Professor que denunciou plágio em livro científico foi condenado a pagar R$ 55 mil

19 janeiro 2025 às 00h00

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Toda a credibilidade da ciência subsiste da integridade ética — desde a segurança de que resultados de estudos são publicados sem distorções até a confiança de que fundações não financiam plágio. Com função tão importante, seria de se esperar que instituições acadêmicas fizessem o possível para estimular boas práticas éticas e para proteger denunciantes de irregularidades.
Entretanto, um processo kafkiano envolvendo pesquisadores da área de acústica musical de São Paulo e Rio de Janeiro revela que a defesa da integridade está mais no campo do discurso do que no da prática. Enquanto leis como a de nº 8.112/1980 e decretos como o de nº 1.171/1994 deixam claro que é obrigação do servidor federal denunciar supostas irregularidades, as instituições de pesquisa que recebem as denúncias se vêm em conflitos de interesses: confirmar a irregularidade significa perda financeira e de imagem.
Como resultado, pesquisadores são levados a crer que devem denunciar e que suas comunicações permanecerão sigilosas, mas instituições beneficiam os próprios acadêmicos ao descartar quaisquer denúncias, não importando as evidências. Na prática, mesmo aquele que faz uma denúncia bem embasada pode sofrer graves consequências.
O caso
Em 2004, a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) convidou o professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leonardo Fuks a resenhar um livro que a Fundação estava financiando. Atendendo ao convite, o doutor em acústica musical analisou “A Acústica Musical em Palavras e Sons”, de Florivaldo Menezes (Flô Menezes). Entretanto, a crítica não foi elogiosa. Para Fuks, a obra era um plágio.
Além da tradução e reescritura de parágrafos inteiros, 60 ilustrações no livro brasileiro eram idênticas às da edição de 2001 do livro “The Musician’s Guide to Acoustics”, de Campbell e Greated. As 60 ilustrações de alguma forma creditavam o livro de Campbell &Greated, mas foram usadas sem autorização prévia, o que é exigido pela Lei 9.610/98, do Direito Autoral. Publicado pela primeira vez em 1987 pela Oxford University Press, o livro britânico é uma importante obra para a área da acústica musical.
Mesmo quando tratou dos trechos originais, Fuks foi duro: “quando o autor se entrega à própria intuição, os resultados desafiam o bom-senso e o conhecimento científico […]. Os conceitos básicos da acústica estão equivocados […]”, escreveu em resenha para a Fapesp. A resenha nunca foi publicada e a primeira edição do livro de Florivaldo Menezes nunca foi ao mercado (o Jornal Opção teve acesso à resenha e a outros documentos que constam no processo por danos morais movidos por Florivaldo Menezes no TJ-SP).
A Fapesp informou as suspeitas levantadas por Fuks à editora Ateliê Editorial, responsável pelo livro brasileiro. Posteriormente, o Editor-Chefe da Fapesp, representando a Diretoria Científica, comunicou a Fuks por e-mail que apenas os primeiros cem exemplares foram impressos. “A editora decidiu não distribuir o livro de Menezes em razão de sua análise […] e não mandará o livro para o mercado até que todos os problemas indicados sejam resolvidos numa segunda edição corrigida.” Um mês depois, a Ateliê Editorial e a Oxford University Press entraram em acordo pelo uso das imagens: £$ 1.200 (equivalente a R$ 15.644, considerando a inflação do período).
Em 2014, Florivaldo Menezes publicou pela Ateliê Editorial a segunda edição de “A Acústica Musical em Palavras e Sons”. O caso não teve atualizações até 2017, quando Leonardo Fuks, já como assessor científico da Fapesp, considerou que aquela segunda edição também era um plágio.

O dilema ético
A denúncia de uma violação ética ainda é um enorme dilema para a academia. Por um lado, pesquisadores afiliados a instituições federais são obrigados a relatar qualquer irregularidade aparente que encontrarem, e a violação de direitos autorais é considerada crime pelo código penal. Por outro lado, denúncias são inconvenientes para todas as instituições — tanto as que empregam denunciados quanto as que abrigam denunciantes.
Denunciantes se indispõem com instituições que empregam os denunciados, pois essas podem ter sua reputação manchada e podem perder verbas para bolsas de estudo. Além disso, pode haver conflito de interesses entre denunciante e ouvidoria da denúncia: naquela data, Fuks era assessor ad hoc da Fapesp e, se sua denúncia estivesse correta, poderia implicar em danos à própria Fapesp.
Fuks decidiu fazer a denúncia, talvez influenciado pelo fato de que ele mesmo já tinha sido vítima de plágio. Sua dissertação de mestrado, intitulada “O Bambu Sonante: um estudo da qualidade em palhetas de clarineta”, defendida em 1993, foi copiada em 1999. A UFRJ moveu um processo interno a partir da denúncia formalizada pelo Programa de Pós-Graduação da UFRJ e o plagiador perdeu seu título após quatro anos de processo.
A edição de 2014, conforme denúncia sigilosa de 2017, teria usado as mesmas figuras novamente sem autorização prévia (pois o pagamento das figuras em 2004 se referia apenas ao uso das mesmas na primeira edição, e não em edições posteriores), além de usar cerca de 40 outras figuras de outros autores, sem autorização. A denúncia informava que diversos trechos do texto seriam traduções fieis do original britânico.
Leonardo Fuks formalizou uma denúncia sigilosa ao programa Boas Práticas, da Fapesp. A lei do Whistleblowing (nº13.608), que garante o anonimato dos denunciantes, só seria aprovada em janeiro de 2018, de forma que garantia de sigilo era dada apenas pelo Código de Boas Práticas da Fundação. Desde 2011, o programa Boas Práticas é uma importante iniciativa para garantir a integridade acadêmica, e uma das únicas existentes no Brasil.
Danos morais
Depois de um ano, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), instituição de Florivaldo Menezes, criou uma sindicância administrativa para apurar a denúncia comunicada pela Fapesp. A comissão de avaliação preliminar manifestou-se favoravelmente ao livro do professor Florivaldo Menezes. O processo todo durou três anos; prazo era de 30 dias, segundo o Código de Boas Práticas. O professor da Unesp foi isentado de qualquer eventual culpa e a acusação foi considerada improcedente pela instituição.
A investigação justificou: “Os autores britânicos são constantemente mencionados e referenciados pelo autor”; “No prefácio […] o autor brasileiro estimula a consulta do livro britânico”. A comissão apontou ainda: “O material é traduzido (é difícil provar qualquer citação uma vez que o material é, por sua natureza, alterado” e “discute as mesmas ideias do livro britânico, portanto é natural que pareça similar”.
A sindicância apontou que similaridades entre os textos constituíam paráfrase. (O serviço de auxílio à redação acadêmica Scribbr afirma que paráfrase pode também ser plágio: “Paráfrase é plágio se o seu texto é demasiadamente próximo à formulação original, mesmo se você identifica a fonte. Se você copia diretamente uma sentença ou frase, você deveria citá-la entre aspas”). A Fapesp recebeu o relatório da comissão e homologou seus resultados.
Vale destacar que a comissão foi composta por três professores colegas de departamento (um deles era membro de projeto de Florivaldo Menezes, também financiado pela Fapesp) e sem currículo extenso em acústica musical. O conflito de interesses contraria o Código de Boas Práticas: “[A comissão] deve ter o conhecimento especializado requerido pela natureza da alegação em causa e não devem ter conflitos potenciais de interesse que possam ser razoavelmente percebidos como prejudiciais à imparcialidade da avaliação.”
Em 2021, Florivaldo Menezes moveu um processo cível contra Leonardo Fuks. Em sua petição, ele alegou que a comunicação sigilosa ao órgão de denúncias havia resultado em danos morais. “Claro intuito de prejudicar e causando evidentes danos morais e à imagem do Requerente, bem como grandes problemas tanto na tiragem quanto nas vendas em razão dessas imputações”, se lê no processo.
Em sua defesa, Leonardo Fuks recolheu e anexou ao processo os pareceres de oito cientistas que declaram haver indícios de más práticas acadêmicas no livro. Dois especialistas de acústica, um especialista em sonologia, dois especialistas em ética pesquisa, um parecerista anônimo da Fapesp e o editor da Revista Pesquisa Fapesp reforçaram que o livro brasileiro era um plágio do livro britânico. O próprio autor do livro original, Campbell Murray, escreveu em defesa de Fuks. (Três dos oito pareceristas pertencem à UFRJ).
O professor Sérgio Freire da UFMG escreveu: “Exame pouco aprofundado revela grande número de exemplos com notável similaridade. Não é possível atribuir esse fato à mera coincidência.” O Professor Roberto Tenenbaum da UFSM escreveu: “Seria mais prudente e intelectualmente honroso se o autor tivesse simplesmente publicado o livro como tradução do original.” O professor Ricardo Musafir da UFRJ chegou a contar as repetições: “O material novo introduzido por Florivaldo Menezes nos parágrafos examinados não chega a 25% do texto.”
Também foi incluído no processo a declaração do tradutor juramentado Arturo Ferres: “Após análise detalhada dos mais de cinquenta trechos comparados e verificados nos respectivos livros originais, verifiquei que grande parte dos trechos em português contidos no documento de 28 páginas são traduções fieis e corretas do seu original em inglês, com adaptações de menor monta e algumas vezes intermeados e/ou acompanhados por textos do autor do livro em português. […] Via de regra, os textos do livro em português traduzidos do original em inglês não traziam menção de que eram traduções do livro em inglês.”
Condenação e consequências éticas
As evidências não foram suficientes. Juízes e desembargadores de primeira e segunda instância, mesmo não tendo a seu dispor de uma perícia legal ou técnica, consideraram que não houve plágio e que a comunicação confidencial ao órgão de denúncias constituiu um ilícito. Fuks foi condenado a pagar R$ 55 mil a Menezes.
O processo, de número 1033172-72.2021.8.26.0100 ainda se encontra em curso, agora ingressando em terceira instância, mediante recursos especial e extraordinário ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, um precedente perigoso à integridade acadêmica foi aberto.
Pesquisadores deixam de reportar irregularidades porque mesmo as denúncias bem intencionadas e bem embasadas podem penalizar o denunciante. As instituições reforçam a obrigação de denunciar em códigos de ética e manuais de boas práticas, mas, na prática, enfraquecem instrumentos de integridade e sequer garantem o sigilo da identidade dos denunciantes.
Outro exemplo de como as instituições têm discursos destoantes da prática é o fato de que a lei brasileira é rígida contra o plágio, o considerando crime pelo Código Penal, artigo 184. Entretanto, o caso de Menezes e Fuks mostra que há pouco esforço para compreender se há ou não plágio em casos específicos, e que a Justiça deposita muita confiança no que dizem as instituições.
A postura de ouvir a autoridade é natural quando consideramos que é impossível para operadores do direito compreenderem tecnicamente todas as áreas das ciências. Entretanto, as instituições de pesquisa têm interesses em jogo. Sindicâncias beneficiariam acadêmicos de seus departamentos se sempre descartassem denúncias de plágio, não importando as evidências.
O conflito de interesses talvez seja a principal explicação pela qual há escassez de relatórios sobre quantas denúncias geram responsabilizações de pesquisadores por violações éticas. As implicações da violação de direitos autorais — como a retirada de livros de circulação, pagamento de royalties e outras medidas compensatórias — são o bem protegido calcanhar de aquiles da integridade acadêmica.
Esta matéria foi inteiramente baseada em documentos e processos públicos. Por duas semanas, a redação buscou contato com Florivaldo Menezes, mas não obteve resposta. O espaço permanece aberto.