Sergio Moro fez o que pode ser visto como um ataque-defensivo e deixou a avaliação para a Justiça
05 maio 2020 às 20h00
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A rigor, depois de apresentar suas “provas”, o ex-ministro não diz que Jair Bolsonaro não cometeu crime. O que frisa é que quem deve julgá-lo é a Justiça
O presidente Jair Messias Bolsonaro aprecia examinar pesquisas de intenção de voto e é possível que a “ascensão” de Sergio Fernando Moro o tenha incomodado. A possibilidade de o ex-integrante da Justiça Federal disputar a eleição para a Presidência da República em 2022 pode, a rigor, ser o busílis da questão para Bolsonaro pressioná-lo para deixar o governo. Gestores, sobretudo em período de crise profunda, como a provocada pela pandemia do novo coronavírus, chegam para a reeleição em baixa e tendem a perder. Daqui a dois anos e cinco meses, quem, sendo principal responsável pelo governo, terá desgaste — médio ou gigante? Bolsonaro. Sergio Moro, do alto de sua história de combate à corrupção e ao crime organizado, poderia chegar surfando nas melhores ondas. Pois, mesmo correndo alto risco, o presidente decidiu retirar-lhe a prancha.
Se o depoimento estiver correto, se for preciso, Sergio Moro, quando ministro, praticamente não contrariou as ordens do presidente Bolsonaro. Pelo contrário, atendeu-o, seguindo as normais legais e a hierarquia. Sobre o depoimento em si, há quem vai tratá-lo como traque, porque não há nada explosivo. Mas o leitor deve entender o depoimento de Sergio Moro como um ataque-defensivo de um homem que, um dia, foi juiz e, portanto, sabe como funciona a Justiça. Então, não há excessos no que diz, não há “gralhas” que não podem ser comprovadas (e o ex-ministro sugere pistas para a busca de novas informações). A interpretação de que disse que Bolsonaro não cometeu crime tem de ser relativizada. Porque, no mesmo momento que diz isto, sugere que, se há crime, quem deve dizê-lo é quem denuncia, a Procuradoria-Geral da República, e quem julga (condena ou absolve), o Supremo Tribunal Federal. Há um momento em que o hábil ex-magistrado praticamente arrola o Judiciário como sua “testemunha” e como “testemunha” de acusação. Se não permitiu a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, o STF atuou de acordo com a premissa de que Sergio Moro estava/está certo — e não Bolsonaro.
No lugar de fazer várias acusações, e acusações vagas, Sergio Moro concentrou-se no essencial — de maneira moderada e equilibrada. Não se desviou do mérito da questão, dirão advogados.
Pode ser que o inquérito e, depois, o processo deem em nada. Mas há elementos fáticos, como as mensagens e a própria fala do presidente Bolsonaro — quando se defendeu de Sergio Moro acabou por se atacar, ou até se incriminar —, que podem levar, não a um impeachment (pelo Congresso) ou a uma cassação de mandato (pelo Supremo) no futuro, mas a uma condenação mais branda do gestor federal. A rigor, Bolsonaro confirma o que disse o ex-ministro — inclusive quanto insistiu na nomeação de Alexandre Ramagem, amigo do presidente e de seus filhos, para diretor-geral da Polícia Federal. Chegou a “ameaçar” o Supremo — que teria passado do limite e, por isso, o presidente estaria “no limite” — na tentativa de bancar o amigo para o cargo.
Detalhes do depoimento de Sergio Moro
Colher o depoimento resultou de uma determinação do ministro do Supremo Celso de Mello — uma referência do Judiciário brasileiro. Vamos agora ao depoimento e às filigranas.
Sergio Moro frisa que a tentativa de trocar o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, e o superintendente da instituição no Rio de Janeiro era, segundo a lei, uma interferência na PF, dado o fato de que não havia uma “causa apontada”, ou seja, que justificasse a mudança. O suposto cansaço de Maurício Valeixo não era físico, segundo o ex-ministro. Resultava das pressões para trocá-lo e para trocar o superintendente do Rio de Janeiro.
A não nomeação de Alexandre Ramagem, enfatiza o ex-ministro, foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal. Quer dizer, a instância suprema da Justiça brasileira, e não apenas Sergio Moro, viu na nomeação dos amigos dos Bolsonaro um (suposto) “ilícito”. O ex-magistrado usa, com habilidade, o Supremo para fazer sua defesa e acusar Bolsonaro de pressioná-lo.
Num momento de inteligência advocatícia, diriam juristas gabaritados, Sergio Moro frisa que não disse “que o presidente teria cometido algum crime”. Mais: “Quem falou em crime foi a Procuradoria Geral da República na requisição de abertura de inquérito”. Portanto, enfatiza o ex-ministro, a avaliação, se houve “a prática de crime, cabe às instituições competentes”. Se de fato o procurador-geral da República, Augusto Aras, queria pegá-lo com o pé em falso, o ex-juiz escapou com mestria. Tecnicamente, portanto, Augusto Aras pode ter cometido o crime de “denunciação caluniosa”. Já Sergio Moro sublinha que atuou para “proteger a autonomia da Polícia Federal”. Assim, está amparado pela lei.
Pelo que diz Jair Bolsonaro, a Polícia Federal deve estar a seu serviço. Sergio Moro contrapõe: “A PF não é órgão de produção direta de inteligência para a Presidência da República”. Ele explica que, na verdade, o gestor nacional tinha acesso às informações via outro caminho. “Os relatórios de inteligência da Polícia Federal sobre assuntos estratégicos e de Segurança Nacional são inseridos pela sua diretoria de Inteligência no Sisbin e que a Abin consolida essas informações de inteligência, juntamente, com dados de outros órgãos e as apresenta ao presidente da República”. Afinal, o diretor da Abin é exatamente o primeiro-amigo Alexandre Ramagem. A informação de Sergio Moro sugere, mais uma vez, a possibilidade de que Bolsonaro queria retirá-lo do governo não apenas por querer, com a antecipação de informações confidenciais, proteger seus filhos, como o senador Flávio Bolsonaro e Carlos Bolsonaro — este supostamente “responsável” pela poderosa e azeitada indústria de fake news que defende o governo e ataca seus adversários —, e aliados políticos, mas também por vê-lo como um possível concorrente na disputa de 2022. O Podemos, partido controlado pelo senador Álvaro Dias, vinha convidando Sergio Moro para disputar a Presidência antes mesmo de sua demissão. Pesquisa do Instituto Paraná sugere que o ex-magistrado pode ser o grande rival de Bolsonaro.
Ao rebater Sergio Moro, Bolsonaro, de alguma forma, se autoincrimina e confirma o que Sergio Moro havia dito. O presidente admitiu que havia demitido Maurício Valeixo porque gostaria de receber “relatórios de inteligência de fatos nas últimas 24 horas”. Não gostaria, por exemplo, de ser surpreendido, para ficar num exemplo, com uma prisão de Carlos Bolsonaro. Ressalte-se que se trata de uma fala do presidente. Aliás, o gestor federal frisa que nenhum de seus filhos é investigado pela PF.
Bolsonaro alega que a Polícia Federal, sob o comando de Maurício Valeixo, não se empenhou em buscar provas sobre “quem” mandou Adélio Bispo tentar matá-lo. A Polícia Federal fez uma investigação criteriosa e, quando apresentada, o presidente não lhe fez reparos. Privadamente. Publicamente, o presidente insiste que é preciso descobrir o “mandante”. O ex-ministro admite que é preciso verificar o que há num celular do advogado de Adélio Bispo, mas a Justiça não autorizou a quebra de seu sigilo e a apreensão do aparelho. Tecnicamente, ainda não é possível garantir que Adélio Bispo agiu a mando de alguém ou agiu por conta própria.
Mas é possível sugerir que Adélio Bispo ainda é um trunfo eleitoral do político Bolsonaro, um capital que ainda poderá ser usado em 2022. Talvez, menos do que esclarecer o caso, interesse mantê-lo na sombra. Insinuar que há “novas” informações e que serão buscadas. Na verdade, pode deixar a Polícia Federal em maus-lençóis. Ou melhor, não necessariamente a PF, e sim seu novo diretor-geral, que, certamente, não vai forçar seus subordinados a obterem provas não confiáveis e sustentáveis ante a Justiça. Mais: na sua atitude anti-ciência, Bolsonaro não ouve nem mesmo os médicos que examinaram Adélio Bispo.
Não há motivo para tachar Sergio Moro de “mentiroso”. Mas, quando diz que apagou as mensagens anteriores de Bolsonaro, por receio de hackers, não dá para acreditar — porque não há tanta inocência assim no mundo — que não as tenha guardado em algum arquivo que, adiante, possa servir como prova ou, de repente, aparecer num livro candidato a best-seller.
Recomento ao leitor que leia, se tiver interesse, as últimas linhas do depoimento de Sergio Moro. No final de um texto com 31.994 caracteres e 5.095 palavras, o ex-ministro elenca o que considera como nove provas de que está dizendo a verdade e que alguém pode estar sonegando-a. Transcrevo-as a seguir.
As 9 provas do ex-ministro da Justiça Sergio Moro
QUE o Declarante gostaria de sintetizar as provas que pode indicar a respeito do seu relato;
1
QUE inicialmente indica como elementos de prova o depoimento do Declarante;
2
QUE, segundo, a mensagem que recebeu do Presidente da República no dia 23 de abril de 2020 e as demais mensagens ora disponibilizadas;
3
QUE, terceiro, todo o histórico de pressões do presidente de troca do SR/RJ, por duas vezes e do DG e que, inclusive, foram objetos de declarações públicas do próprio Presidente da República, inclusive em uma delas com invocação de motivo inverídico para a substituição do SR/RJ, ou seja, a suposta falta de produtividade;
4
QUE quarto, as declarações efetuadas pelo Presidente da República em seu pronunciamento, nas quais ele admite a intenção de trocar dois superintendentes, inclusive, novamente o do Rio de Janeiro, sem apresentar motivos, também admite a substituição do Diretor VALEIXO invocando motivo inconsistente, já que o cansaço do Diretor era provocado pelas próprias pressões do Presidente, também admite que um dos motivos para a troca era obter acesso ao que ele denomina relatórios de inteligência quando, na verdade, o Presidente já tinha acesso a informações de inteligência produzidos pela PF através da SISBIN e da ABIN, ou seja, já tinha ele acesso à toda informação de inteligência da PF à qual ele tinha legalmente acesso;
5
QUE, quinto, as declarações do Presidente no dia 22 de abril de 2020, na reunião com o conselho de ministros, e que devem ter sido gravadas como é de praxe, nas quais ele admite a intenção de substituir o superintendente do Rio de Janeiro, o Diretor Geral e até o Ministro, ora Declarante, e também admite no mesmo contexto sua insatisfação com a informação e no que ele denomina relatórios de inteligência da PF aos quais afirma que não teria acesso, o que, como já argumentado, não é verdadeiro;
6
QUE, sexto, podem ser requisitados à ABIN os protocolos de encaminhamento dos relatórios de inteligência produzidos com base em informações a ela repassadas pela PF e que demonstrariam que o Presidente da República já tinha, portanto, acesso às informações de inteligência da PF as quais legalmente tinha direito;
7
QUE, sétimo, esses protocolos podem ser também solicitados à Diretoria de Inteligência da PF;
8
QUE, oitavo, as declarações apresentadas pelo Declarante, podem ser confirmadas entre outras pessoas, pelo DPF VALEIXO, pelo DPF SAAD, pelos SRMG, e pelos ministros militares acima mencionados;
9
QUE, nono, o Declarante disponibiliza, neste ato, seu aparelho celular para extração das mensagens trocadas, via aplicativo Whatsapp, com o Presidente da República (contato “Presidente Novíssimo”) e com a Deputada Federal CARLA ZAMBELLI (contato Carla Zambelli II) e que são as relevantes, no seu entendimento, para o caso.