O que é uma vereda? É um tipo de formação vegetal do cerrado com características bem marcantes. Apresentam-se em um ambiente de úmido a pantanoso, com paisagem na maioria das vezes composta por gramíneas e com predomínio de buritis. (“Estado Minas”)

A série “Veredas mortas”, do jornal “Estado de Minas”, merece ser transformada em livro. Tal sua qualidade jornalística. É reportagem de primeira linha. Coisa rara nos dias atuais.

Em 1956, o escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) publicou “Grande Sertão: Veredas”, romance que — como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos — é um divisor de águas na literatura brasileira. Trata-se de um livro incontornável. Seu título original era “Veredas Mortas”, o mesmo da excelente série do “Estado de Minas”.

O jornal de Belo Horizonte diz, com razão, que “Veredas Mortas”, embora mais lúgubre e menos poético do que “Grande Sertão: Veredas”, hoje define mais o sertão que Guimarães Rosa revelou com tanta precisão e, sim, poesia. Talvez seja possível sugerir que o prosador reinventou a Língua Portuguesa, ou parte dela, para conseguir contar a história da terra e do indivíduo. O mineiro de Cordisburgo transforma a linguagem em personagem onipresente em todo o romance de formação do Brasil.

Pelo material apurado e divulgado pelos jornalistas Mateus Parreiras e Luiz Ribeiro — candidatos a vencer o Prêmio Esso de Jornalismo —, é possível sugerir que, com o fim das veredas e a secura das águas, o título do romance de Guimarães Rosa talvez tenha sido reinventado pela realidade — “Grande Sertão: Secas”.

Comento a seguir uma das reportagens (há várias, joias da coroa, diria um mineiro de antanho), publicadas sob o título de “Veredas Mortas — Os oásis do sertão de Guimarães Rosa estão secando”.

Mateus Parreiras e Luiz Ribeiro começam citando o Noroeste e o Norte de Minas e a trijunção Minas, Goiás e Bahia. A palavra trijunção agradaria Guimarães Rosa, por certo.

Os repórteres assinalam que “o ecossistema de vereda vem sendo dizimado desde as regiões Noroeste e Norte de Minas Gerais, também na chamada trijunção mineira com Goiás e Bahia”.

De acordo com o jornal, que está vasculhando o sertão de Minas — que quase não há mais, como a Itabira do poeta Carlos Drummond de Andrade — com, digamos, lupa, “a paisagem vai definhando na vida real no mesmo compasso do bioma que a abriga, o cerrado, o segundo mais devastado do Brasil, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais”.

Sugiro ao leitor que observe os trechos entre aspas, escritos pelos repórteres. São uma mistura de ciência e, na qualidade do texto, de literatura. Trata-se de uma reportagem guimaraesrosiana.

Segundo especialistas, no registro do “Estado de Minas”, “nesse ritmo de destruição não haverá espaço para a sobrevivência do cerrado natural e das veredas, o que aproxima essa paisagem do primeiro título pensado por Guimarães Rosa para o que se tornaria sua obra maior, mencionado há 70 anos na revista ‘O Cruzeiro’: em 17 de abril de 1954, a publicação revelava que o autor batizaria seu livro como ‘Veredas Mortas’. O nome consagrado foi outro. Já o título abandonado soa, hoje, como premonição”.

Os repórteres informam que “os impactos, condições ambientais e climáticas em 55 municípios mineiros, baianos e goianos que têm registros literários e históricos deixados por Guimarães Rosa naquela época mostram uma brutal degradação”.

Guimarães Rosa talvez mudasse o título para “Grande Sertão: Secas” | Foto: Reprodução

A região descrita por Guimarães Rosa, com razão e sensibilidade, está deixando de ser reservas ambientais de Minas e, portanto, do país. Lá está a “‘caixa d’água’ que irriga afluentes do Rio São Francisco, como o Urucuia, o Paracatu e o Rio das Velhas, essenciais para a agricultura, abastecimento e comércio brasileiros”. O velho Chico nasce em Minas, na Serra da Canastra, na região dos queijos que tanto agradam brasileiros quanto franceses. Estive lá, em 2021, e pude ver a impressionante (e pequena) nascente do São-Chico.

A dupla de jornalistas enfatiza que “as matas extensas e de vegetação tortuosa e os buritis imponentes característicos das veredas vão sucumbindo, tombando para dar lugar aos eucaliptos, plantações, pastagens e erosões em desertificação. O cerrado arde em carvão; rios secam; veredas são soterradas; nascentes se retraem solo adentro. O calor, marca do sertão, torna-se mais e mais esturricante, agravando todo o processo. E se realimentando dele”.

“A média de temperaturas máximas no já bastante degradado sertão pode aumentar 1,4ºC, entre 2021 e 2040, e até 2,52ºC, entre 2041 e 2060, simplesmente se nenhum impacto ambiental, emissão de carbono ou calor for refreado. Nada precisaria piorar para a situação já crítica seguir se degradando, já que na última década a temperatura global se elevou 1,1ºC”, escrevem Mateus Parreiras e Luiz Ribeiro. Os dados foram compilados pelos repórteres a partir do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), das Nações Unidas.

Nos 55 municípios apontados na obra-prima de Guimarães Rosa a estiagem será maior, entre 2021 e 2040, “com redução da precipitação atual de 1,81%”. “As destrutivas chuvas com máximas de um dia — tempestades concentradas em pouco tempo, gerando grande estrago, erosões e pouca absorção de água pelo solo para recarga de nascentes — aumentariam em média 4,38%.”

O professor Antoniel Fernandes, dos departamentos de Geologia e Geografia da PUC Minas, disse ao “Estado de Minas”: “Essa situação de a temperatura até superar o aumento nas regiões com maior índice de desertificação no Brasil, bem como uma redução da chuva anual e ampliação de eventos extremos de tempestades, acredito serem diretamente ligadas ao uso e à ocupação do solo, em práticas como de desmatamentos e queimadas”.

Os problemas apontados por Antoniel Fernandes contribuem para aumentar a temperatura e alterar os regimes hídricos. “Impactam o entorno das nascentes, as expõem a recebimento maior de radiação do Sol. São ambientes frágeis. O impacto também é sentido no registro hídrico.”

O ambientalista Almir Paraca disse ao “Estado de Minas”: “Tudo está ligado ao desmatamento e às queimadas. Os rios estão encolhendo. A plantação precisa da água, mas o rio não aguenta mais. A vereda barrada ficou rasa. Então, furam poços. A vereda com nascente que vem do lençol subterrâneo seca de vez para a plantação, perde mata ciliar para o plantio do eucalipto, para o fogo, fica cimentada e dura com o pisoteio do gado”.

Almir Parada acrescenta: “É um ciclo de devastação que resulta em mais calor, menos água, mais ‘chuva de manga’, como a gente chama na região as chuvas que se concentram em um lugar ou outro. Essa base no solo sem mata, corre direto para o rio sem se infiltrar e abastecer o lençol (freático), entra no rio sem mata ciliar carregando sedimentos e vai embora rio abaixo, deixando para trás só assoreamento”.

(Numa visita ao bem-cuidado Parque Nacional das Emas, no município de Chapadão do Céu, entre o Sudoeste de Goiás e Mato Grosso, me chamou a atenção vitalidade da mata ciliar que protege o Rio Formoso e as nascentes e evita o assoreamento. As águas são cristalinas. Porém, fora do parque, a região Sudoeste está praticamente toda devastada. Durante quilômetros o que se vê são plantações de soja, milho e algodão. Os indivíduos, todos e não só os produtores rurais, pagarão um preço alto pelo deserto de árvores e oásis de soja.)

Mencionando dados a respeito do desmatamento da região, coligidos pelo Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG), os repórteres do “Estado de Minas” assinalam que “o desmate sistemático do cerrado mineiro apresentou três fases distintas na última década. De 2014 a 2017, um alto grau, com média de 18.376 hectares perdidos por ano. Uma área equivalente a quatro vezes e meia a Floresta Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, 78 vezes o Parque das Mangabeiras, em BH, e 116 vezes o Parque do Ibirapuera, em São Paulo”.

Numa das fases, de 2018 a 2020, “a média de desmatamento encolheu 57%, chegando a 7.997 hectares. Mas voltou a crescer ainda mais entre 2021 e 2023, em um ritmo de 21.080 hectares por ano, uma escalada de 164%. No ano de 2023, o cerrado mineiro perdeu 23.238,06 hectares, o terceiro pior resultado da série, atrás apenas de 2022 e de 2017”.

(Sei que o Instagram é “decisivo”, que a felicidade “reside” em seus vídeos sensacionais, fotos espetaculares e nas piadas-prontas. Mas, se puder, saia da prisão de segurança máxima que é o “Insta”, no qual pobres e remediados enriquecem Mark Zuckerberg, e leia as reportagens do “Estado de Minas” sobre o sertão do Estado e regiões coligadas, como Goiás. Os “espíritos” de Guimarães Rosa, Mário Palmério e Carlos Drummond de Andrade agradecerão. Penhorados, quem sabe. Uma confissão: também vejo vídeos de animais fofos e espertos, como quaisquer outros instagramistas.)

Grande Sertão: Veredas e Veredas Mortas

Os repórteres do “Estado de Minas” contam que, em 1954, “O Cruzeiro”, revista dos Diários Associados, deu a primeira notícia sobre o romance “Grande Sertão: Veredas”, do diplomata e médico João Guimarães Rosa.

A coluna “No mundo dos livros” informou que Guimarães estava concluindo “Corpo de Baile” e “Veredas Mortas”. O texto era assinado por Geraldo de Freitas.

Numa reviravolta, o romance saiu, em 1956, pela Editora José Olympio, com o título de “Grande Sertão: Veredas”, inclusive com subtítulo: “O diabo na rua, no meio do redemoinho”.