Revista “IstoÉ” erra ao comparar Bolsonaro com Hitler?

17 outubro 2021 às 00h00

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A irritação da publicação reflete, possivelmente, o descompasso entre o governo de Bolsonaro e a sociedade brasileira
Provocada pela Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) levou à morte mais de 60 milhões de pessoas (há livros que estimam em 80 milhões). Nos campos de extermínio, como Auschwitz-Birkenau e Treblinka, foram assassinados pelos nazistas 6 milhões de judeus. Morreram também ciganos, testemunhas de Jeová e homossexuais.
A brutalidade nazista tem similar na União Soviética de Stálin (foram assassinadas cerca de 25 milhões a 30 milhões de pessoas) e na China de Mao Tsé-tung (o governo comunista matou cerca de 70 milhões de indivíduos).
A direita e a esquerda são responsáveis pelo maior genocídio da história, e não apenas do século 20.
Portanto, quando põe o presidente Jair Bolsonaro na capa (por sinal, criativa, ao colocar a palavra “genocida” simulando o bigode), exibindo-o como um Hitler tropical — por causa dos mais de 600 mil mortos em decorrência da pandemia da Covid-19 —, a revista “IstoÉ” excede. Vale discutir alguns pontos.
Primeiro, o regime dirigido por Hitler matou pessoas de maneira deliberada e escolheu um povo específico, o judeu, para destruir. Ocorreu algo semelhante a isto nos dois anos e quase dez meses do governo de Bolsonaro? Na verdade, não. Não se tem 600 mil “comunistas” no país.
De fato, se tivesse comprado vacinas mais cedo, se tivesse incentivado a população a usar máscaras e apoiado o isolamento social nos momentos mais complicados da pandemia, é possível que menos pessoas tivessem morrido. Hoje, a despeito das piadas de mau gosto de Bolsonaro, há milhares de famílias enlutadas. Há uma tristeza insuperável em vários lares. Há também pessoas que, embora tenham sobrevivido, certamente terão que lutar com as sequelas da Covid por vários meses, anos ou até para sempre. No seu realismo economicista, faltam ao presidente compaixão e empatia.
Entretanto, pode-se dizer que Bolsonaro colaborou, de maneira deliberada, para as mortes, e, portanto, é um “assassino” serial como Hitler? Talvez não. Mas é uma questão a discutir. Há muita gente séria, inclusive no meio científico, que discorda do que escrevi. Gente que, ao contrário do que o presidente imagina, não está fazendo discurso ideologizado. Está, isto sim, preocupada com a vida, que é uma só — não tem estepe.
Segundo, a Alemanha era uma ditadura totalitária. Quem discordasse de Hitler, mesmo entre seus aliados, podia ser assassinado. Bolsonaro é autoritário, chega a pensar em golpe de Estado — o que lhe falta, aparentemente, é apoio nas Forças Armadas, sobretudo no Exército —, mas o Brasil é democrático. Não há uma ditadura no país, nem igual à nazista e tampouco como a que durou de 1964 e 1985 na nação do escritor José Rubem Fonseca.
Terceiro, a irritação com Bolsonaro procede, o que pode levar a excessos, como o da revista.
Ao mesmo tempo que o Ministério da Saúde trabalha para vacinar os brasileiros, o que está reduzindo, de maneira significativa, o número de mortes — curiosa ou sintomaticamente, o ministro Marcelo Queiroga teve de se tornar bolsonarista, ao menos nos modos, para conseguir ampliar a vacinação —, Bolsonaro continua insistindo em não usar máscara e “avisa” que não irá se vacinar. Fica-se com a impressão de que, no fundo, se vacinou — daí a coragem de se expor em público “sem receio” de ser contaminado. No fundo, quer passar a imagem, para os eleitores, de que é um homão da porra, um super-herói.
O Brasil, neste momento, não precisa de super-heróis — eles estão muito bem nas telas do cinema e nos gibis. O que o país precisa é de um presidente que colabore para estancar as mortes por Covid, que estimule as pessoas a se protegerem — o que, reduzindo as internações, diminuirá os gastos do governo com saúde — e trabalhe, em tempo integral, pela recuperação da economia, com a redução da inflação e a geração de mais empregos.
Bolsonaro se comporta como se não governasse o país, como se fosse o principal líder das oposições. Como se fizesse oposição ao próprio governo. É como se, tendo tomado posse em janeiro de 2019, até hoje o presidente não tivesse assumido o governo. Quase tudo que acontece de errado em seu governo, o líder da direita atribui aos adversários.
Os jornalistas da Rádio Jovem Pan criticaram duramente a “IstoÉ”, sugerindo que sua crítica tem a ver com o fato de que não estaria faturando no governo federal. Mas há outra possibilidade interpretativa: a revista talvez esteja refletindo a irritação da sociedade com Bolsonaro. As pesquisas de intenção de voto — e o presidente deve ter as suas (porque não divulga, não se sabe) — sugerem que a popularidade do gestor está em franco derretimento, tanto que Lula da Silva descolou e, se as eleições fossem realizadas agora, poderia ser eleito no primeiro turno.
As pesquisas indicam que há algo errado com Bolsonaro — que parece ser considerado pior do que seu próprio governo (há ministros que têm apoio na sociedade, como o da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e a da Agricultura, Teresa Cristina) — e que os bolsonaristas não estão atentando para o que está acontecendo. Se não leva as pesquisas a sério, o bolsonarismo no governo não corrigirá as falhas de percurso e, daí, o derretimento da imagem do presidente tende a aumentar. A ideologização de tudo, o fato de ser avesso às críticas, não deixa Bolsonaro e seus aliados perceberem que o governo e a sociedade estão em vibes diferentes.
Finalmente, a “IstoÉ” excedeu, sim. Mas Bolsonaro não excede há muito tempo, desde que era deputado?