Dois intelectuais de primeira linha morreram em 2022: Servito Menezes (em julho) e Joel Pimentel Ulhôa (na segunda-feira, 12, de câncer no pulmão, aos 88 anos), ambos professores da Universidade Federal de Goiás, portanto responsáveis pela excelência da instituição.

Servito Menezes, sociólogo, era um mestre das ciências políticas. Conheci o professor na UFG, quando estudava Filosofia e, depois, Jornalismo. Era um intelectual acadêmico, de sólida formação, mas nada pernóstico e bacharelesco (não era chegado à mania da citação despropositada).

Pode-se dizer que Servito Menezes era um intelectual público, por isso escreveu em jornais, como o “Diário da Manhã” e o Jornal Opção.

O intelectual público é aquele que, tendo formação acadêmica rigorosa, participa ativamente dos debates a respeito de seu país e do mundo. Servito, sem chegar a ser meu professor, acabou por ser um de meus mestres preferidos. Nos corredores da UFG (onde também dava aula a grande Maria Alice, sua mulher), Servito jamais deixava de conversar com alunos de vários cursos, quase sempre a respeito da situação política do país e de Goiás.

Servito Menezes foi professor da Universidade Federal de Goiás | Foto: Reprodução

Lembro-me de Servito dizer que a ditadura, no início da década de 1980, vivia os estertores e que o país começava a se preparar para a democracia. Uma vez disse, numa roda de uns dez alunos, mais ou menos assim: “O que se deve perceber é que a sociedade é democrática, ditatorial é o governo dos militares. Por isso a transição será menos complicada. Afinal, a sociedade continua. Quem ‘sairá’ é a ditadura”.

Adepto da tese de que é preciso transformar o mundo, Servito participou da gestão do governo do Estado, como secretário de Comunicação e em outros setores. Ele ajudava muito o ex-governador Marconi Perillo porque não era um burocrata. Sabia avaliar cenários como poucos e, por isso, se tornou uma espécie de orientador político do jovem gestor, entre as décadas de 1990 e 2000. Num almoço, ele me disse uma vez, rindo: “Posso ajudar em alguma coisa, pois sou um homem de dois séculos”.

Servito era um gentleman, portanto um homem-civilização. Não tinha nenhum ranço autoritário. Era, por assim dizer, um socialdemocrata, sempre desconfiado das garras dos que, criticando o autoritarismo das ditaduras, não eram, na prática, anti-autoritários.

Conversar com Servito era aprender em tempo integral. Era um mestre que ensinava mesmo quando não parecia que estava ensinando. Como grande leitor de jornais, era muito bem-informado. Houve uma época que chegou a pensar em lançar um jornal e me consultou a respeito. Acabou desistindo. Porque fazer jornal é difícil, quase uma “loucura sã”, às vezes uma “normalidade insana”.

Joel Pimentel Ulhôa

No curso de Filosofia da UFG (que não concluí), fui aluno de Chico Linhares (o mais grego dos professores — inteligente, divertido e aberto ao debate), José Ternes (um mestre rigoroso, dos melhores), Gerardus (holandês), Ives, Darci Accorsi. Eu sempre conversava, quando ele tinha tempo — era muito ocupado —, com o professor Jordino (que estudou na Alemanha e era um mestre na filosofia de Heidegger e Descartes). Não fui aluno de Joel Ulhôa, mas conversei com ele algumas vezes, sobretudo depois que me tornei jornalista e, às vezes, ligava para consultar o professor.

Desprezar a política e os políticos é uma maneira ingênua e perigosa de fazer política, de contribuir para que formas insidiosas de totalitarismos invadam e envenenem o ambiente em que vivemos. — Joel Pimentel Ulhôa

Joel Ulhôa unia inteligência aguçada e fina, leituras digeridas e delicadeza no trato pessoal. Nunca deixou de me atender. Era sempre gentil. Eu às vezes ligava não para entrevistá-lo, e sim para pedir ajuda para interpretar um fato político. Algo assim. Ele em nenhum momento deixava de conversar a respeito, me orientando com sua correção habitual. Max Weber, por certo, não era sua praia, mas, quando liguei para perguntar a respeito do “político profissional”, da questão da vocação política, ele me recomendou que lesse o sociólogo alemão. Sugeriu me emprestar o livro. Acabei adquirindo a obra (sobre política) e aproveitei e li “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (uma obra seminal).

O mestre Joel Ulhôa não era um intelectual vaidoso. Se fosse, teria se tornado professor da USP ou da Unicamp. Ele optou por dar sua contribuição à UFG, quer dizer, aos alunos de Goiás; portanto, serviu ao Estado — como um grande homem público que era. Um gigante, digamos.

Certa feita, quando comentei que Paul Johnson havia criticado duramente Rousseau, no livro “Os Intelectuais”, Joel Ulhôa me disse, aparentemente divertido: “Pois é, Euler, mas Rousseau continua incólume — é uma rocha secular”. “Rousseau e a Utopia da Soberania Popular” (Editora UFG), de 1996, é um dos livros de Joel Ulhôa. O autor mostra uma ampla compreensão do filósofo e de outros autores. Não se trata de repetir Rousseau, de citá-lo fartamente, mas de ampliar o entendimento de seu pensamento à luz de novas ideias, inclusive do autor.

“Rousseau e a Utopia da Soberania Popular” se tornou uma obra de referência. Joel Ulhôa explicou a razão ao Só Filosofia: “Rousseau é um deles e, diga-se de passagem, com uma atualidade exemplar. Sua tese, por exemplo, da soberania popular, que maravilha para quem se preocupa em deslindar os meandros da realidade política de uma democracia autêntica”.

Dotado de uma humildade vigilante, como a de Manuel Bandeira, o mestre não diz que o sucesso de seu livro se deve também à qualidade de suas reflexões. Rousseau fica maior, e até mais atual, ao ser examinado pelo cérebro privilegiado e atento do scholar do Cerrado. Ele não “repete”, e sim “inova” Rousseau — o torna nosso contemporâneo, o “ressuscita”.

Numa entrevista ao site Só Filosofia, Joel Ulhôa frisou: “A discordância do aluno para com o professor deve existir, deve ser estimulada. Sem ela não há vida intelectual ativa e formamos robôs. Sempre entendi a aula como um momento político da maior relevância e nisso vai muito de minha visão de universidade. A universidade não é feita apenas para formar, para diplomar alunos, dar-lhes uma profissão, inseri-los no mercado de trabalho. A universidade foi feita para criar cultura, mudar a sociedade, desenvolver a cidadania e o respeito pela coisa pública, criar, enfim, vidas”. O mestre é isto: um sábio e um democrata.

Na mesma entrevista, Joel Ulhôa sublinhou: “A política é uma coisa muito nobre, que se manifesta em todos os sentidos, dentro e fora das salas de aula, direta ou indiretamente, na vida, na sociedade, em cada um de nós. Desprezar a política e os políticos é uma maneira ingênua e perigosa de fazer política, de contribuir para que formas insidiosas de totalitarismos invadam e envenenem o ambiente em que vivemos”.

A morte é inelutável, mas, ainda assim, lamento a morte de Servito Menezes e Joel Ulhôa — intelectuais que foram mestres nas e fora das salas de aula. Mestre para a vida, para toda a vida. De alguma maneira, os dois continuam vivos… reverberando.