Fico tentado a destoar, ainda que ligeiramente, da mídia, da qual faço parte, a respeito dos fatos recentes do país. Para tanto, dou uma sugestão — que, bem-sei, não será acatada. A Globo e a GloboNews — e outras redes — deveriam dividir o ecrã ao meio. De um lado, o que aconteceu com o presidente Lula da Silva e aliados quando estiveram sob os holofotes da Polícia Federal, do Ministério Público Federal, da Justiça Federal e, claro, da mídia. Do outro, o que está acontecendo com o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua turma.

O que iríamos descobrir? Nada de novo. Entretanto, seria instrutivo para entender que a história se repete — como tragédia e farsa. Lula da Silva, sua turma, aliados políticos e empresários que prestaram serviços para o setor público foram investigados com rigor, denunciados e alguns, como o petista-chefe, foram presos. A prisão de Lula da Silva, com mais de 70 anos, domicílio conhecido e sem interesse em fugir do país, era desnecessária, mas foi aprovada por quase todo mundo — a mídia à frente, alegremente.

Lula da Silva com José Dirceu e Antônio Palocci: o massacre foi pesado | Foto: Reprodução

Depois de pôr corruptos na cadeia e de bilhões terem sido devolvidos ao Erário, a Lava Jato caiu em desgraça. Como se dizia em tempos idos, deu-se o revestrés ou revertério. O ex-magistrado Sergio Moro e o ex-procurador da República Deltan Dallagnol, que nada roubaram, estão sendo, por assim dizer, “espremidos” pela Justiça e, claro, pelos políticos. Primeiro, tomaram o mandato de Dallagnol, numa clara vingança política. Segundo, não vão deixar Sergio Moro em paz. Se Bolsonaro cair — frise-se que já está inelegível —, o ex-juiz e agora senador entrará na linha de tiro.

E o papel da mídia, quer dizer, o nosso? A mídia esteve alinhada com Sergio Moro e Deltan Dallagnol (que nada têm de santos) o tempo inteiro. Jornalistas sabem que é muito difícil ter acesso a documentos sigilosos — exceto se alguém, “bonzinho” e, claro, “interessado”, os vaza. Pois é: as denúncias contra a turma de Lula da Silva e a turma dos empreiteiros — o tal Clube do Bilhão — ganharam as manchetes das redes de televisão, dos jornais, das revistas, dos sites, dos portais, dos blogs. Exceto nos blogs ligados à esquerda, e talvez na “CartaCapital” — cujo dono, Mino Carta, é amigo do petista-chefe —, ninguém demonstrou contrariedade com as denúncias. O “Jornal Nacional” abria o noticiário relatando novas denúncias, divulgando furos de reportagem. As revistas “Veja” e “Época” rivalizavam na arte de serem novidadeiras e explosivas com suas reportagens exclusivas.

Houve uma espécie de congraçamento entre mídia e os operadores da Operação Lava Jato. Mas o mundo deu voltas.

Deltan Dallagnol e Sergio Moro: a dupla foi queridinha da mídia | Foto: Reprodução

Jair Bolsonaro foi um desastre como presidente da República em vários campos. Primeiro, se mostrou autoritário e, no final, planejou um golpe de Estado — que só não foi bem-sucedido porque o Exército decidiu ficar contra e se postar ao lado da democracia. Segundo, teve uma conduta maligna na questão da pandemia de Covid-19 e da vacinação. Terceiro, não levou o país ao crescimento econômico.

Quarto, começou uma política de isolar o país, aproximando-se de políticos autoritários, como Viktor Orbán, da Hungria, Vladimir Putin, da Rússia, e Donald Trump, dos Estados Unidos. Quinto, começou a atacar a imprensa, usando um palavreado chulo para se referir às repórteres. Sexto, submeteu o Ministério Público Federal e acabou por neutralizá-lo, assim como fez com a Polícia Federal.

Coube ao Supremo Tribunal Federal — sobretudo aos audazes ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin — o enfrentamento ao golpismo de Bolsonaro e de seus aliados.

Jair Bolsonaro e Mauro Cid: a hora da “serra elétrica” | Foto: Secom

Pode-se dizer que Bolsonaro contribuiu para piorar a imagem da direita no Brasil, para firmar a reputação de que é anti-civilização e anti-humanismo. Se tornou aquilo que Joseph Conrad, o de “Coração das Trevas” (há edições com excelentes traduções de Sergio Flaksman, José Rubens Siqueira, Paulo Schiller e José Roberto O’Shea), escreveu sobre o Congo belga: “O horror! o horror! o horror!”.

Bolsonaro começou tão mal que nem teve lua de mel com a imprensa — que está em lua de mel com Lula da Silva, e com certa razão (o petista é bem melhor do que o ex-presidente, e, ao contrário do que pensam os incautos, não é comunista — é, no máximo, socialdemocrata). Aos brados, anunciava que iria retirar a concessão da Globo. Depois, dizia barbaridades de repórteres, como as notáveis Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães.

A imprensa — ou, como dizem os críticos, a “grande mídia” — ajudou a “parir” Fernando Collor, em 1989, para evitar que Lula da Silva, o então Sapo Barbudo (expressão criada por Leonel Brizola, da esquerda nacionalista), fosse eleito presidente da República. O Caçador de Marajás — ou de Maracujás, na pena dos galhofeiros — caiu em desgraça, em parte por ter se afastado da mídia que o apoiara.

Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes: muralhas contra o golpismo | Foto: Reprodução

Diz-se que a Laja Jato — sublinhe-se: começou em 2014, quando Bolsonaro era apenas um deputado do sub-baixo clero e sem pretensões presidenciais — “pariu” Bolsonaro. Pariu mesmo? Talvez não, ao menos não diretamente. Mas, ao colaborar para destruir, em parte (afinal, Lula da Silva está de volta, e mais realista do que nunca), as elites políticas e empresariais, a Lava Jato contribuiu, indiretamente, para a formatação do ovo da serpente, dando origem ao ogro Bolsonaro.

Mas qual foi o papel da mídia — aliada de primeira hora da Lava Jato, e até sua serva consentida — na “confecção” de Bolsonaro? Por certo, o papel é de protagonista. Ninguém foi mais útil à destruição das elites políticas do país, com o PT na comissão de frente — e, sim, o PT era, ao lado do PSDB, o que havia de melhor no país, em termos políticos (porque tem uma visão de Estado, de que este deve servir à sociedade, e não apenas ao mercado) — do que jornais, revistas e emissoras de televisão.

Então, se a Lava Jato chocou o ovo, como galinha persecutória, a imprensa chocou-o ao lado, como galo solidário. Então, o que nasceu do ovo da serpente tem dois pais, talvez não genéticos, mas adotivos: a operação de Curitiba e a mídia. A cornucópia entre ambas, digamos assim, contribuiu para a ascensão de um golpista.

Ante o desastre Bolsonaro, com seus golpismos e supostos esquemas financeiros — o Poder Executivo é uma máquina de produzir corrupção —, a mídia afastou-se dele de vez (na verdade, nunca foi muito próxima) e passou a combatê-lo.

O Supremo Tribunal Federal, ao tornar Bolsonaro inelegível, mostrou que a democracia também sabe se vingar. A vingança da democracia é legal, ou seja, usa, corretamente, a lei para se defender.

O próximo passo é levar Bolsonaro à cadeia? Tudo indica que sim. Mas não a uma prisão qualquer, e sim a uma detenção substanciada pelo carimbo de que se corrompeu. O tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, de 44 anos, protegeu Bolsonaro por algum tempo, mas não quer ficar preso, com uma possível pena mais alta, para “salvar” o ex-chefe. E não quer o pai, um general, contaminado pelo bas-fond do ex-presidente.

E, no final, o que vai acontecer? Não dá para saber, claro. Se a bola de cristal de um jornalista é a razão, não há como prever o futuro. Mas parece óbvio que os equívocos de Bolsonaro jogaram a mídia no colo de Lula da Silva. De graça.

Mas, insistamos, seria interessante dividir a tela da tevê mostrando o que a mídia dizia de Lula da Silva e sua turma e o que está dizendo agora de Bolsonaro e sua turma. Seria instrutivo, no mínimo, a respeito do comportamento — supostamente objetivo — do jornalismo patropi.