A livraria, homenageada por Drummond de Andrade com um poema, não consegue mais competir com gigantes empresariais que atuam na internet ou têm megalivrarias

Na música “Viaduto Santa Efigênia” (https://www.youtube.com/watch?v=KSAEf7EtjPM), Adoniran Barbosa transforma uma coisa, um objeto inanimado, praticamente num ser, do qual se pode sentir saudade. Cria-se uma identidade entre a obra e uma mulher, Eugênia, que até garante a rima. “Eu me lembro/Que uma vez você me disse/Que um dia que demolissem o viaduto/Que tristeza, você usava luto/Arrumava sua mudança/E ia embora pro interior”. No caso de uma livraria, mais significativo do que um viaduto, a lembrança (e o lamento) certamente é ou deveria ser mais forte. Adoniram, atentíssimo às mudanças na arquitetura urbana de São Paulo, certamente mudaria os versos de sua música ao saber do fechamento da Livraria Leonardo da Vinci: “Que tristeza, você usava luto/Arrumava sua mudança/E ia embora pra Travessa e pra a Cultura”. Mais ou menos assim, ainda que, em termos musicais, com menos sentido e força.

A Livraria Leonardo da Vinci torna o Rio de Janeiro mais Rio — mais humano, vivo e delicado — há 63 anos. Criada pelo romeno Andrei Duchiade, em 1952, a livraria vai queimar seu estoque de 100 mil exemplares a partir de segunda-feira , 1º, pois vai fechar as portas. A proprietária Milena Duchiade disse aos repórteres Mateus Campos e Maurício Meireles, de “O Globo”, que não é mais possível operar no vermelho. Duas de suas quatro salas no Edifício Marquês de Herval, na Avenida Rio Branco, já estão desocupadas.

Pré-internet, a Leonardo da Vinci mantinha sua seleta clientela abastecida de lançamentos internacionais, sobretudo livros da Europa e dos Estados Unidos. O poeta Carlos Drummond de Andrade, habitué da livraria, homenageou-a com um belo poema (leia abaixo).

“Teimosia tem limite. Nosso modelo de negócio é inviável. Nós estamos sendo punidos por nossas qualidades. Nossas virtudes tornaram-se defeitos. Não temos um café, não vendemos papelaria, nem informática. Vendemos pouca autoajuda e poucos best sellers. Temos um nicho, muito específico, que está sob pressão”, diz Milena Duchiade. Segundo “O Globo”, citando a livreira, “o modelo de negócios, baseado em fidelização da clientela, títulos especializados e, por conta disso, em um ritmo lento de vendas, esgotou-se de vez com o protagonismo de lojas virtuais e megalivrarias”.

As obras na Avenida Rio Branco, sublinha Milena Duchiade, foram “a pá de cal que faltava”. Segundo a livreira, “no fim de 2014, em novembro, começaram as obras que destruíram a avenida. As pessoas não conseguem circular mais por aqui”.

Milena Duchiade não volta atrás e vai mesmo fechar a Leonardo da Vinci, mas admite passá-la adiante, com a manutenção do nome. “Estou aberta a conversa e propostas. Meu sonho é que alguém continue a livraria. A Confeitaria Colombo, por exemplo, não pertence à mesma família, mas continua. No exterior, existe um movimento de jovens que retomam livrarias antigas e botam sangue novo, dinheiro novo, ideias novas”, frisa a livreira.

A Leonardo da Vinci é um símbolo do Rio civilizado — agora, mais bárbaro e brutal. No dia do fechamento, o Estado deveria decretar luto oficial por 365 dias.

[A fotografia de Carlos Drummond de Andrade na Livraria Leonardo da Vinci é da Editora Abril]

Poesia de Carlos Drummond de Andrade sobre a livraria Leonardo Da Vinci

Ao termo da espiral

que disfarça o caminho

com espadanas de fonte,

e ao peso do concreto

de vinte pavimentos,

a loja subterrânea

expõe os seus tesouros

como se defendesse

de fomes apressadas.

Ao nível do tumulto

de rodas e de pés,

não se decifra a oculta

sinfonia de letras

e cores enlaçadas

no silêncio dos livros

abertos em gravura.

Aquário de aquarelas,

mosaicos, bronzes,

nus,

arabescos de Klee,

piscina onde flutuam

sistemas e delírios

mansos de filósofos,

sentido e sem-sentido

das ciências e artes

de viver: a quem sabe

mergulhar numa página,

o trampolim se oferta.

A vida chega aqui

filtrada em pensamento

que não fere; no enlevo

tátil-visual de idéias

reveladas na trama

do papel e que afloram

aladamente dançam

quatro metros abaixo

do solo e das angústias

o seu balé de essências

para o leitor liberto.