Será lançada tradução do russo do romance Nós, de Ievguêni Zamiátin, que inspirou 1984, de Orwell
04 março 2017 às 10h04
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O crítico e filósofo George Steiner diz que “todos os temas principais do texto de Orwell derivam de Zamiátin. Sem ‘Nós’, ‘1984’ simplesmente não existiria”
A Editora Aleph vai lançar este ano o romance distópico “Nós”, de Ievguêni Ivânovitch Zamiátin, um dos mais importantes autores da literatura russa, agora com tradução direta do original por Gabriela Soares da Silva. Há três traduções no Brasil: duas com o título de “Nós” — pelas editoras Anima (218 páginas, tradução de Lia Alverga Wyler, de 1983), Alfa Ômega (244 páginas, de 2004) — e uma com o título de “A Muralha Verde” (Editora GRD, 172 páginas, tradução de José Sanz, de 1973). Escrito possivelmente em 1920, mas publicado apenas em 1924 (no exterior), fora da União Soviética, trata-se de um livro mítico — que influenciou, entre outros, “1984”, de George Orwell, e “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Trata-se de uma crítica devastadora à política totalitária e é impressionante a capacidade de antecipação a respeito do regime comunista que ainda estava sendo construído por Vladimir Lênin e Ióssif Stálin. No livro “A Perfectibilidade do Homem” (Topbooks, 689 páginas, tradução de Jesualdo Correia), o filósofo australiano John Passmore assinala que a ideia principal da obra é que “perfeição” — a sociedade nova e o homem novo propugnados pelos bolcheviques — “e liberdade são antagônicas”.
“Nós” é ficção científica que trata de política. Escrito em cima da hora, quando estava se firmando o comunismo na União Soviética, é uma denúncia candente de uma sociedade organizada em moldes totalitários. John Passmore sugere que “a crítica de Huxley e Zamiátin é bem mais abrangente [do que a de Orwell]. Eles partiram para mostrar que o paraíso do Iluminismo poderia se tornar, se realizado, um Inferno”. O autor de “Admirável Mundo Novo” e o russo eram mais pessimistas. Apesar de seu desencanto com os comunistas, George Orwell tinha “fé” no que chamava de “socialismo democrático”.
Se “Nós” é a matriz ou uma das matrizes de “1984”, por que o fato raramente é reconhecido, exceto por poucos especialistas? Um dos motivos é que Orwell, embora deva tanto a Zamiátin, escreveu que não era um escritor de primeira linha. A história está devidamente contada no ensaio “Matando o tempo” (de 25 páginas), inserto no livro “Tigres no Espelho — E Outros Textos da Revista ‘The New Yorker’” (Biblioteca Azul, 419 páginas, tradução de Denise Bottmann), do crítico literário e filósofo George Steiner.
O artigo de Steiner é de 1983, escrito antes das comemorações a respeito de “1984”, o romance de Orwell publicado em 1948. O título “1984” é uma inversão dos últimos números de 1948. O primeiro título era “O Último Homem na Europa” (derivado do caráter “eurocêntrico” da obra). Ao publicá-lo, pouco antes de morrer, o jornalista e escritor inglês disse: “Não é um livro em que eu apostaria como sucesso de vendas”. Tornou-se um best seller transnacional, traduzido em sessenta idiomas.
O romance, afiança Steiner, era um “apelo de advertência em favor de uma Europa socialdemocrata, capaz de resistir tanto ao sistema totalitário do stalinismo quanto à desumanização asseptizante de uma tecnocracia e de uma hipnose por meio da mídia”. Orwell preferia uma espécie de socialismo democrático à socialdemocracia, embora a socialdemocracia derive, em larga medida, de uma combinação das virtudes do socialismo com as do capitalismo. A referência final é aos Estados Unidos. Fica-se a imaginar o que diria Orwell ao perceber o confronto entre o poderoso presidente do país, Donald Trump, e a mídia. Hoje, é provável que a mídia faça mais “oposição” ao republicano do que o Partido Democrata de Hillary Clinton e Barack Obama. Quanto à tecnocracia (apesar dos grampos telefônicos), ao contrário do que pensava o autor de “A Revolução dos Bichos”, não tem sido um empecilho significativo à liberdade nos Estados Unidos.
O título “1984” trata, aduz Steiner, de um golpe de mestre. Orwell “apôs sua assinatura e sua reivindicação a um período de tempo”. Assim como Kafka se tornou proprietário da letra “K”. “Oh Franz não consigo/escapar a essa letra K depois de K”, escreveu o poeta inglês Rodney Pybus (poema “In Memoriam Milena”). “Nunca nenhum homem ou nenhuma canetada arrancou um ano fora do calendário da esperança”, sustenta Steiner.
A inspiração
Apesar da celebrada “angústia da influência”, apontada pelo crítico literário americano Harold Bloom, há livros que parecem únicos, filhos de ninguém, sem tradição. Não é, porém, o caso de “1984”. Steiner garante que o romance “depende muito e intimamente de outro livro”. Trata-se de “Nós”, de Zamiátin.
No semanário “Tribune”, em 1946, Orwell publicou uma resenha de “Nós”. O crítico escreveu que era “uma das curiosidades literárias nesta época de queimar livros”. Ele sugeriu que “Admirável Mundo Novo” derivava “parcialmente” da obra de Zamiátin. O romance seria uma sátira e advertência a respeito dos “objetivos implícitos da civilização industrial”. “Nós” era, no dizer de Orwell, “um estudo da Máquina, o gênio que, num gesto imprudente, o homem soltou da garrafa e não consegue guardá-lo de volta”.
Depois de sugerir que “Nós” é um romance “superior” ao de Huxley, Orwell ataca: “Até onde consigo julgar, não é um livro de primeira categoria”. Mesmo quando defendeu uma tradução para o inglês, o autor inglês não se mostra entusiasmado com o livro de Zamiátin.
“Nós” é uma distopia (“lugar ruim” ou “lugar nenhum”). Zamiátin percebeu que o projeto de Lênin, que morreu em 1924, e Stálin geraria uma sociedade totalitária. Sua obra é profética. O romance fala da vida humana sob o “Estado Único” (a tradutora Lia Alverga Wyler prefere “Estado Uno”). Dirigido pelo Benfeitor (presciência sobre Stálin), o Estado “impõe controle total e absoluto sobre todos os aspectos da vida física e mental. A vigilância e a punição ficam a cargo da polícia política, os ‘Guardiães’ [espécie de NKVD e, depois, KGB]. Os súditos do Benfeitor moram em casas de vidro, nus para contagem e inspeção constante. A identificação de homens e mulheres é feita por números, não por nomes [como nos campos de concentração e extermínio de Hitler]. Talões racionados lhes dão o direito de abaixar as persianas e gozar ‘a hora do sexo’”, anota Steiner. O narrador do livro de Zamiátin informa: “Em casa, corri até o escritório, entreguei meu cupom rosa e recebi o certificado que me permitia baixar as persianas. Este direito só é concedido nos dias sexuais. Todo o tempo restante vivemos protegidos por paredes transparentes que parecem tecidos de ar luminoso; estamos sempre visíveis, sempre banhados de luz. Nada temos a ocultar um dos outros”.
“O enredo de ‘Nós’ é a tentativa de uma rebelião de D-503”, registra Steiner. Apaixonado por I-330, D-503 revolta-se. Porém, apanhado pela polícia política, entrega a namorada e seus aliados. Mesmo torturada, I-330 resiste ao poder do Estado e, por isso, é eliminada. “Tratado” por raios x, D-503 é curado “de um tumor chamado ‘a imaginação’”. Recuperado, integra-se à sociedade. Pensar pela própria cabeça, e não seguir a ideia-chave do sistema, a que geraria felicidade coletiva mas sem preservação da individualidade, era uma impossibilidade.
Posta uma síntese de “Nós”, Steiner rastreia a influência do romance sobre “1984”: “O ‘Estado Único’ se converte na ‘Oceania’ de ‘1984’; o ‘Benfeitor’ é transporto para o ‘Grande Irmão’; os Guardiães equivalem à ‘Polícia do Pensamento’ de Orwell; Winston Smith conserva um nome, mas é oficialmente conhecido e chamado como ‘6079 Smith W.’ A questão da sexualidade autêntica em oposição à sexualidade programada, de um ato de amor entre homem e mulher como fonte última da insurreição libertária, é o ponto central nas duas narrativas. As torturas físicas e psíquicas sob a redoma de vidro são retomadas de perto na Sala 101 de ‘1984’. O efeito das moradias de vidro de Zamiátin é exatamente o mesmo alcançado pelas teletelas de Orwell. Como D-503, Winston Smith será curado do câncer da imaginação autônoma, do crescimento maligno das lembranças pessoais. Quanto ao desenvolvimento do enredo, a diferença é que a heroína de Zamiátin morre sem ceder, enquanto a Julia de Orwell se soma ao ex-amado na traição de si e dos outros”.
Ousado (biógrafos de Orwell, até o categorizado Jeffrey Meyers, ignoram o fato), Steiner sublinha que “todos os temas principais e a maioria das situações concretas no texto de Orwell derivam de Zamiátin. Sem ‘Nós’, ‘1984’ simplesmente não existiria. O efetivo delineamento e a execução de ‘1984’ nasceram de uma leitura de Zamiátin no inverno de 1945-1946. E é forçoso concluir que foi esta dependência absolutamente central de ‘1984’ em relação a seu predecessor, em larga medida esquecido, que tornou tão displicentes, tão canhestros os veredictos que Orwell formulou em suas referências a Zamiátin”. Num artigo de 1946, “A prevenção da literatura”, publicado em “Polemic”, Orwell escreveu: “‘Ousar ficar sozinho’ é não só um perigo em termos práticos, mas também um crime em termos ideológicos”. Steiner percebe aí, com razão, ecos das invenções de “Nós”.
Há outras influências na prosa de “1984”, como H. G. Wells (“O Adormecido Acorda”), Jack London (“O Tacão de Ferro”), Huxley (“Admirável Mundo Novo”) e James Burnham. Este, com seu “conceito de gerencialismo” e “sua concepção de um nivelamento apocalíptico das sociedades humanas”, deixou Orwell impressionado. Há ecos de Dostoiévski, o de “Os Demônios” e “Notas do Subterrâneo”, tanto em Zamiátin quanto em Orwell. Neste talvez via aquele.
A ordem totalitária é incompatível com “o jogo anárquico do sentimento ou da invenção literária individual”. “É no ponto onde se cruzam a literatura e a política que o totalitarismo exerce sua máxima pressão sobre o intelectual”, disse Orwell. Steiner percebe a origem do “Duplipensar” na “esquizofrenia sistemática, imposta e controlada pelo Estado”.
No romance “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, Orwell percebe uma “previsão excepcionalmente clara do ‘Estado policial’ infestado de espiões”. Steiner destaca que o autor de “Na Pior em Paris e Londres”, ao notar que Swift “antecipa o macabro automatismo dos Processos de Expurgos de Moscou”, estava, de certo modo, “filtrando” a prosa de Zamiátin.
Os cientistas de a Grande Academia de Lagado “se dedicam a inventar novas formas de linguagem sistematicamente simplificadas”. Daí, da prosa de Swift, é que Orwell retira a “Novilíngua”. Steiner indica que, “ao adotar, desenvolver e sistematizar a sugestão de Swift, Orwell permite que ‘1984’ reivindique grandeza. É aqui que Orwell rompe e ultrapassa o modelo fornecido por Zamiátan. O ‘Duplipensar’, o ‘Grande Irmão’, os ‘proles’, o ‘Ministério do Amor’, a própria ‘Novilíngua’ ingressaram na linguagem. O ‘elemento’, designando uma pessoa que assim se torna uma ‘não pessoa’, adquiriu uma presença pavorosamente indispensável nos relatos atuais [o ensaio é de 1983] das burocracias do terror, seja na União Soviética, na Argentina, na Líbia ou na Indonésia. As famosas inversões na Novilíngua — ‘Guerra é Paz’, ‘Liberdade é Escravidão’, ‘Ignorância É Poder’ — tocam os pontos nevrálgicos de nossa política”. Orwell postula: “Na verdade, não existirá nenhum pensamento, como o entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar — não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência”.
Quando trata de mulheres e sexo, e é difícil discordar de Steiner, Orwell, ao menos em “1984”, “é de um sentimentalismo enjoativo”. “O sexo recebe um tratamento indefinido — não na Novilíngua, mas em Orwell”, acha Steiner. Ao contrário, na mesma questão, Zamiátin é corrosivo e irônico.
De que tratam, afinal, “Nós”, de Zamiátin, e “1984”, de Orwell?
O romance do engenheiro (não de almas) Zamiátin trata da montagem da máquina totalitária, nos seus momentos iniciais, mas que já indicavam a exclusão da democracia e a violência do Estado contra o indivíduo — retirando-lhe a liberdade de agir e, até, pensar. O livro, escrito em 1920, indica uma percepção aguçadíssima. Frise-se que, ao contrário de Orwell, não havia, por assim dizer, “fortuna crítica” na qual amparar-se e inspirar-se. O russo retirou a história da realidade, recriada por sua poderosa imaginação. O romance é, portanto, um retrato vigoroso do stalinismo mesmo antes de o stalinismo existir ou, ao menos, cristalizar-se. No momento da criação e da publicação de “Nós”, podia-se falar em leninismo, que, como percebeu Zamiátin, talvez possa ser considerado como a primeira face do stalinismo. Lênin não sabia, mas nós sabemos: era stalinista. Stálin, mais do que um aborto do leninismo, é seu filho legítimo e, paradoxalmente, pai ou padrasto.
O romance de Orwell “é”, na síntese de Steiner, “uma alegoria velada do stalinismo, onde os fatos reais e as implicações ideológicas do conflito Stálin-Trotski ocupam papel central. Em muitos níveis, ‘1984’ é uma ampliação, uma ‘humanização’ literal da fábula esquemática apresentada em ‘A Revolução dos Bichos’”. Numa entrevista, publicada logo depois da edição do romance, Orwell esclarece: “Meu romance não é um ataque ao socialismo […] e sim uma mostra das perversões a que está sujeita uma economia centralizada e que já se concretizaram parcialmente no comunismo e no fascismo. Não acredito que o tipo de sociedade que descrevo necessariamente irá surgir, mas acredito (descontando o fato, claro, de que o livro é uma sátira) que algo semelhante poderia surgir. Também acredito que as ideias totalitárias criaram raízes na mente de intelectuais em todo o mundo, e tentei levar essas ideias até suas consequências lógicas. (…) O totalitarismo, se não for combatido, pode triunfar em qualquer lugar”.
No final do ensaio, depois de comparar ‘1984’ desfavoravelmente aos livros “A Condição Humana”, de André Malraux, e “O Zero e O Infinito”, de Arthur Koestler (“o foco de Koestler é penetrante, o de Orwell não”), Steiner faz um comentário quiçá idiossincrático: “O livro de Orwell” talvez “pertença a uma categoria muito particular e restrita: a dos textos de tremenda força ou engenhosidade que devem ser lidos logo cedo na vida, e lidos integralmente apenas uma vez. Esses textos se imprimem em nossa mente e em nossa lembrança como um entalhe profundo. Quando voltamos a eles, é difícil vencer a impressão de déjà vu, de invenção forçada”. Apesar da crítica, ácida, Steiner admite que se trata de “uma obra pertinente até ‘em excesso’” e conclui, mencionando Henry Thoreau, com uma pergunta: “Pode alguém matar o tempo sem ferir a eternidade?”