O que move um sujeito em risco de suicídio parece ser o desejo fracassado de retomar vínculos, referências com as quais possa se identificar, se situar e ser sustentando na cena da vida

Marcos Antônio Ribeiro Moraes

Especial para o Jornal Opção

Pintura de Rudolf Brink

Põe-me como um selo sobre teu coração,

como um selo sobre teu braço!

Porque é forte o amor como a morte,

e a paixão é violenta como o abismo:

suas centelhas são centelhas de fogo,

labaredas divinas. Cântico dos cânticos

A campanha setembro amarelo tornou-se tradição desde 2015, pois o dia 10 de setembro passou a ser considerado o dia mundial de prevenção ao suicídio, a partir de 2003. A cor amarela alerta para essa prevenção, a partir das formas de padecimento psíquico, especificamente a ansiedade e a depressão. Dessa vez, de maneira diferenciada dos anos anteriores, esse tema foi relacionado aos impactos da pandemia da Covid-19 para a saúde mental. Sabemos que na verdade a pandemia do novo coronavírus leva, no seu bojo, grandes ondas de agressão à vida. A onda propriamente virótica, com todas os sintomas respiratórios e o risco de desfechos fatais. A onda que assola a nossa condição econômica e, como impacto de tudo isso, uma outra onda que atenta violentamente contra a nossa condição psíquica, que inevitavelmente causará por muito tempo sofrimentos, mal-estar, graves crises e aumento nos casos de suicídio, que nos últimos meses já vem sendo verificado.

Recentemente, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) realizou uma pesquisa com os seus associados de todo o país e o resultado mostra que 89,2% deles destacaram o agravamento de quadros psiquiátricos nos pacientes devido à pandemia de Covid-19. Além disso, 48% dos psiquiatras ouvidos perceberam aumento em seus atendimentos nos últimos meses. A demanda de pacientes novos chama a atenção e foi relatada por 67,8% dos psiquiatras — na maioria, são pessoas que nunca haviam apresentado sintomas psiquiátricos. Além disso, 69,3% dos entrevistados no estudo informaram que atenderam pacientes que já haviam recebido alta médica e que tiveram recaída de sintomas.

Pintura de Edward Hopper

Os impactos do contexto atual afetam também crianças e adolescentes. Uma pesquisa realizada no mês de agosto pela Sociedade Brasileira de Pediatria mostra como o confinamento pela pandemia e a falta de interação social tem afetado esses sujeitos: 88% dos pediatras ouvidos no estudo afirmam que as crianças apresentam alterações comportamentais. A mais frequente tem sido a oscilação de humor, citada por 75% dos participantes. Todos esses índices nos preocupam muito, pois sabemos que representam risco para o suicídio.

O que leva um sujeito a existir?

Nesse sentido vale retomar a intrigante questão acerca do que leva um sujeito a tomar a morte como uma saída para o seu sofrimento, a desistir de sua existência. Esse é um enigma anterior à atual pandemia, objeto de estudo das diferentes áreas e campos do conhecimento e que permanece atual. Na tentativa de um possível entendimento, pensei em inverter a questão, ou seja, o que leva um sujeito a existir?

De imediato, a primeira resposta seria o amor. A psicanálise nos ajuda a entender que o início da existência de um sujeito é marcado por um start, que põe em funcionamento um circuito pulsional, seria a partir desse momento que o sujeito passa a existir, no campo da linguagem, referido a um Outro, num necessário jogo de presença e ausência desse Outro. Esse start é dado pela junção entre afeto e olhar, voz, cheiros, nomeações e demais recursos de linguagem.

Pintura de Edward Hopper

Nesse momento inaugural da existência do sujeito, a cena é de um impasse, uma batalha entre existir ou não, em certos casos entre a vida e a morte. A cena que temos aqui é a do bebê, que, de início, não se encontra aparelhado biologicamente para existir de forma autônoma e, se não for cuidado, não receber investimentos afetivos, poderá não existir psiquicamente e às vezes morrer. Sendo assim, a sua existência, como diz Jacques Lacan (1979), no Seminário 11, se dará no campo do Outro: “Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem de aparecer”.

Sigmund Freud (1914) já havia nos ensinado que o eu surge numa relação de apoio, por meio do qual se instala e veicula a pulsão, a energia que continuará sendo a sustentação da relação sujeito – Outro ao longo de sua existência. É aqui que mora o perigo, pois, quando há falhas neste circuito, podem ocorrer diversos riscos e as várias possibilidades de sofrimentos, além do risco de que o sujeito desista de existir, chegando a sair radicalmente da cena, por via de um ato derradeiro, a passagem ao ato, propriamente dita.

Ainda sobre essa relação entre o amor, a vida e a morte, no ato da constituição psíquica vale ressaltar a relevância das posições que sujeito e objeto ocupam na cena da existência. Tudo isso desde o início se encontra orquestrado pela dinâmica do desejo, pela lógica da fantasia, que irá definir posições nesta cena. Dentre essas fantasias é importante destacar aquela em que o sujeito se coloca na condição de um objeto para o outro ou ainda a fantasia de que se tem o outro como objeto. Podemos ainda falar de uma posição em que o outro se coloca e pode ser tomado como uma ameaça, como aquele que inviabiliza a existência do sujeito, sua autonomia e liberdade, como um outro onipresente, onipotente, sem falta, gozador de tudo e de todos, que se vale do lugar de exceção à lei, assumindo ser a lei, como nos modelos fascistas e autoritários.

Pintura de Edward Hopper

Esses diferentes modos de fantasia estão diretamente ligados às diversas formas de sofrimentos e de mal-estar do sujeito. Assim como não existe um só modo de sofrer, não seria possível falar de suicídio no singular, pois existem diferentes suicídios. Incluindo aquele do sujeito que não consegue mais ver esperança numa determinada ordem social estabelecida. Não tenho conhecimento de estudos que correlacionem o suicídio às perdas de direitos sociais e de liberdade de expressão na atual realidade que vivemos no Brasil. Mas já temos notícias de situações dessa natureza, sobretudo no meio artístico, entre outros, portanto cada sofrimento pode ser traduzido de forma singular, trata-se de diferentes entendimentos sobre condições diversas de existência. Disso decorrem diferentes lamentos ou alertas, tais como: “Não consigo viver sem tal pessoa, sem ela minha vida se acabou” ou, no outro extremo, “Me sinto sufocado, pois fulano não consegue viver sem mim”, “Sofro, mas sei que sou indispensável em sua vida”, “Às vezes tenho vontade de sumir sem endereço” e até mesmo os que dizem que “Não dá mais para viver nesse país”.

Trata-se aqui de diferentes expressões de angústias e inibições, marcadas pela difícil equação entre a presença e ausência do Outro, equação essa que pode ser alterada por diferentes intercorrências, como o fim de uma relação, a intensificação da presença do Outro na vida de um sujeito e até mesmo uma mudança radical de ordem social. Em “Inibição, Sintoma e Angústia”, Freud (1926) apresenta como uma possível causa dos estados melancólicos a dificuldade de deixar partir o objeto, de aceitar o corte com aquele que faz falta. Já Lacan (1962-63), no Seminário 10, intitulado “A Angústia”, diz que esse afeto é provocado pela falta da falta, ou seja, porque nada faz barreira ou intervalo entre o sujeito e Outro, ou seja, o “tudo junto e misturado” nem sempre é uma boa.

Sabemos que essa questão da presença e ausência no campo das relações humanas já sofria grandes impactos com o aumento da utilização das telas eletrônicas, já nos perguntávamos sobre o impacto disso, sobretudo se no contato humano, realizado por meios eletrônicos, estaria garantida uma boa qualidade da circulação de afetos e a capacidade de suportar a falta. Mas inesperadamente fomos surpreendidos por essa pandemia que, sem dúvida, mudou fortemente a configuração da cena de cada um de nós. Seja no que se refere a separações, faltas radicais de pessoas que amamos, por conta do isolamento social, pela ocorrência de mortes inesperadas, mas também porque passamos a conviver de forma muito intensa, muitas vezes sem a dita necessária falta. Tudo isso nos leva a evidências de novas configurações sintomáticas.

Pintura de Edward Hopper
Carta de amor a ser decifrada

Em todo caso, pensar o suicídio como um sintoma é de suma importância. Cada sintoma tem sempre um endereçamento ao Outro, é uma carta de amor a ser decifrada, cheia de rasuras, palavras trocadas, imagens condensadas, deslocadas e confusas, mas é sempre uma carta a ser decifrada, por vezes enviada e reenviada com insistência aos seus destinatários. Nesse sentido, a pessoa que comete suicídio vai dando sinais por meio de falas e diferentes tentativas até a consumação do ato. Por isso não seria correto dizer “quem fala não faz” ou que “foi apenas para chamar a atenção”.

Na verdade, a tentativa de suicídio, mesmo que fracassada, já é um endereçamento dessa carta que, quando não lida e não entendida, pode acontecer que seja endereçada novamente, também a nós psicanalistas, terapeutas e cuidadores. Necessariamente não se trata de querer morrer, mas de querer dizer e ser escutado, se vincular pela via do afeto, olha aí o amor e a morte em cena.

Em última instância, o que move um sujeito em risco de suicídio parece ser o desejo fracassado de retomar vínculos, referências com as quais possa se identificar, se situar e ser sustentado na cena da vida. Isso pode ser traduzido por encontrar-se numa cena bacana de amor, o que Freud (1915) denominou por relação de transferência, que alude ao insistente desejo de se reencontrar na cena do primeiro amor. Tudo dependerá da possibilidade de um bom encontro, pois os desfechos fatais apontam para o mau encontro ou o desencontro.

Pintura de Edward Hopper

O fracasso num ato suicida é sempre uma chance para a escuta, um tempo a mais para compreender a nossa dimensão e o nosso lugar como Outro nesse ato. Talvez seja um dos poucos momentos para se estabelecer um saber sobre o que se passa nessa cena, sobre o enigma do suicídio de um determinado sujeito. Aceitar esse momento como tempo para compreender e agir é fazer algo mais. Mais do que apenas evitar que o sujeito morra ou faça outras tentativas. Trata-se da incontornável escuta desse sujeito. Isso supõe acreditar que a palavra pode gerar sentidos e fazer barreiras onde impera o real da morte.

O sujeito em risco de suicídio se encontra num estado de embaraço, necessita de um dispositivo que possibilite o atravessamento desse estado que permita nomear, diante de alguém que, qualificadamente consiga escutar aquilo que permanece retido em estado de intenso sofrimento e angústia, que em muitos casos seria um verdadeiro aniquilamento, onde a palavra se encontra ausente, “não tenho palavras”. De tal forma o sujeito que não encontra a possibilidade de falar, atua, chegando a passar ao ato, quando não vê saídas para o insuportável. O suicídio como ato é sempre endereçado, não somente a nós que estamos na clínica, no setor da saúde. Trata-se de uma urgência dirigida a diferentes instituições, interpela a sociedade e o estado. Cada de um de nós somos desafiados, em seu saber fazer, convocados a abrir espaços criativos e formas de se haver com o insuportável.  Espaços de nomeação do mal-estar no campo da palavra, das artes, entre outros.

Os diferentes dispositivos de escuta e acolhimento de um dizer sobre a dor de existir são espaços no campo da linguagem, lócus da existência e resistência do sujeito no campo simbólico. Espaços assim podem permitir, de forma amorosa e suportável, a memória do fato traumático vinculado ao seu padecimento e ao insuportável dessa dor. Uma experiência que conduza o sujeito à produção de saber e saída para seu sofrimento. Isso supõe apostar na escuta, no contexto transferencial, como um lugar onde opera a força do amor, que é forte como a morte.

Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, membro da APPOA, professor da PUC-Goiás. É colaborador do Jornal Opção.

Referências

FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago.

________, [1915] Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago.

________, [1926] Inibição, sintoma e angústia (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago.

LACAN, J. (1962-1963) Seminário 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

______, (1979) Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.