Jovem Pan demite profissionais de direita e reforça a tese de que jornalismo é negócio
06 novembro 2022 às 00h00
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‘Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável.’ — Janet Malcolm, no livro ‘O jornalista e o Assassino’
Só acredita em jornalismo “imparcial” aqueles que creem na existência de Saci Pererê e Curupira.
Imprensa “imparcial” é um mito, talvez criado por jornalistas e disseminado por leitores às vezes desavisados.
O que se precisa, no jornalismo, é “menos” imparcialidade — porque esta é uma ficção insustentável — e “mais” objetividade. Quando uma reportagem é o mais ampla possível, portanto objetiva, fica mais fácil para o leitor se posicionar. Mas os “recortes” e até os espaços que se concede aos ditos “dois lados” derrubam, de cara, o mito da imparcialidade.
Jornalismo é uma atividade, insistamos, parcial. Dependendo do assunto, há um lado ou lados mais contemplados.
A “Folha de S. Paulo”, na gestão de Otavinho Frias, disseminou a ideia de que “jornalismo é negócio”. E, de fato, é. Há repórteres românticos, por certo, que acreditam que, com suas matérias, estão “transformando” o mundo e “esclarecendo” os leitores. Jornais precisam mesmo disso — de uma certa dose de romantismo, ou idealismo. Mas este, digamos, “jogo” não é o dos empresários da área de comunicação.
Os empresários de comunicação, atuando num ramo altamente competitivo — em crise permanente —, são realistas em tempo integral. Por isso, decidem com o cérebro, e não com o coração. A sobrevivência — assim como a margem de lucro — de seus negócios exige medidas vistas como cruéis pelos jornalistas e normais pelo mercado empresarial.
Na semana passada, a Rádio e Televisão Jovem Pan, sob a batuta do empresário Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, Tutinha, demitiu vários jornalistas considerados de direita. São profissionais experimentados, como Augusto Nunes e Guilherme Fiuza, que participavam do programa “Os Pingos nos Is”, de grande audiência. Também foram afastados Carla Cecatto (garota-propaganda do programa do presidente Jair Bolsonaro na televisão), Caio Coppola, Maicon Mendes e Guga Noblat (de esquerda).
Augusto Nunes, de 73 anos, foi editor das revistas “Veja” e “Época” e dos jornais “Estadão” e “Zera Hora”. É um dos profissionais mais experientes e respeitados do mercado. Ultimamente, devido à adesão franca e aberta à direita bolsonarista, passou a ser criticado duramente pela esquerda. Não faz jornalismo imparcial, e não esconde isto. Pelo contrário, é assumidamente bolsonarista e anti-petista, o que, por sinal, é um direito seu. (José Roberto Guzzo, que escreve no “Estadão”, embora às vezes pegue mais leve, segue a mesma linha.) Nos tempos dos governos petistas, a militância jornalística à esquerda, ficava com Paulo Henrique Amorim e mais alguns.
Não existe imprensa imparcial. Mas existe jornalismo que não descarta a objetividade, o que a Jovem Pan vinha contornando há vários anos. Seu jornalismo era (quase) 100% parcial. Era militância jornalística à direita, assim como há militância jornalística à esquerda
Neto do advogado e jurista Sobral Pinto (que, embora de direita, defendeu políticos de esquerda, como Luiz Carlos Prestes), Guilherme Fiuza, de 57 anos, é jornalista e escritor (publicou os livros “Meu Nome Não é Johnny” e “3000 Dias no Bunker”, este sobre o Plano Real). Escreveu em jornais e na revista “Época”. Se tornou radical assumido, e apoiador do governo Bolsonaro, sobretudo um crítico contundente da esquerda, o que é um direito dele. Pode ter exagerado na militância? Por certo, sim. Porém, pelo menos não esconde seu posicionamento ideológico.
Os demitidos, sobretudo Augusto Nunes, Guilherme Fiuza e Carla Cecatto, sabiam que, no caso de vitória de Lula da Silva, do PT, seriam demitidos, e não a pedido do recém-eleito presidente da República, e sim por decisão exclusiva de Tutinha? É óbvio que os três conhecem as regras do jogo. Por isso sabem que as demissões deles, e dos demais colegas, têm a ver com um gesto de “boa vontade” da cúpula da Jovem Pan ao petista-chefe. Trata-se de realpolitik aplicada ao jornalismo. Não há uma figura inocente envolvida na questão.
Com uma grande estrutura, portanto cara, a Jovem Pan certamente precisa dos anúncios do governo federal para sobreviver e lucrar. Por isso, sem titubear, Tutinha expurgou seus funcionários — contratados ou terceirizados. O empresário nada tem contra o grupo de jornalistas, e é provável que até aprecie alguns deles, como Augusto Nunes, Guilherme Fiuza e Carla Cecatto. O fato é que decidiu com o cérebro, o que, em jornalismo, significa com o “bolso”.
Augusto Nunes, Guilherme Fiuza e Carla Cecatto tinham liberdade para “atacar” — eram espécies de James Bond do jornalismo dos trópicos. Mas, exatamente por conhecerem as regras do jogo do mercado, sabiam que a liberdade para chamar Lula da Silva de “ex-presidiário” e “descondenado” era provisória, ou poderia durar um pouco mais em caso de vitória do presidente Jair Bolsonaro. Como Lula da Silva venceu, e Tutinha é um realista em tempo integral, os jornalistas-bolsonaristas foram “condenados” a perder o emprego. Sem dó nem piedade.
Pode-se estranhar a pressa de Tutinha — sua cara-dura, por assim dizer. Mas as demissões eram esperadas, e não necessariamente porque Lula da Silva gostaria de receber a cabeça dos jornalistas, mas, sobretudo, porque o empresário quis fazer uma “oferenda” ampla, geral e irrestrita, como se dissesse ao presidente que está chegando: “Limpei a área e, agora, podemos fazer bons negócios”.
Então, repetindo: não existe jornalismo imparcial. Mas existe jornalismo que não descarta a objetividade, o que a Jovem Pan vinha contornando há vários anos. Seu jornalismo era (quase) 100% parcial. Era militância jornalística à direita, assim como há militância jornalística à esquerda.
O quê, a partir de agora, a rede dirá aos seus ouvintes? Nada, quiçá. Talvez que os tempos são outros…vermelhos, e não mais verde-amarelos.