Quer ir à Biblioteca de Alexandria? É melhor ir à Feira do Livro de Buenos Aires
25 abril 2024 às 12h58
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Buenos Aires é uma espécie de capital global dos livros e das livrarias. Uma Biblioteca de Alexandria perene. Há livrarias de excelente qualidade — Cuspide, El Ateneo, Yenny, Ávila, Eterna Cadencia, Falena, Waldhuter, Libros del Pasage —, assim como sebos (muitos ficam na Avenida Corrientes, na qual também há teatros). Além de obras editadas na Argentina, é possível encontrar uma variedade imensa de publicações da Espanha (Madri, Barcelona, Valência).
A 48ª Feria del Libro de Buenos Aires começa nesta quinta-feira, 25, e só termina no dia 13 de maio. Lisboa, capital de Portugal, é a cidade homenageada.
Estive numa edição da excelente Feira do Livro. A quantidade de livros é excepcional e há promoções do balacobaco. Em abril de 2019, na Feira, adquiri “KL — Una Historia de los Campos de Concentración Nazis” (Crítica, tradução de Cecilia Belza e David León), de Nikolaus Wachsmann. A obra, de 1100 páginas, custou 10 reais e é uma das pesquisas mais importantes e exaustivas a respeito dos campos de concentração e extermínio da Alemanha nazista de Adolf Hitler e Heinrich Himmler.
Mas o leitor não deve pensar que todos os livros entram em promoção durante a Feira. Porque não entram. No momento, dada a inflação, o preço dos livros está bastante elevado. “El París de Cortázar”, de Juan Manuel Bonet, sai por 216,22 reais. Com pouco mais de 200 páginas, “Memorias de um Historiador del Holocausto”, de Raul Hilberg, custa 116,36 reais. “Virginia Woolf y Victoria Ocampo — Biografía de un Encuentro”, de Irene Chikiar Bauer, sai por 151,42 reais. “Escritores de Sur”, de Judith Podlubne, vale 97,38 reais. “Sur” é a notável editora (e revista) criada por Victoria Ocampo, a irmã de Silvina Ocampo — esta prosadora de primeira linha (além de desenhista e pintora).
Sabe a história de Mabel Robinson Fierz, a brasileira (gaúcha) que ajudou a patrocinar o primeiro livro do escritor britânico George Orwell? Pois é, em Buenos Aires, nos sebos e, talvez, nas livrarias, é possível encontrar “Orwell — La Conciencia de uma Generacion” (Vergara, 443 páginas, tradução de Maria Dulcinea Otero), de Jeffrey Meyers. Das biografias do escritor britânico, que eu saiba — e li cinco (uma delas traduzidas pelo brilhante escritor César Aira) —, é a única que narra de maneira extensa a história de Mabel Robinson Fierz, que, tendo nascido em Porto Alegre, mudou-se para a Inglaterra, com sua família inglesa, aos 17 anos.
Ante os preços dos livros, o que fazer? Primeiro, claro, uma consulta aos extraordinários sebos de Buenos Aires. Segundo, uma vasculhada na Feira do Livro, pois sempre será possível encontrar livros de qualidade por preços acessíveis. Terceiro, o leitor, se pensar como eu, certamente dirá: “Se o livro é bom, mesmo estando relativamente caro, vale a pena”.
Há uma vantagem: a Argentina quase sempre sai na frente do Brasil em termos de novidades em várias áreas — como biografia (a história do argentino que financiou a Escola de Frankfurt é extraordinária), história e literatura. Tanto pelas próprias publicações quanto pelos livros editados na Espanha que circulam nas suas livrarias.
Não deixa de ser uma vergonha que o país de Sérgio Buarque de Holanda, Evaldo Cabral de Mello e Francisco Ferraz não tenha publicado o livro “Combate Moral — Una Historia de la Segunda Guerra Mundial” (Taurus, 802 páginas, tradução de Victoria Gordo e Frederico Corriente Basús), de Michael Burleigh. Trata-se simplesmente de um dos melhores livros sobre a batalha que durou de 1939 a 1945. A Argentina publicou o livro em 2010.
Vende-se na Argentina o ótimo “Memorias” (Lumen, 938 páginas), de Carlos Barral. Um dos maiores editores da Espanha conta como desenvolveu seu trabalho de publicador de livros. Há menções ao poeta João Cabral de Melo Neto, ao prosador Guimarães Rosa (muito divertida a história do encontro entre o editor e o escritor) e Osman Lins.
A Feira do Livro dura 19 dias. Vale a pena frequentá-la e, mais uma vez, estarei lá, flanando pelas mesas, misturando-me à multidão, sentindo o cheiro dos livros, folheando as traduções (os argentinos traduzem bem; há pouco tempo, publicaram nova tradução de “Ulysses”, de James Joyce), procurando novas edições de Laurence Rees (“El Holocausto Asiático — Los Crimenes Japoneses en la Segunda Guerra Mundial”) e Max Hastings (“Némesis — La Derrota del Japon: 1944-1945”, um calhamaço de 880 páginas) — assim como “Samuel Beckett — El Ultimo Modernista”, de Anthony Cronin, e “Beckett”, de James Knowlson. “Recordando a Beckett — Entrevistas Inéditas a Samuel Beckett y Testimonios de Quienes lo Conocieron”, edição de Elizabeth e James Knowlson, é outro livro que pode ser encontrado em Buenos Aires, convidando o leitor para entender, um pouco que seja, um dos mais “impenetráveis” escritores de todos os tempos.
O bom de uma feira — que é uma livraria gigante, com todo mundo junto e misturado — é que, ao vasculhá-la, de ponta a ponta, também encontramos aquilo que não estávamos procurando e, de repente, nos chama atenção. Meu cartão de crédito chega a saltar sozinho da carteira… e tenho de segurá-lo.
Programação da Feira nesta quinta-feira
Na Feira, além dos livros — o must —, há palestras de escritores, dias de autógrafos etc.
Os argentinos adoram ler (inclusive jornais impressos, como “Clarin” e “La Nacion”, nos adoráveis café portenhos) e eu aprecio vê-los examinando os livros com cuidado e interesse. Detalhe: são educados e tratam bem os brasileiros.
Em 2019, o dono de um sebo passou um bom tempo me dando explicações sobre livrarias e sebos da Argentina. Na conversa, ocorrida na Avenida Corrientes, ele me disse: “Vá à Feira, mas não deixe de ir aos sebos antes”.
Na Livraria Cúspide, da Recoleta, o livreiro Alejo Ini convenceu-me a comprar um livro de contos de Samanta Schweblin. Candice Marques de Lima, minha companheira, leu trechos, ainda na livraria, aprovou e compramos. Desde então, é uma de suas autoras preferidas, ao lado de Mariana Enriquez (argentina) e Mónica Ojeda (equatoriana; o romance “Mandíbula” é sensacional, atesta Candice Marques de Lima).
O mesmo Alejo Ini me mostrou uma edição da poesia de Vicente Huidobro — o maior poeta chileno. Não hesitei: comprei na hora. E não me arrependo. Assim como não me arrependo de ter adquirido a obra completa de Oliverio Girondo, um dos maiores poetas argentinos, um dos poucos que ombreiam com Jorge Luis Borges. De quebra, coloquei no “embornal” — minha sacolinha de pano (não carrego plástico) — a obra dos gênios cubanos Lezama Lima e Severo Sarduy.
Nesta quinta-feira, 25 (chego só no dia 30, mas há estou ansioso, admito), a programação é variada. Começa às 15 horas com uma oficina de histórias sobre o escritor português Alexandre O’Neill. Sob orientação de Júlia Barata, escritora portuguesa que mora em Buenos Aires, os participantes vão elaborar uma fanzine em formato A4 “com uma narrativa gráfica sobre o autor e sobre um poema”. Convidada de honra, Lisboa é a organizadora do evento.
Júlia Barata é autora de “Familia” (Sigilo Editorial, 244 páginas). Não há edição brasileira e, aparentemente, nem portuguesa. Será o primeiro que vou adquirir quando chegar à Argentina.
Às 17 horas, Horácio Embón entrevista Mirta Goldberg. Trata-se de “Reportajes abiertos con Embón”. A organização é da Fundación El Libro.
Os livros, como os diamantes, são eternos. Mas o livro, com as novas tecnologias, com as redes sociais e sites, mudou de forma (ainda sou prisioneiro do papel e espero morrer assim, de preferência deitado sobre um livro. No meu caixão quero um exemplar de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Quem sabe, acordo, de repente, e descubro que estou vivo).
Às 17 horas, na Feira, discute-se a arte literária feita, digamos, em qualquer lugar (panfletos, nos muros, nas redes sociais) e recursos. “É possível criar uma obra literária fora do circuito livreiro?” (quer dizer, editorial). O fato é que há gente “poetando” e “proseando”, bem ou mal, no Facebook, no Instagram, no X etc. Participam do debate Vir de Mar, Lucas Fauno e Camila Alfie. Nicolás Colfer é o apresentador.
Às 17h30, uma oficina “se centrará na busca do Santo Graal de todo comic: as ideias”. Tudo já foi dito? Talvez não. E é possível que aquilo que já foi dito — ou desenhado — possa ser dito de outra maneira. A arte é a história de reinvenções. Participa: Cuervolobo Editorial.
No mesmo horário lança-se “Crea una vida a tua medida y Crea um Match a tua Medida”. A apresentação é de María Laura Caruso. A organização e da SB Editorial.
Às 18 horas, a Feria del Libro será oficialmente aberta. A escritora Liliana Heker fará o discurso de abertura. Ela é autora de “Zona de Clivagem” (Roça Nova, 296 páginas, tradução de Livia Deorsola).
Darío Iván Radosta e Matías Paschkes Ronis falam sobre “antropologia da pessoa no final da vida. Experiência etnográficas e debates sobre envelhecer e morrer”. A apresentação é de Andrés Lelesca. Horário: 19 horas.
Alicia Torres (do Uruguai), Agustina Ibañez (Argentina) e Leandro Delgado (Uruguai) falam, às 19 horas, da escritora uruguaia Armonía Somers, que morreu há 30 anos. Esquecida por vários anos, acabou redescoberta e é vista como uma autora importante. A apresentação será de Alvaro Risso. O evento é organizado pela Câmara Uruguaia do Livro.
Livros de Armonía Somers: “Cuentos Completos”, “La Mujer Desnuda, “La Rebelión de La Flor”, “De Miedo en Miedo — Os Manuscritos del Rio”, “Solo los Elefantes Encuentran Mandrágora”. Já estão na minha lista cada vez mais penelopiana.
No mesmo horário falará, na sala Rodolfo Walsh, Jorge Paolantonio, “novelista de las historias pequenas”.
A Feria del Libro começa nesta quinta-feira, 25, e termina no dia 13 de maio. Fica no Predio Ferial a Rural, em Palermo.
Cultura argentina está acima de Javier Milei
Ah, sim. Candice Marques de Lima cobrou: “Mas tu não falou de política, de Javier Milei” (que ela, sendo de esquerda — uma esquerda libertária, digamos —, não aprecia). Respondi: “É que a cultura está acima, muito acima, da política. Quando penso na Argentina penso em Borges, Girondo, Silvina Ocampo, Alfonsina Storni, Julio Cortázar, César Aira, Samanta Schweblin, Victoria Ocampo, Bioy Casares, Maradona, Messi, Brindizi, Astor Piazolla, Beatriz Sarlo (exótima), Alejandra Pizarnik (excelente poeta), Mariana Enriquez, Sara Gallardo, Selva Almada, Alan Pauls, no Teatro Colón, nos cafés interessantíssimos”.
Mas e Milei? Ora, é tão passageiro quanto seus cachorros (e adoro cachorro). Como diria o poeta e cronista patropi Mario Quintana, Milei passará, nós, passarinhos.
A única cousa que não aprecio na Argentina é a carne que, apesar de vistosa, quase não tem sal. Porque é uma recomendação médica. Correta, por certo. Mas não me agrada.