“Minha mãe, que era brasileira, e que nasceu em uma fazenda de café e ou de açúcar, entretinha-me frequentemente sobre a beleza da baía da Guanabara”

Mais tarde conhecido como historiador rigoroso, autor de livros seminais, como “Raízes do Brasil” e “Visão do Paraíso”, Sérgio Buarque de Holanda trabalhou como repórter para “O Jornal”, de Assis Chateaubriand, o Chatô. Enviado como correspondente para a Alemanha, Sérgio Buarque, hoje mais conhecido como “o pai do Chico”, escrevia reportagens e publicava entrevistas com personalidades importantes. Em dezembro de 1929, em Berlim, entrevistou Thomas Mann. O trabalho foi publicado na edição de 16 de fevereiro de 1930.

A entrevista pode ser lida no livro “O Espírito e a Letra — Estudos de Crítica Literária” (Companhia das Letras, 409 páginas, organização de Antonio Arnoni Prado). Na apresentação, Sérgio Buarque conta que estava apreensivo, pois acreditava que o famoso autor de “Os Buddenbrook” e “A Montanha Mágica” não se lembraria da entrevista. “Confesso que não era muito animadora a perspectiva de encontrar-me frente a frente com aquela fisionomia, que parece apenas o pretexto para um nariz excessivo e que deve se conformar melhor à ironia de que a afabilidade.”

Heinrich Mann e Thomas Mann, irmãos: o primeiro seria mais germânico e o segundo mais latino | Foto: Reprodução

Os livros “Tonio Kröger” e “Morte em Veneza”, na avaliação de Sérgio Buarque, “são obras-primas, apenas comparáveis em sua perfeição a certas novelas de Tolstói, a ‘Mestre e Servidor’ e sobretudo a ‘A Morte de Ivan Ilitch’. Pode-se dizer, sem exagero, que a novela moderna nascida das obras de Maupassant, de Verga e de Tchekhov chegou aqui a uma perfeição cristalina. ‘Os Buddenbrook’ e ‘A Montanha Mágica’, os grandes romances épicos, em que a multiplicidade e a complexidade da vida atual aparecem transfiguradas através do espírito largamente compreensivo de seu autor, capaz, ao mesmo tempo, de penetrar os meandros mais insignificantes e — quem sabe? — os mais importantes da existência e da sociedade dos homens”. (Tenho uma dúvida em relação ao que diz Sérgio Buarque: a novela, espécie de romance curto, ou o conto moderno teria derivado de Maupassant e Tchekhov? Ou novela e conto são vistos da mesma perspectiva? De fato, há contos longos dos dois autores que mais parecem novelas.)

Julia Mann: enlutada; cerca de 1892 | Foto: Reprodução

Para Sérgio Buarque, um dos maiores escritores alemães, um dos poucos que, no Olimpo, tem lugar garantido ao lado de Goethe, o Zeus da Alemanha (ou o Tolstói germânico), “Thomas Mann é, além de tudo, um poeta. Toda sua obra está penetrada desse doce lirismo que acentua, sem contradizer, as qualidades excelentes de sua prosa. Uma poesia que é mais natural à literatura de ficção e que é mais uma poesia de situação que de linguagem”.

“Acho impossível dispensar o prazer de conversar com um
brasileiro”, disse o escritor Thomas Mann para Sérgio Buarque

Apesar do receio do repórter Sérgio Buarque, então com 27 anos, o Nobel de Literatura o recebe “imediatamente em seu quarto do Hotel” Adlon. Thomas Mann disse: “Não esqueci nossa entrevista. Tenho aqui, infelizmente, uma imensidade de cartões e imagine o que seria de mim se pudesse atender a todas essas pessoas durante as poucas horas que permanecerei ainda em Berlim. Apesar dessa quantidade de compromissos a que tenho sido forçado ultimamente e que, na maioria, não poderia cumprir, acho impossível dispensar o prazer de conversar com um brasileiro”.

Heinrich, Carla, Thomas e Julia: os irmãos Mann, em 1889 | Foto: Reprodução

(Uma curiosidade: os dois maiores escritores alemães, Goethe e Thomas Mann, mantinham ligação com o Brasil. Goethe era chamado de “o Brasileiro”, porque tinha interesse pelas coisas do Brasil e pedia aos amigos cientistas que levassem para ele plantas e minérios do país. O pesquisador alemão Sylk Schneider escreveu uma tese a respeito. Sobre Mann, se lerá adiante.)

Ao se preparar para entrevistar o autor de “Doutor Fausto”, que ainda não havia sido escrito, Sérgio Buarque pesquisou sobre a família Mann e descobriu que havia uma história de que tinha origem brasileira. Mesmo assim, chega a especular se não se tratava de uma lenda. Críticos alemães, como Adolf Bartels, desmentiam a informação. Quando o repórter começou a formular uma pergunta, o autor de “José e Seus Irmãos” o interrompeu: “O Brasil faz-me evocar, na verdade, alguns instantes deliciosos de minha infância e de minha mocidade. Recordo-me de que minha mãe, que era brasileira, e que nasceu em uma fazenda de café e ou de açúcar, não me recordo bem, entretinha-me frequentemente sobre a beleza da baía da Guanabara…”.

Sérgio Buarque de Holanda: antes de ser historiador consagrado, era jornalista de um jornal de Chatô | Foto: Reprodução

Sérgio Buarque ficou perplexo com a informação, finalmente comprovada. O correspondente internacional escreve: “A mãe dos irmãos Mann [Heinrich e Thomas], d. Julia Bruhns da Silva [Sérgio Buarque erra: o certo é Julia da Silva Bruhns], que faleceu em 1922 [o repórter equivoca-se: a brasileira morreu em 1923], com cerca de 70 anos de idade [71, quase 72, para ser preciso], era filha de um alemão que possuía no Brasil uma fazenda e que se casara com uma crioula, provavelmente de sangue português e indígena. Aos 6 ou 7 anos foi trazida por seu pai a Lübeck, onde teria melhores possibilidades de uma educação e de uma instrução exemplares. A futura frau Julia Mann nunca se esqueceria de sua infância no Brasil e muito mais tarde ainda se recordava de que fora salva por um negro, escravo de seu pai, de uma serpente venenosa. Era um tipo caracteristicamente latino (“uma perfeita espanhola”, disse-me Thomas Mann), dotada de um temperamento exaltado, que se deveria adequar com bastante êxito a sua paixão pela música. Apreciava sobretudo Chopin e acompanhava com sua voz suave as melodias de Schubert, Schumann e [Eduard] Lassen”.

“Creio que a essa origem latina e brasileira devo certa clareza de estilo
e, para dizer como os críticos, um ‘temperamento pouco germânico’”

Ao notar que a literatura de Thomas Mann se “distingue bastante no conjunto da moderna literatura alemã”, possivelmente dada a sua origem latina, Sérgio Buarque obtém uma resposta que reafirma seu pensamento: “Sim, creio que a essa origem latina e brasileira devo certa clareza de estilo e, para dizer como os críticos, um ‘temperamento pouco germânico’. Li apaixonadamente os clássicos alemães, os escritores franceses e russos e, especialmente, os ingleses, mas estou certo de que a influência mais decisiva sobre minha obra resulta do sangue brasileiro que herdei de minha mãe. Penso que nunca será demais acentuar essa influência quando se critique a minha obra ou a de meu irmão Heinrich”.

Julia Mann e o marido Thomas Heinrich Mann em 1885

Sérgio Buarque faz uma ressalva: “Creio que sobretudo a sua [obra]. O autor de ‘Der Untertan’ [Heinrich Mann] parece-me mais próximo da média dos autores alemães e, desde seu aspecto físico, creio que tenha pouca coisa de latino”. Thomas Mann contestou-o: “Penso ao contrário. Não sei se porque me habituei a descobrir certa semelhança vaga entre sua fisionomia e a de Anatole France. De qualquer modo acho essencial para a compreensão de nossas obras tão diversas o conhecimento dessa origem brasileira. A curiosidade pelo Brasil e pelos assuntos brasileiros fará com que um dia próximo visite o vosso país, onde desejo reviver as impressões de infância de minha mãe. É uma velha aspiração que penso realizar o mais brevemente possível. Dou grande significação aos traços que deixou em minha obra a origem brasileira de minha família materna e, ainda há pouco, comprometi-me com a revista ‘Duco’, órgão de aproximação teuto-brasileira, a escrever um artigo a respeito. Infelizmente terei de adiar por alguns dias esse compromisso, até que encontre o necessário repouso do espírito”.

A Sérgio Buarque parece que Thomas Mann tinha interesse genuíno pelo Brasil. “Não se cansava de indagar sobre as coisas brasileiras, sobre a nossa vida social, a nossa literatura. Mostrou-se admirado quando o informei de que seus livros não eram desconhecidos no Brasil, posto que principalmente através de traduções francesas.”

Ao exibir um exemplar de “Os Buddenbrook”, Sérgio Buarque ouviu de Thomas Mann que o livro “é o de leitura mais fácil para estrangeiros”. Suas palavras: “Todos se queixam de que ‘Der Zauberberg’ [“A Montanha Mágica”, publicado no Brasil pela Nova Fronteira, com tradução de Herbert Caro] é de leitura difícil. E no entanto considero esse romance minha obra-prima. Sua tradução francesa está anunciada para estes dias e graças a ela os brasileiros que ignoram o alemão poderão, possivelmente, conhecer o principal de minha obra”.

Texto publicado no Jornal Opção na edição de 1978 de 2 a 8 de junho de 2013

E-mail: [email protected]