Livro de escritor da Catalunha relata a história dos que fugiram da tirania fascista e dos que ficaram na Espanha de Franco

Há livros de Juan Marsé publicados no Brasil, mas o escritor catalão parece ser pouco conhecido dos leitores patropis. Quando morreu, em 18 de julho deste ano, os jornais brasileiros publicaram notas básicas, sem nenhuma relevância. Os jornais de Barcelona, onde nasceu, e de Madri, a capital, deram amplo destaque à obra e ao autor, que tinha 87 anos e deixou uma obra extensa. Portugal e outros países europeus também mostraram sua importância para a literatura universal.

Não há a menor dúvida de que Juan Marsé é um notável prosador e, talvez, menos tradicional do que se pode pensar. O romance que comento é “O Feitiço de Xangai”¹(Campos das Letras, 219 páginas, tradução de Cristina Rodriguez e Arthur Guerra). Há dois romances num só, uma das histórias ganhando foro de mais, digamos, inventada do que a outra. É como se houvesse um narrador básico, que conta a história principal — a rigor, nem se sabe direito qual é a principal, pois o título do livro deriva da história que pode ser tachada de secundária —, supostamente verdadeira, e outro narrador, o personagem Nandu Forcat, que cria uma história lógica, mas que se revela “fantasiosa”.

“O Feitiço de Xangai”, embora não seja tratado assim pela escassa crítica ao meu alcance, é também, de alguma maneira, um romance de formação. Os adolescentes Susana Franch e Daniel amadurecem e se integram à vida de adultos, não como intelectuais, mas como pessoas comuns, como se se dissolvessem no meio da multidão — integrando-se.

Entre 1936 e 1939 aconteceu a célebre Guerra Civil Espanhola — que, embora às vezes exibida como romântica, foi uma batalha sangrenta entre republicanos (democratas, socialistas, anarquistas, trotskistas e comunistas) e franquistas (fascistas). O grupo de Francisco Franco venceu e quem não concordava com seu governo ditatorial foi preso, assassinado, silenciou-se ou teve de sair do país. Muitos espanhóis se exilaram na França. De lá, faziam incursões na Espanha, nada de grande monta, mas mantendo a chama revolucionária do mundinho da esquerda que havia perdido seu país e acabou lutando também na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados.

A esquerda dizia que o fascismo de Francisco Franco (apoiado por Alemanha e Itália) não chegaria ao poder, mas chegou | Foto: Reprodução

Sem nação, deslocados, os apátridas trafegavam entre a França e a Espanha, como se participassem de uma luta que era só sua e que a sociedade mal percebia e, portanto, não dava importância. Suas famílias ficaram no país dirigido por Franco e suas tropas. Os revolucionários sem revolução mantêm pouco contato com filhos e mulheres. Mandam dinheiro quando podem, o que é raro, o que leva algumas mulheres a empregos mal remunerados, vivendo à beira, algumas, da mendicância.

O pai da menina Susana, tuberculosa, é Joaquim Franch i Casablancas, mais conhecido como Kim. Trata-se de um revolucionário que, se ama a filha, ignora olimpicamente sua mulher, Anita — a bela e vulnerável loura que trabalha, para manter a casa, no Cine Mundial. Kim às vezes deixa a França e vai à Espanha, mas raramente visita a filha e Anita. Manda o emissário Forcat, outro revolucionário que, aos poucos, desiste da revolução.

O revolucionário Luis Deniso Mascaró, o Denis, manda dinheiro para sua mulher por intermédio de Kim. Já este, quando quer acessar a família, envia — se é que envia — Forcat, o amigo e ex-companheiro de jornada. A revolução, afinal, é mais importante do que a vida difícil dos familiares. O julgamento moral, que faço, não aparece de maneira explícita no romance — que procura mais mostrar o que ocorre do que defender teses. As pessoas são exibidas em sua inteireza contraditória.

Na falta de uma referência como Kim, em Barcelona, um personagem estranho — fantasmagórico, ele próprio se “considera” invisível —, o capitão Blay domina boa parte da história.

Juan Marsé, escritor da Catalunha | Foto: Reprodução

O capitão Blay, por certo, é outro revolucionário, só que não se interessa mais pela revolução, e até se “esconde” num estranho armário. Aos poucos, o velho encampa a luta — só sua — contra o vazamento de gás numa praça e a poluição de uma fábrica. Com o apoio de Daniel, que parece guiá-lo — mas vai amadurecendo com as conversas estranhas mas perceptivas do parceiro —, o capitão Blay sai pelas ruas pedindo que vizinhos e transeuntes assinem um abaixo-assinado. As pessoas tendem a menosprezá-lo, mas o personagem quixotesco não se incomoda e parece se divertir com a falta de interesse das pessoas pelo meio ambiente. De algum modo, Daniel é um Sancho Pança mirim.

Daniel, que sabe desenhar, acolhe uma ideia do capitão Blay. Ele desenhará a menina Susanita para mostrar que a poluição agrava sua tuberculose. O retrato deve mostrá-la esquálida. Contrafeita, Susana convence Daniel a fazer dois desenhos, o encomendado pelo capitão Blay, e o encomendado por ela, que deveria ser mais bonito, sobretudo porque pretende enviá-lo para o pai, que, da França, “foi” para Xangai, numa missão, agora não mais de esquerdista, e sim de vingança.

Como Susana, Daniel vive com a mãe e é filho de um pai que supostamente morreu na Segunda Guerra Mundial. Embora sejam praticamente da mesma idade, Susana é mais madura e se diverte com aquele que chama de “menino”. Às vezes, se exibe, de maneira sensual, para Daniel, que não sabe o que fazer, exceto observá-la com prazer e adoração. Há uma bela cena de Susanita dançando e sendo vista da rua pelo garoto. Parece uma sombra.

Entre os passeios pelas ruas, com o capitão Blay — “obstinado e louco, mas não tonto nem cego” —, e as conversas com Susana, e depois ouvindo as histórias de Forcat, Daniel vai se tornando homem, se preparando para um trabalho que havia sido arranjado pela mãe.

Edição espanhola do romance de Juan Marsé | Foto: Reprodução

De repente, como se tivesse aparecido do nada, uma espécie de renascer do mundo dos mortos, surge Forcat. Outro indivíduo de esquerda, para a qual falsificava e inventava assinaturas. Trata-se de um homem estranho e misterioso (esquenta o chá esfregando o copo com as mãos e massageia as pernas de Anita sem tocá-las). “O seu olho como de aço e estrábico. O olho frio de pupila imóvel e levemente enevoada que parecia repelir a luz e perceber outra realidade.”

Forcat chega, abanca-se na casa de Anita e Susana. Com sua presença, a casa “acalma-se”.  Tranquilo, meio mágico (Marsé registra o caráter mágico da vida), conta histórias em parte parecidas com as da mil e uma noites. Torna-se a liga entre Susana e o pai, ao relatar suas “aventuras”.

Na França, Denis e Kim se encontram e conversam sobre a viagem que o segundo faria à Espanha para se encontrar com companheiros. “Olhámo-nos nos olhos; nos seus apaga-se o último resplendor de um sonho, nos meus já só há cinza.” Kim revela certo desencanto. Mesmo assim, na história relatada por Forcat, que cria a história alternativa, Kim vai para a Espanha, onde acaba por descobrir que seu grupo está infiltrado pela polícia de Franco. Aliados que iriam encontrá-lo são presos. Ele escapa e leva a mulher e o filho de Denis para a França.

Na terra de Charles de Gaulle, Kim encontra um velho amigo, Michel Lévy, o capitão Croisset da Resistência Francesa. O ex-militante, agora empresário na China, está em Paris para se operar da coluna.

Michel Levy pede um favor a Kim: que vá a Xangai, onde mora com a mulher, a bela chinesa Chen Jing Fang, e mate Helmut Kruger, um coronel da Gestapo. A história, frise-se, é contada por Forcat aos adolescentes Susana e Daniel. A mulher do ex-revolucionário “corre” perigo

Em Xangai, Kim descobre que Chen Jing Fang leva uma vida misteriosa. Na China, para onde foi de navio, encontra-se com Helmut Kruger, que se faz passar por Omar Meiningen. De repente, o que parecia não é tão lógico assim. Resultando que Kim decide não matar o suposto nazistão. Por quê? O leitor terá de ler o romance para saber.

Estando Forcat, Anita e Susana, além da visita Daniel, perfeitamente entrosados, eis que surge Denis. A história, que havia sido “arranjada” por Forcat, limando contradições e criando a imagem de um Kim heroico, agora é recontada.

Kim não era o santo que parecia ser (a rigor, o romance sugere que ninguém é). Estaria mesmo em Xangai? Denis relata que Kim seduziu sua mulher e fugiu com ela e o filho. Expulsa Forcat da casa, mais por “desmascará-lo” — e será que a história de Denis é mais verdadeira do que a do agora rival? —, e ocupa seu lugar. Torna-se tirânico. Anita volta a beber e sua vida esvai-se. Denis leva Susana, que se recupera da tuberculose. Mais tarde, Forcat arranca a sofrida garota de suas mãos. E a vida segue.

Um dia, Daniel vai ao Cine Mundial, em Barcelona, para ver Susana, que agora substitui a mãe na bilheteria. Observa-a, de longe. Mas decide não conversar com a mulher que, quando adolescente, o havia mesmerizado tanto. A impressão que se tem, ante a sua dúvida, é a de que o passado era mais imaginativo — continha um certo esplendor emocional e alguma candura — do que o presente. Agora, os dois haviam se tornado trabalhadores, com uma vida menos encantada, menos mágica, menos dada à imaginação. (“Apesar de se crescer e por mais que se olhe para o futuro, uma pessoa cresce sempre para o passado, talvez à procura do primeiro deslumbramento”, concluiu Daniel.)

O narrador sublinha que “a vida às vezes é uma carga pesada, e é bom que nos enganemos um pouco a nós próprios, que cultivemos secretamente alguma ilusão”. Está se referindo ao esquerdista Kim, mas talvez também aos demais personagens, cujas histórias parecem amputadas. Pela ditadura franquista? Não há agruras humanas apenas em ditaduras, mas, sob regimes tirânicos, a limitação da liberdade, as restrições ao pensar e ao ir e vir — como aconteceu na Espanha de Franco —, as pessoas acabam por perder a vida que levavam, sobretudo se discordarem dos abusos que são cometidos pelo Estado. Seres humanos mais restritos são menos encantadores.

Nota

¹ Trata-se de uma edição de Portugal, com suas palavras inusuais no Brasil: taralhouco, cheirete, gandulos, carolo, marcha-a-trás, boa piela, massajar, ena, garafunho….