Romance “A Marca Humana” mostra a corrosiva crítica de Philip Roth ao moralismo
02 novembro 2015 às 19h22
COMPARTILHAR
A crítica mais pertinente e corrosiva ao moralismo contemporâneo está, não num livro de ensaios, e sim num livro do autor de “O Complexo de Portnoy”
A crítica mais pertinente e corrosiva ao moralismo contemporâneo, sobretudo o norte-americano, está, não num livro de ensaios, mas no romance “A Marca Humana”¹ (Companhia das Letras, 454 páginas), de Philip Roth. O caso Bill Clinton-Monica Lewinsky é citado e ecoa na história de “amor” do professor de letras clássicas Coleman Silk com a faxineira Faunia Farley.
Mais do que uma condenação dos que atacaram Clinton, o romance de Philip Roth é uma exposição de como os seres humanos são complexos e como a história de cada um deles precisa ser examinada com mais atenção e, vá lá, condescendência.
A base da história é a seguinte (mas é ao contá-la que a história se torna grande): o ex-reitor da Universidade Atena Coleman Silk chama alguns alunos de spooks e é acusado de racismo por uma aluna e por uma professora, a francesa Delphine Roux. Coleman se refere a alunos fantasmas, “espectros”, mas a aluna preferiu traduzir por “negros”. Depois de uma perseguição implacável, liderada por Delphine Roux, Coleman pede demissão da universidade que havia renovado a ferro e fogo. Aos 71 anos, aposentado, seduzido pelo jazz (ouve insistentemente ‘The Man I Love’ [https://www.youtube.com/watch?v=oh4ntia0hOE], dos irmãos Gershwin, com Artie Shaw, clarineta, e Roy Eldridge, no trompete), apaixona-se (talvez o termo seja forte demais) por Faunia Farley. Daí, o escândalo ganha nova força e ele perde o apoio dos filhos. Em seguida, Coleman e Faunia morrem num acidente provocado por Lester Farley, ex-marido de Faunia e ex-combatente no Vietnã.
No enterro de Coleman, o “autor” da história, o escritor Nathan Zuckerman, tido como alter ego de Philip Roth, encontra-se com Ernestine, irmã do professor, e descobre sua história secreta. Coleman era branco, até ali, mas Ernestine revela que era, na verdade, negro, filho de negros, mas reconstruiu sua história, num exercício complexo resultante de uma personalidade fascinante e forte, tornando-se branco. O brilhante intelectual, especializado em literatura clássica — sabia tudo sobre a ‘Ilíada’ —, é dotado de uma individualidade tão sólida que influencia até o narrador, que se sente capturado por ele, paradoxalmente, na “jaula” da liberdade. Coleman, ao deixar de ser negro, construíra uma identidade judaica.
Nathan Zuckerman diz que, “embora o mundo esteja cheio de pessoas que andam por aí achando que sabem perfeitamente tudo a respeito de nós, o fato é que nunca se chega ao fundo daquilo que se desconhece. A verdade a nosso respeito é infinita. (…) A verdade de cada um é coisa que ninguém sabe, e muitas vezes quem menos sabe é a própria pessoa”. Como diz Shakespeare (autor amado por Clarence Silk, pai de Coleman), em “MacBeth”, “a vida é uma história narrada por um idiota, cheia de som e fúria, sem qualquer sentido”.
A leitura de ‘A Marca Humana’ pode ser combinada com ‘Desonra’, de J. M. Coetzee, e ‘Luz em Agosto’, de William Faulkner. Há um diálogo (não subordinação) muito inteligente entre o Faulkner de ‘Luz em Agosto’ e o Philip Roth de ‘A Marca Humana’. Joe Christmas (personagem de Faulkner) é branco, na aparência, mas, como ele próprio diz, “nas minhas veias corre um pouco de sangue negro” (página 161). O livro de Coetzee também conta a história de um professor que, tal como Coleman e Christmas, conhece a danação.
O poder da imaginação
‘A Marca Humana’ é tão inteligente e bem-formulado que, em dado momento, o narrador, Nathan Zuckerman, diz que não sabe se Coleman esclareceu para Faunia Farley que, apesar de parecer branco, era negro. Ele diz que só pode usar a imaginação e nos convida, sem dizer que está nos convidando, a também usá-la. “Agora que sabia tudo [sobre Coleman], era como se eu nada soubesse”, diz Nathan Zuckerman.
Roth é assim: não explica nem esclarece tudo; ele sugere, como Henry James, que o leitor use um pouco de imaginação, de inteligência e partilhe a história. O grande autor sempre acredita que o leitor tem capacidade de discernir e poder de imaginação.
Livro aprisiona filme
O filme ‘Revelações’, de Robert Benton, não é ruim, mas não tem 20% da excelência da prosa de Philip Roth. É, no máximo, bom. A tentativa de ser muito fiel ao romance ‘A Marca Humana’ acabou por ser uma ideia infeliz, por incrível que possa parecer — sobretudo porque sempre cobro esse tipo de fidelidade. Faltou aquela liberdade que, na falta de melhor expressão, chamo de “liberdade criativa”. Estranhamente, o romance nada tem de acadêmico, embora trate em grande parte da vida universitária, mas o filme é acadêmico, “limitado” pelo texto de Philip Roth.
Ao contrário do que a crítica de cinema brasileira publicou, Nicole Kidman está muito bem como Faunia Farley. Nicole “é” Faunia, mas — e aí não é culpa da atriz, e sim do roteiro — a Faunia do romance é mais áspera do que a Faunia do filme. Anthony Hopkins, sobretudo quando leciona, não tem a segurança, a convicção e a confiança de Coleman Silk — parece-me, ao contrário, ligeiramente inseguro e desmotivado. Mas não decepciona. Há um trecho belíssimo sobre a solidão e o silêncio, na página 62, porém difícil adaptá-lo para imagens.
No dia que vi o filme, num cinema do Flamboyant, alguns espectadores ensaiaram alguns risinhos, quando a garota Steena dança, embalada pela música de Artie Shaw e Roy Eldridge. O riso era devido à calcinha, muito grande (a cena era da década de 40), de Steena. Mas a maioria estava visivelmente incomodada e acredito que, felizmente, Nicole Kidman, sobretudo, e Anthony Hopkins foram responsáveis por ninguém sair antes do término do filme. Felizmente, para quem gosta de livros e vê o cinema como uma arte de segunda, ou nem arte, e sim entretenimento (o que já é muito), no caso, quem quiser entender bem o filme, ou pelo menos tentar, deve ler o romance.
Problema, que talvez nem seja um problema: o narrador, Nathan Zuckerman, tem 65 anos, teve câncer, acabou de ser operado da próstata e está sexualmente impotente. No filme, Zuckerman, representado pelo ator Gary Sinise, tem 41 anos e já é operado da próstata (acontece, mas é mais raro). Outro probleminha: quem não leu o livro não vai entender porque, no filme, Coleman chama o advogado Nelson Primus de “branco virginal”. No romance, quando Coleman anuncia que se “tornará” branco definitivamente, Walt Silk, seu irmão, o ataca duramente e o chama de “branco virginal”.
A tradução de Paulo Henriques Britto, poeta refinado, é perfeita. Há um único senão. Na página 100, há um personagem de nome Jimmy Borrero, mas, a partir da página 272, o mesmo personagem aparece com o nome de Louie Borrero. Não há nenhuma explicação para a mudança de nome e tudo indica que a falha é da edição brasileira.
Um Nobel para Roth
O mais divertido romance de Philip Roth, “O Complexo de Portnoy”, merece ser relançado no Brasil. Não é um livro pervertido, como pode parecer à primeira vista, mas uma vigorosa sátira ao mundo judaico escrita por um judeu. Esse livro não é “filonazista”, como defenderam judeus obscurantistas, pois a sátira não é necessariamente contra, pode ser a favor, mas rir de si mesmo, falando de outros, como um personagem literário, é de uma sabedoria espantosa. Felizmente, com Roth consagrado, a história do “filonazista” desapareceu do mapa.
“Lição de Anatomia” é um excelente romance, quase tão divertido quanto a história de Portnoy. “O Seio”, uma novela, é “A Metamorfose” norte-americana; no lugar de se tornar um inseto, um homem se torna um seio.
“O Teatro de Sabbath” também mostra Roth em grande forma, mas “O Complexo de Portnoy”, que pode ser encontrado apenas em sebos (e deveria ser reeditado urgentemente)², é a melhor porta de entrada à obra do maior escritor norte-americano vivo. Roth deve ser um dos próximos³ premiados com o Nobel de Literatura. Se não for, os suecos provam, mais uma vez, que, se entendem alguma coisa de política, nada sabem de literatura.
Notas
¹ O comentário sobre “A Marca Humana”, publicado no Jornal Opção em 2003, não estava na internet — só na edição impressa.
² “O Complexo de Portnoy” saiu pela Companhia das Letras, com precisa tradução de Paulo Henriques Britto, em 2004.
³ Minha capacidade de prever o julgamento dos jurados da Academia Sueca não é dos melhores. Pois, mais de dez anos depois da publicação do meu texto, Philip Roth ainda não ganhou o Nobel de Literatura. No período, ele anunciou que não vai mais publicar livros, ao menos prosa.