O maior problema não é o governo, mas o presidente Bolsonaro, o soldado invernal da Guerra Fria, que vive no passado e ignora que os brasileiros vivem no presente

Ricardo Barros, Jair Bolsonaro, Ciro Nogueira e Arthur Lira: o presidente, ante antes os poderosos chefões do Centrão, apenas “mia” | Foto: Reprodução

O Brasil é o país dos paradoxos e, segundo Stefan Zweig — que se suicidou no país, em 1942 —, do futuro. A economia voltou a crescer e há a possibilidade de, ao término do ano, com a pandemia sob controle (deixando de ser pandemia), chegar a 5,5% ao ano. O mercado externo está consumindo com volúpia as commodities patropis. Apesar dos percalços, a vacinação está em franca expansão — mais de 30% dos brasileiros foram imunizados com a primeira dose.

Mas eis o paradoxo: se o país está crescendo, o presidente Jair Messias Bolsonaro, sem partido, está caindo nas pesquisas de intenção de voto. No levantamento do Ipec, ele tem 23% e Lula aparece com 49%, o que lhe garante vitória já no primeiro turno.

O problema, tudo indica, não é mais o governo — entendendo que o governo é mais do que o presidente. O problema é exatamente Bolsonaro.

Laurene Santos e Jair Bolsonaro: o presidente  da República “rosnou” para uma repórter que estava fazendo seu trabalho | Foto: Reprodução

Como prega para os convertidos, como se fosse o pastor sênior da Igreja das 512 Mil Mortes, o caubói de Marlboro dos trópicos parece avaliar que, como os mantêm sob suas asas, não tem de conquistar novos fiéis. Suas comiciatas — está em campanha aberta — são recados para “seus” eleitores, convidando-os à aglutinação e à guerra de 2022.

Não deixar os “fiéis” se desgarrarem não é, eleitoralmente, incorreto. Porque Bolsonaro está pensando primeiramente em ir para o segundo turno. Entretanto, por falta de um discurso para os eleitores que ainda não se decidiram inteiramente — aqueles que não querem Lula e talvez não queiram ninguém —, Bolsonaro, no lugar de crescer ou de se estabilizar, está caindo.

Pode-se sugerir, portanto, que Bolsonaro vai mal como “agente” econômico e como “agente” político. Com a economia melhorando, acima do esperado, o presidente deveria capitalizar o fato. No entanto, não o faz. Do ponto de vista político, depois de “acertar” ao fechar uma aliança com o Centrão — o que criou condições adequadas para a governabilidade —, o presidente está sempre em guerra contra tudo e todos. Portanto, sublinhando, ele é o problema do governo e, claro, do país.

Victória Abel, ante a firmeza, correção e pertinência de suas perguntas, o presidente Jair Messias Bolsonaro decidiu “rugir” | Foto: Reprodução

Os amantes da pureza absoluta criticam a aliança de Bolsonaro com o Centrão, sugerindo que o fato trouxe a possibilidade de corrupção para dentro do governo. De fato, o Centrão é um “partido” político que tem como objetivo arrancar todos os tipos de benesses do Erário. Porém, como sem o PG (Partido do Governo) ninguém governa — as gestões do PT, de Lula da Silva a Dilma Rousseff, inventaram o mensalão para “pagá-lo” —, o presidente não se equivocou ao levar seus membros para o governo.

A questão é que a boca do Centrão é enorme. Cabe ao presidente exigir que faça dieta e acomode-se com o tráfico de influência — as pequenas “sujeiras” do dia a dia —, mas, como não tem apetite para a governança (na verdade, os militares estão operando a política e, com o ministro Tarcísio de Freitas, as obras de infraestrutura — e Paulo Guedes lida com a economia), Bolsonaro não consegue controlá-lo. Gritos e bravatas, do tipo “prendo e arrebento”, não assustam as figuras realistas do Centrão, que, além do bocão devorador do tesouro nacional, tem o couro mais grosso do que jacaré desvacinado, os dos rios.

Patrícia Campos Mello: repórter da “Folha de S. Paulo” | Foto: Reprodução
Rugindo para as mulheres

Ao “miar” para o Centrão — a psicanálise certamente tem algo a dizer sobre o fato de que Bolsonaro vive falando em “casamento hétero” com aliados como Ciro Nogueira, Ricardo Barros, Arthur Lira, Adilson Barroso, entre outros —, sinalizando fraqueza política (o excesso de militares no governo, longe de se tornar espinafre para o Popeye tropiniquim, parece deixá-lo mais fragilizado), Bolsonaro decidiu “rugir” ou “rosnar” para jornalistas. Se trata os homens com relativa delicadeza, numa espécie de heterossexualidade stand by — e, frise-se, não se está insinuando nada de homossexualidade (a sexualidade humana é mais complexa que os, digamos, “rótulos”)  —, o político sem partido é extremamente agressivo com mulheres. Como se quisesse mantê-las à distância, como se fossem um risco à sua macheza.

Em março deste ano, Bolsonaro atacou, com palavras chulas, Patrícia Campos Mello, uma das repórteres mais categorizadas do país. Ela é repórter especial da “Folha de S. Paulo”. O presidente e um dos filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro — cuja paixão-fetiche é o AI-5 —, foram condenados a indenizá-la.

Há poucos dias, ao ser abordado pela repórter Laurene Santos, da TV Vanguarda — afiliada da Rede Globo no Vale do Paraíba, em São Paulo —, Bolsonaro gritou e “mandou” que calasse a boca. O presidente não quis responder às suas perguntas. Na década de 1950, Juscelino Kubitschek — o criador de Brasília e da UnB —, ao ser vaiado por estudantes, disse: “Feliz do povo que pode vaiar seu presidente”. E ficou por isso mesmo, sem delongas.

Na sexta-feira, 25, fazendo seu trabalho, a repórter Victória Abel, da rádio CBN, perguntou a Bolsonaro sobre a compra da vacina indiana Covaxin (lembra “cova” e o verbo “xingar”). No lugar de apresentar sua versão, esclarecendo os fatos — é o que se espera de um presidente, um homem público, que, se está no governo, não é “dono” do Estado —, ele disse que a jornalista deveria voltar para a faculdade. Ante a insistência da profissional — competente, dadas a coragem, a firmeza e a indagação pertinente —, Bolsonaro sugeriu que ela deveria “nascer de novo”. Quer dizer, o presidente quer “apagar” o outro, aquele que não pensa como ele e que, de certa maneira, tem um mandato concedido pelo leitor para indagar a respeito do interesse público.

Cabe aos eleitores retiraram ou não Bolsonaro do poder | Foto: Zahar
Impeachment, golpe e centro

Professor da Faculdade de Direito da USP e autor do livro “Como Remover um Presidente — Teoria, História e Prática do Impeachment” (Zahar, 450 páginas), Rafael Mafei postula que chegou a hora de, democraticamente, arrancar Bolsonaro do poder. Numa entrevista ao repórter Eduardo Sombini, do Universo Online (UOL), o mestre diz “que a aposta da oposição em enfrentar Bolsonaro nas urnas — em vez de defender seu impeachment antes — é, no mínimo, perigosa”. A rigor, em termos éticos, o doutor está certo. Mas uma tentativa de impeachment, numa situação de conflagração mas com um governo com forte apoio militar, talvez seja mais prático derrotar o ex-capitão pelo voto. Uma batalha pelo impeachment, sem que se tenha provas cabais de corrupção (e não se fala de corrupção moral) do presidente, pode levar a um golpe. Portanto, é mais razoável e pragmático que o povo, e não os políticos, retire Bolsonaro do poder em 2022. (Às vezes, aquilo que tecnicamente é correto não o é do ponto de vista do realismo da política e, mesmo, da vida.)

Lula da Silva e Bolsonaro estão à procura de formatar alianças com o centro político. O primeiro porque sabe que, se eleito, não governa sem o centro. Bolsonaro precisa do centro para conquistar um voto que, de alguma maneira, está migrando para o petista — numa espécie de sangria. Ao mesmo tempo, enquanto procuram cativar aliados no centro, o ex-presidente e o presidente trabalham para impedir o surgimento de uma candidatura consistente da terceira via, quer dizer, do centro. Os dois estão tentando “sugar” o centro.

Rip Van Winkle, personagem de Washington Irving | Foto: Reprodução

A busca de Bolsonaro pelo apoio do centro é um bom sinal para a democracia. Significa que está buscando uma alternativa política para se manter no poder, a partir de 2022. Se estivesse se comportando como vivandeira, aí, sim, seria um perigo para a democracia.

Voltando à imprensa. Se vencer a guerra contra a mídia, numa democracia, Bolsonaro será o primeiro a conseguir o intento. Até Bolsonaro, a imprensa patropi não tinha o hábito de tratar presidentes (exceto Fernando Collor, que mandou invadir a redação da “Folha de S. Paulo”) como “inimigos”, apesar de “fustigar” uns mais do que outros. Quem transformou a imprensa em inimiga foi o presidente, que a quer como “sorriso do poder” e não como “cárie do governo”.

Comenta-se que Bolsonaro é um político da extrema direita ou da direita. Mas é muito provável que a direita brasileira, no longo prazo, vai se arrepender de tê-lo apoiado. O presidente está “sujando” a direita esclarecida do país, que, como se considera adversária de Lula e da esquerda, ainda mantém seu apoio. No lugar de defendê-lo, inclusive seus erros — como os ataques à imprensa e a demora em vacinar os brasileiros —, a direita iluminista deveria aconselhá-lo a mudar de rumo. Depois de Bolsonaro, o eleitor independente, que não tem apreço pela esquerda e pela direita, vai pensar na direita como uma coisa, digamos, bárbara.

A direita esclarecida ainda não percebeu que Bolsonaro é um soldado invernal da Guerra Fria, tosco e muito mal-informado sobre a realidade dos dias atuais. Ele vive no passado, aquele em que comunistas e capitalistas se digladiavam, mas ocorre que todos os demais brasileiros vivem no presente. O passado retorna como pesadelo? Sim, e tem nome: Bolsonaro.

Num conto, o escritor americano Washington Irving relata que Rip van Winkle dormiu e acordou vinte anos depois. O mundo havia mudado; ele, não. É o caso de Bolsonaro — que sequer percebe que a China (uma ditadura, sublinhe-se), nas negociações com o mundo, guardou a ideologia comunista numa caixa forte inexpugnável. Os chineses querem ganhar dinheiro e, por isso, estão pouco se importando se os seus parceiros comerciais são capitalistas (preferem estes, por sinal) ou comunistas.

Ou Bolsonaro acorda em 2021 ou terá de acordar, em 1º de janeiro de 2023, como ex-presidente do Brasil.