Relação com adolescente não reduz a força literária de Cormac McCarthy, mas diminui o homem
01 dezembro 2024 às 00h00
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Charles Joseph McCarthy Jr. (1933-2023) é um dos maiores escritores americanos. Não é um “novo” William Cuthbert Faulkner. Na verdade, é um par do autor do Mississippi.
Claro, o leitor não conhece nenhum Charles Joseph McCarthy Jr. Mas sabe quem é Cormac McCarthy. São a mesma pessoa.
Cormac McCarthy escreveu vários livros importantes. Sua obra-prima é “Meridiano de Sangue” (Alfaguara, 344 páginas, tradução de Cassio de Arantes Leite).
O crítico Harold Bloom, admirador absoluto do romance, assinala que se trata de um filho de outro William, o britânico Shakespeare.
O “juiz” do livro é, claramente, uma personagem que saltou das páginas do bardo inglês para as páginas do prosador americano.
Lembrando que, quando saíam para espairecer, Abraham Lincoln e Faulkner levavam alguma obra do autor de “Hamlet”, “Rei Lear” e “Otelo” nos bolsos. Os bolsos da época eram grandes? Não sei. Os de hoje nada cabem — são efeitos decorativos.
John Ford é o Cormac McCarthy do cinema. Assim como Cormac McCarthy é o John Ford, com pitadas de Orson Welles (faria um bom juiz Holden nas telas) e Ingmar Bergman, da literatura.
Nem todos os livros de Cormac McCarthy são notáveis. “A Estrada” e “O Passageiro” não são exatamente “fracos”. Só não chegam à canela de “Meridiano Sangrento” (título da primeira edição brasileira) e “Onde Os Velhos Não Têm Vez” (Alfaguara, 252 páginas, tradução de Adriana Lisboa). Só fãs do autor de Providence avaliam que são obras de gênio.
“Onde os Velhos Não Têm Vez” opõe questões morais divergentes mas existentes no mesmo tempo histórico. Há, por assim dizer, um saudosismo de um passado “bom” e “elegante” que não existe mais em geral, exceto, quem sabe, num indivíduo, o xerife Bell.
O desalmado Anton Chigurh é um dos “melhores” matadores da história da literatura. Paradoxalmente, é um bandido do tempo de Bell. Tão surreal quanto, estranhamente, crível. O romance é excelente e não fica aquém de “Meridiano de Sangue”. Mas este é trabalho de virtuose, um verdadeiro diamante para o cérebro. Uma espécie de “Moby Dick” do “jovelho” Oeste? Talvez. Talvez. Talvez.
A Trilogia da Fronteira contém três bons romances (é impressionante o nível não cair; sublinhando que a trilogia de Faulkner não chega a ser ruim, mas fica aquém, muito aquém, de “O Som a Fúria”, “Enquanto Agonizo”, “Luz em Agosto” e “Absalão, Absalão!”): “Todos os Belos Cavalos” (Companhia das Letras, 271 páginas, tradução de Marcos Santarrita), “A Travessia” (Alfaguara, 408 páginas, tradução de José Antônio Arantes) e “Cidades da Planície” (Companhia das Letras, 341 páginas, tradução de José Antônio Arantes).
A hora e a vez de Augusta Britt
Bem, a obra literária deve ser criticada separadamente do julgamento do indivíduo Cormac McCarthy? Não se pode compará-lo com o escritor francês Louis-Ferdinand Céline, que, fascista e antissemita, é inteiramente imperdoável como homem. Porém sua literatura é uma das mais brilhantes do século 20. Sobrevive às ações do integrante da extrema-direita europeia.
Infelizmente, não há ninguém perfeito. O poeta e crítico Ezra Pound, um criador de gênio, também era fascista e imprecava contra judeus até em programas de rádio. Não merece perdão. Mas sua obra poética e sua crítica literária são de alto nível. Há o fato, igualmente relevante, de que deu pitacos decisivos nas duas obras magnas do século 20: “Ulisses”, de James Joyce, e “A Terra Devastada”, de T. S. Eliot.
Cito Céline e Pound porque Cormac McCarthy está de volta aos jornais, agora de maneira escandalosa. A “Vanity Fair”, pelas mãos sedentas de “sangue” do repórter Vincenzo Barney — quiçá sob influência do “juiz” Holden —, relata que o escritor manteve um caso com uma adolescente de 16 anos, Augusta Britt. Ele tinha, na época (1975), 42 anos.
Dada a idade de Augusta Britt, Cormac McCarthy a teria seduzido. A jovem afirma que a relação foi consensual. Tanto que, no lugar de romperem ao fim do affair, continuaram amigos até a morte do escritor, em 2023. Trocaram cartas, se telefonavam e se visitavam.
À “Vanity Fair”, Augusta Britt admitiu que estava “apaixonada” por Cormac Carthy. Teria encontrado no escritor “a sensação de segurança que faltava em sua vida”. “Eu o amava.” Por que só agora revelou a história, se já tinha sido procurada por vários pesquisadores da vida e da obra do escritor? Talvez para não ser esquecida. O que é, no final das contas, justo. Ela, afinal, existe. É um fato. Apresentar sua versão é um direito.
Augusta Britt contou à “Vanity Fair” que inspirou várias personagens de Cormac — Wanda e Harrogate (“Suttree”), Alejandra (“Todos Belos Cavalos”), Carla Jean (“Onde os Velhos Não Têm Vez”) e Alicia Western (“O Passageiro” e “Stella Maris”). São dez as personagens supostamente calcadas na americana. Ela afirma que não apreciou ter sua vida transformada em ficção.
Tudo indica que há ao menos uma mentirinha na história de Augusta Britt, endossada por “Vanity Fair”.
Autora de livros sobre Cormac McCarthy, Dianne Luce é enfática: “Sou profundamente cética em relação à maioria dessas afirmações sobre como ela [Augusta Britt] aparece em seu trabalho”.
Quando rascunhou “Suttree”, Cormac McCarthy não conhecia Augusta Britt. Será que Chico Xavier andou pelos Estados Unidos e pelo México (país no qual o escritor esteve, acompanhado da jovem)?
Se deixarem, na próxima “reportagem”, Vincenzo Barney dirá que Augusta Britt ajudou a escrever os livros de McCarthy. Mas os que conheceram Cormac McCarthy não negam o caso entre os dois. É verdadeiro.
As repórteres Alexandra Alter e Elisabeth Egan, do “New York Times”, na reportagem “Descoberta de caso secreto com menor abala legado de ícone da literatura dos EUA” (traduzida no Brasil pelo jornal “O Globo”), enfatizam que o biógrafo autorizado de Cormac McCarthy, Laurence Gonzales, e três acadêmicos, são céticos em relação a Augusta Britt como musa inspiradora de tantos personagens do prosador de Rhode Island.
Professor da Texas Tech Universtiy, Bryan Giemza “disse que” acha “exagerada algumas das afirmações sobre a influência de Britt no romancista, inclusive a noção de que ela era o principal modelo de Alicia Western”.
Bryan Giemza postula que Augusta Britt, assim como a “Vanity Fair”, força a barra. “Não soa muito fiel à maneira como a imaginação de um artista funciona. O mais provável é que um personagem principal seja um pastiche de pessoas.”
Na defensiva, Daniel Kile, editor-adjunto da revista, contrapôs: “Estamos relatando que Augusta acredita ter inspirado esses personagens. (…) E, em muitos casos, as cartas de McCarthy, que lemos, corroboram que ela inspirou muito dos personagens”.
Por fim, a obra de Cormac McCarthy ficará “menor” por causa da revelação do caso com uma menina de 16 anos? A obra continuará de imenso valor e reverberando. Não há como diminui-la, tal sua grandeza. Agora, como homem, o gigante literário ficará mesmo “liliputiano”. Há, inclusive, a possibilidade de que manteve relacionamento com outra menor, aventa o “Times”.
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