra não tem como se servir de exames de imagem ou de outros marcadores possíveis de serem correlacionados, em todos os casos, com a queixa ou sintomas apresentados pelo paciente, como faz uma cardiologista, por exemplo. Essa questão do fechamento do diagnóstico, portanto, permanece um assunto delicado e terreno sinuoso para psiquiatras, psicanalistas e psicólogos.  É por isso que a formação para essa modalidade clínica é uma das mais complexas, impossível de ser ofertada como algo feito às pressas, ou produzido em série. Ao contrário é um trabalho de toda uma vida.

Dito isso, fica mais fácil compreender o segundo ponto que quero abordar, ou seja, apenas uma formação, enquanto percurso teórico, não alcança — nem no campo da psiquiatria, psicologia ou psicanálise — formar um candidato à clínica, de uma vez por todas, conferindo segurança para que possam se sustentar nessa referida prática. Essa é uma questão de difícil entendimento, tanto para quem deseja exercer a clínica como para quem busca o atendimento em saúde mental. Pois nessa seara, não basta voluntarismo ou boa vontade. Segundo o velho ditado, “de boa vontade o inferno está cheio”.  Sim a vida pode se tornar um inferno para quem adentra no campo clínico em saúde mental, sem as bases e os suportes necessários. Como, também para aqueles que, porventura tenham seus tratamentos conduzidos por   tais “profissionais”.

Dizer isso, não é tocar o terror. Pois não podemos desconsiderar que os conteúdos que regem predominantemente o funcionamento psíquico, são da ordem de fortes e indomáveis desejos inconscientes. Freud diz que, nesse ofício, ao pedirmos que o paciente fale, de algum modo estamos convocando demônios que carecem de ser nomeados. E o perigo é justamente convocá-los sem que haja condições de nomeá-los. Portando, para quem se dispõe a lidar com esses conteúdos do inconsciente, se faz necessário que experimente, de algum modo, o seu próprio inconsciente. Dito de outro modo, é de suma importância que, aquele que se propõe a trabalhar em saúde mental, busque como parte de sua formação permanente, tratar os seus próprios demônios.

A formação de um candidato a escuta clínica   não é de ordem cronológica, mas sim dá lógica do desejo. Trata-se de decidir pagar um preço por esse desejo, que incide em muitos   atravessamentos no campo de sua estrutura desejante. Pois desejar e ser desejado será algo sempre em questão no decorrer da relação de escuta clínica. A esse respeito, Lacan nos possibilita entender a importância desse desejo. Bem como a diferenciarmos, desejo de analista e desejo de ser analista. Acho que esse seu entendimento pode ser parafraseado para pensar a diferença entre, desejo clínico e desejo de ser clínico. Qual seria então a diferença entre desejo de analista e de ser analista? Esse é um tema para muita leitura e aprofundamento. Mas a título de um esclarecimento inicial, o desejo de ser analista se refere à determinação de ser, a todo custo, um profissional bem-sucedido, pelo domínio de um saber a priori, sobre todo e qualquer sintoma. O que Freud chamou de furor sanandis, ou seja, querer curar a todo custo, podendo assim atropelar o paciente em seu ritmo e processo. O desejo de analista se refere antes de tudo, ao desejo de saber sobre o sintoma de cada sujeito, como um enigma único. Abrindo mão de   se sustentar no lugar de quem já sabe o bastante sobre o sintoma de seu paciente. De tal modo, se trata de suportar um lugar de ser vazio. E desde essa posição, apoiar aquele que sofre a saber, ele mesmo, sobre seu sofrimento.  Acessando meios de atravessá-lo, e se situar em melhores e mais saudáveis posições. Essa não é uma tarefa fácil. Desde os tempos de Freud. Foi assim, não por acaso que sua paciente Emmy Von N, num belo dia, pediu que ele se calasse e a escutasse. Assim surgiu a psicanálise, como uma prática baseada no pressuposto de que, cada sujeito precisa ser escutado, para poder se escutar e se dar conta do que é possível para si mesmo na lida com o seu sofrimento. Isso supõe pagar como preço, a suspensão do que sabemos, de nossas referências morais, religiosas, culturais, entre tantos a priori.

No cotidiano da escuta clínica, é comum pacientes dizerem que encontraram por si mesmos a melhor maneira de lidar com seu sintoma, de fazer uso do seu psicotrópico, ou aqueles que retornam dizendo que a sessão anterior, fora decisiva em sua vida, para que pudesse se reposicionar diante de um determinado sofrimento. E de início, não sabemos exatamente em que ponto o sujeito atravessou, em sua cadeia significante, esse saber que possibilitou seu deslocamento para uma melhor posição para si mesmo. O que importa é que   esse atravessamento aconteça do lado do paciente.

Escutar não é tarefa fácil, é uma arte, e como tal supõe afinar e refinar o instrumento. A fila dos que carecem de escuta, com certeza aumentou enormemente nos últimos anos. Me parece que no contexto da pandemia isso só ficou mais evidente, revelando que somente a medicação não é suficiente, mas que é necessário falar com alguém que tenha escuta. Portanto, vale irmos além das disputas por reserva de mercado, diferenças teóricas, institucionais e acadêmicas, pois vale mais abrirmos espaço de acessos democráticos e qualificados em saúde mental. Cada vez menos haverá lugar para uma prática clínica em Psiquiatria, Psicanálise ou Psicologia que não considere o sujeito como efeito de uma cadeia de significantes históricos, econômicos, políticos, religiosos. Inscritos e sustentando a interação entre um cérebro biológico e o inconsciente estruturado como linguagem, num contexto familiar e sociocultural.

Marcos Antonio Ribeiro Moraes é psicanalista. É colaborador do Jornal Opção.