Quase uma Thomas Pynchon de saia, a americana Donna Tartt lança romance, recebe aplauso da crítica e ganha Pulitzer
22 abril 2014 às 16h33
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O prêmio foi concedido à escritora pelo romance de formação “The Goldfinch”, que sai em setembro pela Companhia das Letras. A autora admite influência de Dickens e Dostoiévski e diz que a literatura é a arte mais espiritual
Os escritores americanos em geral são prolíficos. Mark Twain, Henry James e Jack London publicaram várias obras. Saul Bellow e John Updike (a prosa era seu forte, mas publicou poesia e fez desenhos de qualidade) deixaram vários livros, com mais altos do que baixos. Philip Roth, que se diz aposentado, e Joyce Carol Oates (que escreveu até sobre boxe) surpreendem com uma literatura intensa, mesmo publicando com, talvez, excessiva frequência. Donna Tartt, de 50 anos, segue na contramão dos citados e de seus modelos Herman Melville e, sobretudo, Charles Dickens e Dostoiévski, e publica pouco, mas sua literatura, além de respeitada por críticos do primeiro time, faz muito sucesso entre os leitores. A qualidade de sua prosa elaborada, os personagens muito bem construídos, a criação de um mundo tão “perfeito” que parece aquele em que vivemos chamam a atenção da crítica. A escritora Ruth Rendell, uma das grandes damas do romance policial, disse a respeito do romance “A História Secreta” (Companhia das Letras, 520 páginas, tradução de Celso Nogueira): “Como estudo do remorso e seus efeitos na mente, do homem ‘bom’ que mata, ‘A História Secreta’ é um livro comovente e profundo. Como thriller, é um dos melhores que já li. Mas, como romance de estreia, é realmente espantoso”. O romance “O Amigo de Infância” (Companhia das Letras, 592 páginas, tradução de Celso Nogueira) mereceu elogios rasgados de duas publicações americanas respeitáveis: “‘O Amigo de Infância’ parece destinado a se tornar um clássico. Conquista o leitor como um conto de fadas, mas não o consola com a ilusão do faz de conta” (“New York Times Book Review”) e “Atmosfera sensual… Construção psicológica precisa… Um romance que leva o leitor a um lugar que vale a pena ir” (“New Yorker”).
Depois de um sumiço de dez anos, Donna Tartt voltou às livrarias, no ano passado, com o romance “The Goldfinch” (será publicado em setembro pela Companhia das Letras, com tradução de Sara Grünhagen, mas ainda não tem título definido; literalmente, seria “O Pintassilgo”), que acaba de ganhar o Pulitzer, espécie de Nobel americano. Trata-se do terceiro romance da autora.
Ao premiá-la, os organizadores do Pulitzer disseram que “The Goldfinch” é “um romance sobre envelhecimento escrito de maneira bela, que estimula a mente e toca o coração” (cito trecho traduzido pela “Folha de S. Paulo”, mas, no lugar de “envelhecimento”, talvez seja mais apropriado amadurecimento). Seria um romance de formação, como “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” (Editora 34, 608 páginas, tradução de Nicolino Simone Neto), de Goethe, e “A Montanha Mágica” (Nova Fronteira, 992 páginas, tradução de Herbert Caro), de Thomas Mann. Eva Saiz, do “El País”, diz que “The Goldfinch” — “El Jilguero” em espanhol — conta a história do adolescente Theo Decker. O menino vê sua mãe morrer num atentado terrorista num museu de Nova York e rouba o quadro O Pintassilgo, do pintor holandês Carel Fabritius (1622-1654), do século 17, e circulará por vários locais, como Las Vegas e Amsterdã.
Nascida no Mississippi, portanto tão sulista quanto Faulkner (a violência do romance “Santuário” ecoa na sua prosa? Quem sabe), Donna Tartt admite a influência de Dickens, talvez na perspicaz exploração do mundo da infância, mas há um descolamento da literatura do inglês, pois a prosa da autora de “A História Secreta” é mais intrincada, às vezes próxima da literatura policial — mais a de Patricia Highsmith (de sua crua amoralidade) do que a de P. D. James — e mesmo da prosa de outra autora americana, Carol Joyce Oates. A diferença é que Oates é mais, muito mais sombria, uma espécie de versão feminina do primeiro Ian McEwan, aquele a quem chamavam de “Mcabro”. Donna Tartt não é uma autora de romances policiais, embora seus livros também sejam romances policiais — como, de resto, algumas das obras de Dostoiévski e de tantos outros autores canônicos. A autora certamente cobra um lugar ao lado de Melville, Dickens e Dostoiévski — de quem é filha honorária, por certo. Ela, aqui e ali, atualiza os três escritores, notadamente Dickens e Dostoiévski (o de “Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamázov” e, com o romance atual, “Os Demônios”. Neste romance, Dostoiévski interpreta o mundo pragmático, filosófico e, ainda assim, perfunctório dos terroristas). Na verdade, é cedo para falar de um “lugar” na literatura, na americana ou na universal, para Donna Tartt, cuja obra está em construção. Mas é provável que está cavando um espaço entre Faulkner e Flannery O’Connor. Não deixa de ser curioso que, entre seus pais literários, inclua apenas um americano, Melville — destacando um inglês, Dickens, e um russo, Dostoiévski. Seria uma forma de não se colocar sob a influência de Faulkner?
Quase tão arredia quanto Thomas Pynchon, Donna Tartt concedeu uma entrevista ao diário “ABC”, de Madri. O jornal nota que “A História Secreta”, traduzido para 25 idiomas, vendeu mais de 5 milhões de exemplares. O sucesso não a tornou uma figura pública, da moda. Mulher bonita e inteligente, teria feito sucesso em programas de televisão. Decidiu, porém, recolher-se a um lugar no campo e segue escrevendo, lentamente, sempre à mão. Dez anos depois, lançou “O Amigo de Infância”, novo sucesso literário e de vendas. De novo, desapareceu do mapa e volta agora com “El Jilguero”, que saiu na Espanha pela Editora Lumen, com 1152 págs. Na Espanha, o romance está sendo apresentado, quiçá de maneira exagerada, como “o primeiro clássico do século 21” (os espanhóis terão se esquecido da prosa extraordinária de Javier Marías?). Michiko Kakutani, crítica do “New York Times”, escreveu: “Não se trata só de suspense e intriga… Donna Tartt criou uma novela gloriosa, que nos devolve o prazer intenso e compulsivo da leitura”. Frise-se que Kakutani é quase sempre econômica nos elogios.
Inés Martín Rodrigo, do “ABC”, pergunta sobre como começou a história de “El Jilguero”. Donna Tartt diz que faz anotações em pequenos cadernos e os guarda. As impressões sobre Amsterdã, apresentadas no livro, foram registradas há mais de 20 anos. “Meus livros sempre começam com uma espécie de estado. Neste caso, o estado era escuro [ou obscuro], sombrio, em Amsterdã, e também na Park Avenue. Nova York é Nova Amsterdã, as cidades estão conectadas. Isto foi o que me deu a ideia de escrever sobre arte e uma pintura em particular — ‘O Pintassilgo’, de Carel Fabritius” (o “ABC” prefere “Fabrizio”).
Por que “O Pintassilgo”, de Carel Fabritius? “Vi o quadro em uma exposição em Amsterdã. Não sabia que era uma pintura da era dourada flamenca. Sua forma estava muito adiante de seu tempo.” Mesmerizada, leu a história do quadro e do artista que o criou. “Fabritius morreu tragicamente (em 1654, em Delft, na explosão de um depósito de pólvora).” Trata-se de um problema que nós, do século 21, “conhecemos muito bem”. Porém, naquela época, era uma coisa rara, portanto deve ter sido “incompreensível para as pessoas”.
Como o romance descreve um atentado terrorista ocorrido num museu americano, a repórter espanhola pergunta se a cena foi escrita antes ou depois do atentado de 11 de Setembro de 2001, nas Torres Gêmeas de Nova York. Donna Tartt disse que escreveu antes e que possivelmente, se não tivesse elaborado o trecho, não o teria feito depois do atentado em que morreram mais de 3 mil pessoas. “Antes do 11 de Setembro ocorreram numerosos pequenos atentados, como antes de um grande terremoto, quando se produzem pequenos tremores. Era uma premonição, algo que nos estava advertindo. É muito inquietante, os escritores estão conectados com certas correntes subliminares. Don DeLillo escreveu sobre o desastre das Torres Gêmeas em 1990. É como se tivesse previsto o futuro.” Depois, DeLillo publicou “Homem em Queda” (Companhia das Letras, 264 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto) — baseado no 11 de Setembro —, romance quase tão bom quanto “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto” (Rocco, 392 páginas, tradução de Daniel Galera), de Jonathan Safran Foer.
Como o 11 de Setembro mudou a vida dos nova-iorquinos?, inquire a repórter. “O mais surpreendente foi sua resiliência. Durante duas ou três semanas, era incompreensível pensar que a vida ia voltar à normalidade. A cidade estava arrasada, mas logrou recuperar-se.”
Inés Martín sugere que as personagens de Donna Tartt “são muito reais, tanto que parecem ter vida própria para além do romance. Como consegue isto?” A autora diz que demora anos escrevendo e burilando suas histórias. “É trabalho, trabalho duro. Não há segredos. Trabalhei neste livro onze anos. A trajetória de Theo se dá em tempo real”, diz a escritora. Ela afirma que, ao escrever o livro, foi acompanhando o crescimento, a evolução do personagem. Ao construi-lo, foi conhecendo o personagem. “É certo que demoro muito a escrever meus livros, mas gosto disso, porque dá aos personagens uma riqueza e uma profundidade que é impossível falsear.” Trata de artesania apurada, fina.
Donna Tartt não tem medo de ser esquecida pelos leitores, por ficar tantos anos sem publicar, longe dos holofotes da mídia?, quer saber a repórter. Todo repórter é meio policial e, por isso, não aprecia quem, mesmo que por motivos razoáveis, se esconde. A escritora diz que não pensa as coisas como a repórter expõe. “O que se tem de fazer é envolver-se com o trabalho e acreditar que, quando terminá-lo, as pessoas vão gostar”, assinala a criadora de “The Goldfinch”. Ela admite que pode ser esquecida, por demorar tanto a publicar livros, escapando ao modelo do escritor-indústria, mas diz que se sente bem assim, optando por uma literatura mais bem elaborada e, assim, nada apressada. “Me preocuparia muito mais ter de escrever um livro por ano.” Ficaria “angustiada”. A autora busca mais ser lida, de verdade, do que ser aplaudida publicamente. Prefere que seus livros sejam conhecidos, as estrelas, e ela mesma quer ficar nos bastidores.
A romancista diz que não se sente parte da indústria do livro. “Formo parte da indústria editorial durante algumas semanas a cada dez anos e logo desapareço. Quando regressar com meu quarto livro, não sei como serão as coisas.” Donna Tartt diz que passa anos em seu escritório, sem ver muitas pessoas.
O que há de bom em ser escritor? “O melhor é ter uma vida alternativa. Escrever um livro é como ler um livro. Digamos que é um nível mais profundo, essa é a única diferença. Quando uma pessoa lê um livro, e realmente fica envolvida com a história, é a melhor coisa do mundo. Só há uma coisa melhor: escrevê-lo”.
A repórter indaga: “Acredita que o amor pela leitura, pelos livros, segue existindo hoje em dia, apesar de todas as distrações tecnológicas que nos rodeiam?” Donna Tartt responde: “Sim, continua existindo. Fenômenos como os de ‘Harry Potter’ [que Harold Bloom avalia como uma estultice incomparável] ou ‘Crepúsculo’ são muito recentes. Num tempo em que os meios de comunicação são estrondosos, amamos os livros pelo silêncio que proporcionam. É um tipo de silêncio muito concreto. É o tipo de silêncio que só se obtém lendo um romance. Essa sensação de estar em outro lugar, de viver em outro local. Por intermédio de um livro se pode ter a experiência de se ter outra alma. Compreender o espírito de outra pessoa não é algo banal. Por isso a literatura é a arte mais espiritual”.
Donna Tartt não é, como se diz, “antenada”. “Não tenho Facebook nem Twitter, mas, quando estava escrevendo este livro [“The Goldfinch”], a internet se tornou útil para mim, porque, como estava isolada no campo, me facilitava as coisas. Ademais, escrevo muito e-mails, me encanta escrevê-los, é como voltar aos tempos de Voltaire. Me encanta a velocidade e a intimidade do correio eletrônico” (isto, claro, se não pensamos nas revelações de Edward Snowden).
A repórter do “ABC” diz que os três romances de Donna Tartt unem leitores e críticos. São apreciados por todos. “Fico alegre, mas o leitor é sempre o mais importante para mim.” Inés Martín pergunta se as críticas a afetam. “Trato de não lê-las, é muito melhor. Meu trabalho é escrever livros e não preocupar-me demasiado com o que dizem os críticos.” Ela diz que o escritor não precisa ficar muito consciente de como elabora seus livros, por isso é melhor não se interessar pelo trabalho dos críticos.
Inés Martín relata que Donna Tartt começou a ler com 5 anos e, aos 19 anos, já havia lido todos os romances do século 19 da biblioteca na qual trabalhava. A escritora corrige: “Era uma biblioteca pequena e tampouco tinha muitos livros novos. Li os mesmos livros algumas vezes”.
Quando decidiu que queria ser escritora?, pergunta a entrevistadora. “O que eu queria realmente, mais do que escrever, era ler. Me encantava ler e, se a pessoa gosta o suficiente de ler, começa a escrever os livros que gostaria de ler e não estão escritos”, diz Donna Tartt.
A escritora vai demorar mais dez anos para publicar seu quarto livro? “Espero que não. Quando comecei este livro [“The Goldfinch”], não tinha ideia de que ia demorar 11 anos para terminá-lo.” A romancista acredita que a próxima obra sairá mais rápido. O que está escrevendo? “Um romance, porém não é boa ideia dizer do que se trata.” Donna Tartt afirma que, quando começa a escrever um livro, a história ainda é nebulosa e, se se põe a falar a respeito, “pode influenciar de modo negativo no processo criativo”.
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(Traduzi trechos da entrevista ao jornal “ABC”, que pode ser conferida integralmente no link http://bit.ly/Qe6TgC. Publico, no site do jornal, o primeiro capítulo do livro, mas em espanhol.)