Sai biografia exaustiva e não-autorizada do cantor, compositor e escritor Caetano Veloso

08 abril 2017 às 06h38

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O escândalo não é que a Seoman esteja publicando um livro que escancara a vida do brilhante artista, e sim que não se tenha mais biografias do rei da Tropicália
Caetano Veloso é um dos artistas populares mais fascinantes e sofisticados do país. Ele canta, compõe e escreve muito bem. E é músico — não tão bom quanto Gilberto Gil e Jorge Benjor, mas ninguém é perfeito. Dos vivos, há poucos pares para o baiano (uma lista mínima inclui Chico Buarque, João Gilberto, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Gilberto Gil). A surpresa não é que esteja chegando uma biografia não-autorizada às livrarias. O que impressiona é que um artista de sua qualidade, com quase 75 anos de idade, não tivesse sido biografado de maneira ampla. Por isso, com defeitos ou não, é muito bem-vindo o livro “Caetano: Uma Biografia — O Mais Doce Bárbaro dos Trópicos” (Seoman, 544 páginas), de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco.

Carlos Eduardo Drummond, poeta e compositor, e Marcio Nolasco, contista, pesquisaram a vida de Caetano Veloso durante 20 anos. Nem sempre contaram com a boa vontade do cantor e compositor, que não tem muito interesse que sua vida pessoal seja esmiuçada. Por quê? Porque, nunca disse. O mais provável é que, como todos nós, o artista queira uma imagem ajustada ao que pensa de si e ao que o próprio país pensa dele — um artista de sólida formação cultural que pôs no seu liquidificador a arte anterior e traçou um caminho próprio para si e parceiros, como Gilberto Gil e, quiçá, Tom Zé (no fundo, um Caetano Veloso de calça curta, o que não significa que seja ruim; não é). Como artista, Caetano Veloso é, por certo, filho da bossa nova de João Gilberto e incorpora a elaboração formal e crítica (embora de maneira mais malemolente) de Chico Buarque. Mas é idêntico a alguma de suas matrizes? Não é. Trata-se de um criador único, que, mesmo quando dilui, está criando, reinventando. A Tropicália, sua criação, com alguns parceiros, é uma diluição da música patropi, com influências externas, mas é uma criação autêntica, com caminho próprio, de Caetano e de seus companheiros de jornada.

Caetano Veloso preocupa-se com as “verdades” sobre a vida pessoal. A vida de uma pessoa nunca pertence apenas a si. Pertence à família, à sociedade e à história. O que se pensa a respeito de uma pessoa — ainda mais de um artista tão consagrado e talentoso — não é precisamente o que ela própria pensa de si. Possíveis escândalos, grandes ou pequenos, não diminuem o talento de um artista do porte de Caetano Veloso, mas o tornam mais matizado ou, digamos, mais humano, um ser mais próximo de todos nós e menos mitológico. Prováveis fraquezas são típicas de todos nós, mas, admiti-las, é sempre muito difícil, quando não doloroso.
O fato é que nenhuma biografia, ainda que extremamente áspera, o que não parece ser o caso, vai reduzir a importância de Caetano Veloso para a cultura patropi. Ele está inscrito na história da música do país como um dos grandes — numa lista que inclui Guiomar Novaes, Ernesto Nazaré, Villa-Lobos, Bidu Sayão, Carmen Miranda, Noel Rosa, Mário Reis, Ataulfo Alves, Dolores Duran, Dorival Caymmi, Paulinho da Viola, Martinho da Vila (cujas músicas são deliciosas, especialmente quando cantadas por ele mesmo), Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Gilberto, Egberto Gismonti, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Geraldo Azevedo, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Elis Regina e tantos outros. Está um passo à frente de alguns dos mencionados porque não se trata de um mero cantor e compositor, é também um intelectual que participa do debate da história da música (da cultura) do país, por exemplo, com o livro “Verdade Tropical”, sua versão do que é a Tropicália.
Como qualquer artista, ou indivíduo, Caetano Veloso tem suas idiossincrasias. De vez em quando, talvez para sacodir a modorra do país, promove um artista popular de qualidade duvidosa, mas no qual encontra alguma virtude, e choca os bem-pensantes. O fato é que, enquanto envelhece fisicamente, Caetano Veloso permanece, artisticamente, jovem — como se fosse um Dorian Gray, aberto às novidades, ainda que, muitas delas, poucos proveitosas, como arte refinada.

A arte de Caetano Veloso guarda um frescor das obras eternas. Por que ocorre isto? Porque não se data. Sua arte não é alienada, e portanto reflete o seu tempo, mas não se circunscreve a ele. Talvez não se possa falar em músicas “antigas” de Caetano Veloso, tal a sua vitalidade e permanência. Seu engajamento mais artístico do que político o torna moderno, sempre moderno, visceralmente moderno. Um artista assim pode-se preocupar com revelações pessoais de uma biografia? Só se fosse um indivíduo de sólida pequenez — o que não é o caso. Caetano Veloso não é um homem de miudezas.
A música de Caetano Veloso tem sido examinada com percuciência por críticos de variados matizes. Todos encontram alguma coisa diferente para dizer sobre sua obra variegada e criativa. Trata-se de um artista que reverbera, que mexe com as pessoas e abala a “quietude” do tempo, da história e dos que dormem o apaziguador e reconfortante sono dos comuns.
Portanto, a biografia, decente ou indecente, é bem-vinda, até muito bem-vinda. Caetano Veloso deveria aplaudi-la. Porque é um artista e indivíduo livre, aberto àquilo que muitos temem — o escancarar da vida privada, que nem sempre é agradável; é até doloroso. Mas não “mata” nem “derruba” ninguém — muito menos um criador cultural de sua magnitude. As contradições de um homem, longe de diminui-lo, o tornam mais diverso e, portanto, interessante. Caetano Veloso não é unidimensional…
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