Sim, Salman Rushdie não é inventivo, digamos, como James Joyce, William Faulkner, Guimarães Rosa e Carlo Emílio Gadda. Sim, o escritor indiano não tem o porte de Marcel Proust, Thomas Mann e, quem sabe, Yukio Mishima — e não se trata de desmerecê-lo. De alguma maneira, é um fabulista de uma linhagem próxima (o que não quer dizer idêntica) à de Gabriel García Márquez, o autor de “Cem Anos de Solidão” e “O Amor nos Tempos de Cólera” — romances que, gostando-se ou não do “cubismo” do colombiano, são acima da média e têm um caráter emblemático, referencial. O boom da literatura latino-americana existiria sem “Cien Años de Soledad”? Talvez não. A união “desunida”, mais por vaidade do que por cornice, entre García Márquez e Mario Vargas Llosa, autor de “A Cidade e os Cachorros” e “Conversa no Catedral” (trata-se de um bar), assegurou o sucesso literário de ambos e de outros autores que foram “puxados” pela dupla.

O livro que desencadeou a fúria do Irã contra Salman Rushdie

Pois, embora filho da literatura inglesa (e outras), sugando tudo o que há de moderno para escrever uma literatura ligeiramente tradicional, Salman Rushdie também é um escritor que deve alguma coisa, aqui e ali, a escritores como García Márquez.

O ditador Ióssif Stálin, o czar vermelho da União Soviética, quis saber de Boris Pasternak, o excepcional poeta e tradutor de Shakespeare, se Óssip Mandelstam era um grande poeta. Não se sabe se por inocência a respeito da malignidade do líder do comunista, o autor de “Doutor Jivago”, no lugar de apresentar uma resposta explícita — gritando “sim, é imenso, mantenha-o vivo!” —, divagou, sugerindo que precisava conversar pessoalmente com o político que não hesitava em matar. O bardo sublinhou que os dois precisavam dialogar sobre, digamos, a vida e a morte (especialidade do dirigente red). Stálin, que não perdia tempo com romantismo e palavras vãs, não fez nenhum esforço para salvar o imprescindível Mandelstam, que morreu, de tifo, num “campo de concentração” — isolado, faminto.

Livro no qual Salman Rushdie conta sua saga para escapar dos pistoleiros do além | Foto: Reprodução

Pois bem: Salman Rushdie é um grande escritor? É. Talvez tenha chegado o tempo de não mais se exigir que todo bom escritor seja um clone de Joyce e Faulkner. Em literatura, a rigor, não há ponto de chegada, quer dizer, fim da história. Por mais inventivos que sejam, que tenham “destruído” (o que é questionável) a “velha” literatura para “erguer” uma “nova”, Joyce e Faulkner não são toda a literatura; são parte dela. Importantes, sim; porém, não sufocadores do que se escreveu antes e depois. Joyce, por certo, é o Homero do século 20. Como deixar de ler Cervantes, Laurence Sterne, Stendhal, Flaubert, Ibsen (apreciado por Joyce), Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, Proust, Machado de Assis, Henry James, Thomas Mann, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Carlo Emilio Gadda, Borges, Saul Bellow, Lobo Antunes, José Cardoso Pires, entre tantos outros? Não é possível escanteá-los. A estante que cabe Joyce cabe (e precisa de) todos eles e muito mais, como Salman Rushdie, Milan Kundera, Philip Roth, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meirelles, Ian McEwan…

Hadi Matar: o homem que esfaqueou Salman Rushdie, num condado dos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Com seus temas míticos, às vezes mágicos, o que o aproxima de García Márquez, o racionalista Salman Rushdie é um grande contador de histórias — reais ou imaginárias. Merece ser lido e discutido.

Por ter escrito “Os Versos Satânicos”, um bom livro mediano, caiu em desgraça com a teocracia do Irã — que decidiu “encomendar” o seu assassinato. Durante anos, para não ser morto por John Wicks religiosos, pistoleiros do além, teve de se esconder, mudando de casa com frequência, sob a proteção da polícia da Inglaterra. Perdeu a privacidade, descasou-se. Sua história de fugas, para sobreviver, é contada no livro autobiográfico “Joseph Anton”, de 2012. É muito bom: belo e doloroso.

A Editora Companhia das Letras publicou uma série de livros de Salman Rushdie — o que permite aos críticos examinarem o conjunto de sua obra. É provável que o pecado da fama, o fato de ter se tornado popular, por causa da perseguição político-religiosa, atrapalhe, por vezes, o julgamento da qualidade de sua obra. Talvez, sem querer, como Milan Kundera — cujo “A Insustentável Leveza da Ser” deu-lhe sucesso, dinheiro, mas, ao consagrá-lo para além dos círculos sofisticados, afastou-o, em parte, de ser examinado por grandes críticos —, o autor de “O Último Suspiro do Mouro” seja visto como um criador de best-sellers.

Salman Rushdie sendo atendido | Foto: AP/Joshua Goodman

O fabulista excepcional, dotado de uma imaginação poderosa — aquela que cria realidades tão elásticas quanto as realidades reais —, bebeu em várias fontes, inclusive nos autores inventivos citados acima, mas parece ter conseguido firmar sua “voz” entre os grandes autores tradicionais (que nem são tão tradicionais).

Sim, Salman Rushdie merece sobreviver — como homem e escritor (o que só o tempo dirá). Esfaqueado barbaramente por Hadi Matar, de 24 anos — nos Estados Unidos —, o escritor foi operado e pode perder a visão de um olho, teve um braço e o fígado atingidos. Trata-se de um homem de 75 anos. Por mais saudável que seja, é idoso. Seu drama, por doloroso que seja, parece coisa de literatura. Da literatura de Dashiell Hammett e Raymond Chandler.

Livros de Salman Rushdie em português

Os Versos Satânicos

O Último Suspiro do Mouro

O Chão Que Ela Pisa

Fúria

Shalimar, o Equilibrista

Os Filhos da Meia-Noite

Cruze Esta Linha

A Feiticeira de Florença

Vergonha

Haroun e o Mar de Histórias

Luka e o Fogo da Vida

Oriente, Ocidente

Joseph Anton (autobiografia)

Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites

A Casa Dourada

Quichotte