Roqueiro tenta transformar modernismo de 1922 no Lobão mau da cultura brasileira
04 junho 2020 às 11h27
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Músico ataca a Semana de Arte Moderna sem apresentar crítica consistente à ditadura modernista, que exclui o que não cabe no seu figurino. Luís Augusto Fischer apresenta uma interpretação original
Texto publicado na edição do Jornal Opção de 12 a 18 de maio de 2013
O roqueiro Lobão é um marqueteiro que sabe, como poucos, chamar a atenção da imprensa. Como Caetano Veloso, seu par mais velho, é um craque na arte de provocar debates que, embora nem sempre relevantes, ganham foro de essenciais. No livro “Manifesto do Nada na Terra do Nunca” (Nova Fronteira, 248 páginas), título bombástico e, vá lá, meio infantil, um Lobão provocador e fragmentário reaparece palpitando sobre “tudo” e, como admite, sobre o “nada”. Afigura-se que é produto de muita leitura, mas feita aparentemente sem assimilar nuances. Noutras palavras, trata-se de uma obra não para entender o “adversário” ou a ideia contrária às suas convicções (se existem), mas de ataque, um míssil destrutivo. Há, mesmo, um certo grau de histeria, sem ponderar a bibliografia extensiva sobre determinados assuntos. O crítico contundente não se aproxima, nem de leve, de pensadores da cultura e da história brasileiras — como Gilberto Freyre (“Casa Grande & Senzala”), Sérgio Buarque de Holanda (“Raízes do Brasil”), Raymundo Faoro (“Os Donos do Poder”), Darcy Ribeiro (“O Povo Brasileiro”) e, mais recentemente, Francisco Weffort (“Espada, Cobiça e Fé: Origens do Brasil”). Poderia ser citado outro crítico importante, que tem repensado a intelectualidade patropi e o poder: Sérgio Miceli. Luís Augusto Fischer, crítico literário e pensador da cultura, escreveu um texto, “Reféns da modernistolatria”, publicado na revista “Piauí”, que será retomado adiante.
Entretanto, o fato de um roqueiro, de uma hora para outra — estumado por um editor inteligente e interessado em produzir um best-seller (as memórias do músico venderam 150 mil exemplares) —, se posicionar como intérprete do Brasil sugere pelo menos uma coisa. A intelectualidade local, às vezes mais preocupada com cargos, afazeres acadêmicos e com um debate mais interno e pontual (as dissertações de mestrado e teses de doutorado são cada vez mais específicas, escapando ao debate mais global), esquece, ao menos em parte, de propor um debate mais geral sobre o país. Daí que um artista pop, mimetizando o bobo do “Rei Lear” de Shakespeare, acaba por se sentir responsável por dizer aquilo que, em tese, ninguém diz, não pode dizer ou não quer dizer. Portanto, se os não midiáticos se escondem do mercado — felizmente, alguns deles, como Sérgio Miceli, Luís Augusto Fischer e João Cezar de Castro Rocha, não renegam o debate para um público mais amplo, o dos jornais e revistas —, os midiáticos, de olho na circunstância e no primado da mercadoria, como a venda de livros, CDs e do próprio nome-marca, ocupam todos os espaços. Lobão torna-se “interessante”, dizendo coisas inteligentes (“verdades”) ou risíveis (devido aos exageros), exatamente porque os intelectuais verdadeiramente interessantes não se apresentam para um debate público. Luís Augusto Fischer, uma das exceções acadêmicas, diz coisas muito mais densas sobre a “ditadura” modernista, num ensaio de três páginas, do que muitos autores em livros massudos. Mas, antes de comentá-las, vamos às ideias de Lobão. Um esclarecimento que a honestidade exige: não li o livro do “pensador nitroglerina”, o que é uma falha grave; assim, este comentário resulta da leitura de entrevistas do músico aos jornais “Folha de S. Paulo” — concedida ao repórter Lucas Nobile — e “O Globo”, dada à repórter Claudia Amorim.
O que interessa são seus comentários sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 — porque, em seguida, apresentarei as ideias, muito mais sólidas e inquiridoras de Luís Augusto Fischer — e os modernistas, como Oswald de Andrade. Na entrevista “Eu sou muito petulante” (“O Globo”, sábado, 4), Lobão pontifica: “Eu queria falar sobre o fato de a Semana de Arte Moderna de 22 estar conectada com o Brasil de agora, com o porquê de a gente ser assim, baseado naqueles cânones: a preguiça, a precariedade, o mau-caratismo…”. Sem dúvida, uma leitura redutora tanto do modernismo de 22 quanto do brasileiro — que, como povo, o conjunto, não é preguiçoso e mau caráter. Há preguiçosos e maus caráteres em quaisquer países. Porém, nem uma pesquisa exaustiva, feita por dezenas de estudiosos, talvez dê conta de definir um povo, para além dos estereótipos, como “preguiçoso” e “mau caráter”. No caso específico, como provar que o modernismo colou tais características nos brasileiros? O romance “Macunaíma” seria, na visão de Lobão, uma bíblia (a ser) “repetida” pelos brasileiros, ou, antes, uma obra literária, um registro de determinada psicologia popular e um esboço da linguagem brasileira captada pelas antenas de Mário de Andrade?
Depois de ler mais de 60 livros, incluindo os do old terrible da direita brasileira, o filósofo Olavo de Carvalho, Lobão ataca o “Manifesto antropófago” de Oswald de Andrade. “Percebi”, disse o artista ao “Globo”, “que eu tinha um diálogo com o Oswald: ele falava uma coisa, eu desdizia, eu tinha o que retrucar”. Na interpretação do roqueiro, exposta pelo jornal, “as ideias” do escritor paulista “não passam de um atraso, de nacionalismo barato e equivocado”. Nas palavras do próprio músico: “De positivo, só teve a vontade de mudar. O resto eu acho uma porcaria muito grande. Discordo em gênero, número e grau de tudo que ele fala. Digo a ele, por exemplo: ‘Oswald, você é guarani-kaiowá? Você é Andrade! Que é isso? É índio de butique, com penacho Chanel na cabeça? Que merda é essa?’”
Na análise de Lobão, “tudo veio da Semana de 22”. Por isso, vocifera: “Derrubando isso, eu derrubo o resto, todos os movimentos: Cinema Novo, Tropicália, Concretismo, MPB”. Ora, se tudo veio de 22, como anota Lobão, nada que existe fora de 22 conta. Na prática, ao atacar com certa volúpia, mais virulência do que crítica, o roqueiro, quiçá desnorteado, não percebe que está fazendo o jogo dos modernistas: supervalorizando-os. Só eles existem. Os outros são vítimas e, mesmo, não existem.
À “Folha de S. Paulo” (“‘Tudo passa na Lei Rouanet’, diz Lobão”, quinta-feira, 2), o roqueiro expandiu sua crítica: “Todos esses mitos da Semana de 22 foram perpetuados por movimentos como o Concretismo, o Cinema Novo, a Tropicália. Sempre tive muito desinteresse pela Tropicália. Tom Zé, Jards Macalé e João Donato sempre foram melhores do que os que estão aí hoje representando o movimento, tanto o da bossa nova quanto o da Tropicália. João Donato dá de mil no João Gilberto porque é um puta compositor e pianista. Mas nunca tem o mérito, é tudo o pistolão, quem tem amigo, é da máfia. É conchavo o tempo todo. O Gilberto Gil, a Preta Gil, é um absurdo. Ganhou um império atrás dos benefícios do pai”. Espera-se que no livro a crítica seja mais sustentada. Porque, nas entrevistas, o roqueiro enuncia, mas não explora devidamente suas explosões “criativas”. Por que Tom Zé e Jards Macalé são melhores do que Caetano Veloso e Gilberto Gil? Não sabemos. O curioso é que Tom Zé sabe, e diz sempre, que o trabalho de Caetano Veloso é mais rigoroso e rico do que o seu. Modéstia? Pode ser. Talvez seja reconhecimento de que, em termos estéticos, Caetano Veloso avançou mais e que, de algum modo, o próprio Tom Zé é derivativo de sua arte. Jards Macalé? Sua obra musical, ainda que não seja de má qualidade, não tem a consistência e a elaboração estéticas da arte de Caetano Veloso e, mesmo, de Gilberto Gil. No caso de Preta Gil, não se trata de avaliação musical, e sim de “denúncia” — que deve ser investigada mais pelo Ministério Público do que por comentadores artísticos.
Crítica consistente
Apesar das incongruências, de sua histeria crítica — fica-se com a impressão de que descobriu tudo de repente e, como a galinha que botou ovos, precisa gritar ao mundo o que aprendeu —, Lobão encontra eco numa crítica, muito mais bem formulada, do crítico literário Luís Augusto Fischer. O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é um dos mais contundentes e precisos críticos da hegemonia cultural modernista — a referida, de maneira um tanto quanto desconexa, por Lobão. Na revista “Piauí” que está nas bancas, há um ensaio notável do doutor em literatura, “Reféns da modernistolatria”. O mestre explica aquilo que o roqueiro intui e apresenta como mero combate, e não crítica elaborada. Se Lobão fecha, Fischer reabre o debate.
Fischer nota que, em 2003, a Edusp (Editora da USP), a Editora da UFMG e a Imprensa Oficial, com organização do crítico Jorge Schwartz, lançaram uma Caixa Modernista, que contém “um conjunto expressivo de elementos fac-similares do modernismo paulista” e um CD com o nome, “aparentemente neutro”, de “Música em Torno do Modernismo”. Mas o mestre gaúcho percebe um escândalo, que já havia denunciado antes: entre Villa-Lobos, que participou da Semana de 22, e Camargo Guarnieri, que não participou mas pode ser conectado ao projeto modernista, aparecem compositores como Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros, Lamartine Babo e Darius Milhaud.
Por que os brasileiros nascidos no Rio de Janeiro e o francês são postos, à força, na Caixa Modernista? “Estão assimilados, inequivocadamente, ao espólio modernista ou, para ser redundante e preciso, ao espólio modernista paulista”, frisa Fischer. “Mas nada tiveram a ver com a Semana ou com Mário de Andrade ou o quer que seja.”
Pode-se “agarrar” artistas, populares ou eruditos, e inclui-los à força no projeto modernista? “Pode porque, depois de estabilizada como Fato Incontornável, a Semana de Arte Moderna paulista pode tudo. Inclusive acumular méritos que não lhe são próprios, como este”, denuncia Fischer. O professor diz que é contrário à “absorção liminar” dos compositores citados acima “ao modernismo paulista, ou ao entorno dele, com o qual nada tiveram, de longe ou de perto”.
Lobão não chega a tanto, o que sugere que a bibliografia de mais de 60 livros não foi suficiente, mas Fischer segue adiante e examina a origem da dominância cultural paulista, ou paulistana: na Universidade de São Paulo, “direta ou indiretamente, foi que ganhou carnadura o desejo de reinterpretar o Brasil a partir das demandas paulistas, em especial no campo da literatura, mas não só. Na USP, que formou várias gerações de professores dessa disciplina, Mário de Andrade virou santo de devoção obrigatória”.
A seguir, Lobão, o “scholar”, terá prazer ao verificar uma das críticas de Fischer. Embora notando as qualidades do livro “1922: A Semana Que Não Terminou” (Companhia das Letras), do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, o professor percebe, nas entrelinhas, que ele defende que “foi o tropicalismo que validou o modernismo, que o fez entrar nas casas de família da classe média brasileira e adquirir o valor de Fato Maior. (…) Foi Caetano cabeludo e doce, ousado e tradicional, que criou o âmbito adequado para o modernismo fazer sentido”.
Fischer percebe que a visão modernistocêntrica consolidou-se por volta de 1975. Seu registro: “Até 1975, os próceres do modernismo eram notícia rara e leitura escassíssima na escola brasileira, e os autores apareciam de mistura uns com os outros, sem diferença de tamanho, Mário [de Andrade], [Menotti] Del Picchia, Graça Aranha. De 1980 em diante, já havia sido consagrada a centralidade de Mário de Andrade, secundado por Oswald bem de longe, e tudo fazia parte da rotina da aula”.
Nada, além da visada modernista, importava. “O modernismo agora era a lente certa e única para ler tudo. (…) Tudo que vale é modernista”, anota Fischer. Até a arquitetura de Oscar Niemeyer, como era modernista, nasceu canônica. “Mal nascia, a obra de Niemeyer já era monumento histórico, sem passar pelo duro teste da vida, da frequentação miúda, da arguição serena e implacável do tempo”, aponta o professor.
Irmanados, modernismo e tropicalismo, um pai do outro, ou o tropicalismo tornando-se pai mesmo sendo filho, “passaram a ser os donos do campinho no Brasil, submetendo tudo ao Imperativo do Novo a Qualquer Custo. Tudo se mede pelo Novo, colagens inesperadas, materiais imprevistos, abordagens inéditas, assuntos raros, tudo acompanhado por caretas e trejeitos para plateias embevecidas, já afinadas, ou plateias contrariadas, gente lamentavelmente antiga”. De um lado, Mário de Andrade, como semideus, vaticinava que “incontornável” era o modernismo, quiçá inventor de si mesmo. De outro, como se fosse o Mário de Andrade da música, Caetano Veloso sugere que, fora do tropicalismo, não há salvação — aceitando, no máximo e, quem sabe, contrariado, a bossa nova de João Gilberto e a música popular de Chico Buarque (um dos poucos compositores engajados que não podem ser examinados unicamente pela ótica do engajamento político, dada a refinada elaboração estética).
Fischer observa que, como artistas, Mário de Andrade e Caetano Veloso validam “sua própria produção, sem qualquer necessidade de vozes que exponham o ponto de vista da recepção”. O crítico sugere que se deveria “desconfiar, pela esquerda, da impressionante afinidade, da irmandade profunda entre o bloco modernismo/tropicalismo e o chamado Mercado, os dois regidos pela mesma lógica do Novo a Qualquer Custo”. Roberto Schwarz, embora não citado, talvez tenha sido um dos poucos a discutir o assunto em ensaio recente sobre o livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso.
Excluídos do modernismo
O modernismo tem uma fissura: inclui quem pensa parecido e exclui a diversidade contestatária. Fischer sustenta que os modernistólatras não deram qualquer protagonismo a um intérprete como Manoel Bonfim. “A hegemonia modernista não parou jamais de obstruir e mesmo obstar totalmente a leitura de parnasianos e simbolistas, realistas e naturalistas. (…) E o cretino termo ‘pré-modernismo’, até hoje de livre trânsito escolar e crítico, continua a demarcar negativamente o terreno de acesso a João do Rio, Simões Lopes Neto, Lima Barreto e tantos outros, gente de obra superior em suas particulares escolhas temáticas e formais, mas gente cuja obra padece de leituras liminarmente distorcidas. A hegemonia modernista avançou e passou a abranger tudo, tornando-se invisível”.
O modernismo de Mário de Andrade “não” aceitou o carioca Machado de Assis. O próprio Mário Andrade preferia o prosador cearense José de Alencar. Ambos tinham afinidades ideológicas — eram “sábios” de uma interpretação nacionalista do Brasil. “Machado, que é um grande feito artístico real, não é alcançado pela visada modernista, fato que depõe contra ela de modo inapelável. Como teoria do Brasil, o modernismo deixou essa lacuna vergonhosa”, quase exulta, quem sabe irado, Fischer. “O modernismo passou a ser a régua de medição de tudo” e, por isso, “redefine o modo de ver a vida e a arte. (…) Num processo lento, fluvial, invisível e irreversível, como é o da construção da história e da historiografia de uma cultura, o Brasil virou presa dessa visão modernista, por um lado reivindicadora da identidade nacional, por outro praticante ou postulante da vanguarda.”
Fischer insiste que o modernismo não conseguiu, ou não quis, explicar Machado de Assis. Mas e Guimarães Rosa, autor de “Sagarana” e “Grande Sertão: Veredas”? “No caso de Rosa”, ressalta Fischer, “salvo impressões muito genéricas (e triviais ou mesmo equivocadas), como os que veem no ‘Grande Sertão’ uma decorrência dos experimentos joycianos, da mesma forma o modernismo não ilumina muita coisa”.
Se é útil para validar os supostos adversários Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e até para considerar e incorporar Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto como companheiros de jornada, o modernismo, no dizer de Fischer, não tem bom olho para Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues. “Mas como poderá dizer algo de Machado e Rosa, quando esses dois valeram-se de formas literárias e culturais tidas como antigas, regressivas até — Machado imitando romance irônico inglês do século 18 no momento em que o realismo era a regra atualizada para narrar, Rosa dando voz a um caipira que o tempo parecia ter já sepultado naquele 1956, época de euforia moderno no Rio e em São Paulo.”
Fischer termina seu texto de uma maneira que Lobão apreciaria: “A Semana [de 22], de fato, não terminou”. Sobretudo, não vai terminar se as críticas ao seu legado, à sua dominância, não forem feitas de modo racional e consistente, como as de Fischer. Lobão pode provocar polêmica, até apresentar ideias interessantes — e seu estilo fragmentário é herdeiro da Semana de 22, que renega —, mas, ao contrário de Fischer, mais tira do que põe os pingos nos is.
Deixo, por fim, uma indagação: Lobão e Fischer, por caminhos diversos, um pela polêmica desabrida e outro pela crítica apurada, não estariam contribuindo para “impor” um novo vitimismo? Não estariam “criando” as vítimas do modernismo? Afinal, os “massacrados” não reagiram? Por que não reagiram? Por que transformar alguns escritores em chapeuzinhos vermelhos do “Lobão” mau modernista?