Professor da USP diz que Otto Maria Carpeaux plagiou ensaio de Walter Benjamin

21 agosto 2016 às 14h01

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O deslize derruba toda a obra do crítico literário? De maneira alguma. A obra de Carpeaux permanece de pé, tal sua percuciência e erudição

O austríaco Otto Maria Carpeaux (1900-1978; seu nome era Otto Karpfen) era um intelectual brilhante, um erudito inquestionável. Deixa a impressão de que escreveu sobre praticamente todos os principais escritores. Sempre com alta qualidade e uma clareza que impressiona. Seus livros são guias seguros e, por incrível que pareça, muitas de suas interpretações não ficaram datadas. No sábado, 20, “O Estado de S. Paulo” publicou uma reportagem cautelosa, sob o título de “O fichário de Carpeaux”, assinada por Maria Fernanda Rodrigues, sobre um plágio do, insistamos, notável crítico literário. Por que a relativa cautela do jornal e de quem aponta o plágio, Bruno Gomide, doutor em Teoria Literária e professor da Universidade de São Paulo? Simples: o histórico positivo de Carpeaux, sua crítica ilustrada, ampla e perspicaz, não autoriza a chamá-lo de “plagiário” (ou “plagiário contumaz”) por um único deslize. Noutras palavras, a falha, ainda que grave, não diminui sua importância como crítico. A seriedade com a qual Bruno Gomide trata a questão é altamente relevante. Em nenhum momento pretende desmoralizar o crítico. Seu objetivo é apontar e esclarecer o fato.
O filósofo e crítico alemão Walter Benjamin (1892-1940) publicou um ensaio, “O narrador”, na revista “Orient und Okzidente”, a respeito do escritor russo Nikolai Leskóv (1831-1831), em 1936. Em 1942, Carpeaux publica o artigo “Rússia Sacra”, no jornal “Correio da Manhã”. Nada muito decisivo, mas era a primeira vez, tudo indica, que se examinava a prosa do autor no Brasil. O artigo acabou esquecido, como tantos textos de Carpeaux escritos para jornal.

Ao pesquisar para sua tese de livre-docência, a respeito da recepção da literatura russa no Estado Novo (1937-1945, período ditatorial), Bruno Gomide encontrou o artigo de Carpeaux e decidiu compará-lo ao texto “O narrador”, de Walter Benjamin. As ideias eram muito “parecidas”.
“Eu fui lendo e vi que era ‘O narrador’ sem tirar nem pôr. Fiquei impressionado porque eu não esperava isso do Carpeaux”, afirma Bruno Gomide. Mas o mestre ressalva: “Mas ele foi, e continua sendo, um grande crítico, uma pessoa importante na história intelectual brasileira e não quero, de modo nenhum, e tentei tomar muito cuidado na tese, desqualificá-lo sumariamente”. O professor, tradutor e intérprete categorizado da literatura russa, disse ao “Estadão” que a crítica de Carpeaux aos autores russos “continua impressionante e eficaz”. “Ele era certamente um bom leitor. Conhecia os autores e textos críticos, tinha as referências”, frisa Bruno Gomide.
Carpeaux, antes de Harold Bloom, era o tipo de crítico que lia de fato as obras, numa leitura direta, sem recorrer necessariamente à chamada fortuna crítica, que, como aponta Bruno Gomide, conhecia. Daí suas interpretações originais. Mas o reparo de Bruno Gomide é pertinente — é verdadeira, o que é essencial: o crítico “colocou um ensaio inteiro de Benjamin, brilhante, como se fosse dele. E isso é algo com que nós, admiradores do Carpeaux, temos que lidar de alguma maneira, interpretar”. Não se trata, portanto, de um crítico acadêmico tentando desprestigiar um crítico não acadêmico, o chamado crítico impressionista. É um apontamento de que até os “grandes” por vezes “erram”.
O que aconteceu com Carpeaux? Má-fé ou blecaute mental? “É impossível que nesse texto Carpeaux tenha sido traído pela memória. Não dá para uma pessoa escrever tudo aquilo, lembrar todos os detalhes e esquecer que o texto é de outra pessoa. Por melhor que fosse a memória dele, é impossível.”

A repórter apresenta duas perguntas: “Um problema de edição, então?” e “Uma nota ignorada pelo jornal?” Bruno Gomide sugere: “Pode ser. Só isso o salvaria”. Mas, dada a amplitude da “cópia”, o professor acha que não. Seria plágio mesmo, e não “filiação de pensamento” (alegação de Marilena Chauí, professora aposentada da USP, ao ter um plágio detectado pelo crítico José Guilherme Merquior. A filósofa copiou trechos de um texto do filósofo francês Claude Lefort).
Ao apontar o plágio, Bruno Gomide diz que não está se referindo “só a ideias e concepções” de Walter Benjamin. “Carpeaux usou as passagens literais, o que é, no mínimo, complicado. E indefensável. Isso deve ser levado em consideração pelo menos pelos que forem tratar de sua obra.” O mestre faz outra ressalva e apresenta uma suspeita: “Claramente, ele mobilizou um repertório de leitura acima da média dos críticos brasileiros da época. O problema é que, olhando mais de perto, achamos essa questão que é espinhosa. Como vamos lidar com isso? Em que medida ele não fazia isso para outras literaturas?” A frase “em que medida ele não fazia isso para outras literaturas” talvez seja o único ponto fraco da crítica de Bruno Gomide. Porque apresenta uma suspeita, mas nenhuma evidência.
Em seguida, Bruno Gomide afirma: “Eu o tinha em altíssima conta e agora sempre vou desconfiar um pouco, principalmente dos ensaios iniciais. Temos que conciliar e tentar entender como esse sujeito tão erudito fez isso. Nessa situação específica, acho que ele bobeou”. Diferentemente do professor, e apesar da denúncia do plágio, mantenho Carpeaux em altíssima conta. Trata-se de um crítico altamente categorizado, pioneiro, e um deslize, ainda que grave, não derruba sua obra total. Talvez valha a ideia de que se deve julgar um crítico pela média, não pelos extremos, no caso um equívoco (grave, claro).
Visão de Mauro Ventura
A descoberta do plágio não é de Bruno Gomide — sua é a exposição pública do problema —, e sim de Mauro de Souza Ventura, professor do departamento de Comunicação da Unesp de Bauru. A diferença é que o professor do departamento de Comunicação da Unesp, na sua tese de doutorado, de 2000, prefere não apresentar a apropriação como “plágio”. “Claro que estamos diante de um fato de interpretação literária difícil, mas eu diria que por serem contemporâneos, eles refletiram sobre as mesmas coisas. Não digo que descarto o plágio e acho que ele pode, sim, ter se apropriado de uma ideia e não ter citado a fonte. Mas pode ter sido por ele achar que a ideia podia ser dele, que ele também pensava aquilo”, disse Mauro Ventura ao “Estadão”.
Verdade ou maneira de se atenuar o problema, devido à simpatia pelo autor? É provável que seja cautela de gente séria, sobretudo com o objetivo de evitar que, depois do apontamento de um problema, se tente, a partir de agora, começar a demolição de uma obra crítica de incontestável valor. Como se sabe, uma telha rachada, que é o caso, não abala os alicerces sólidos de uma casa.
Outro “problema”

Descoberto o problema, Bruno Gomide pôs um pé atrás com relação a outros textos de Carpeaux sobre autores russos. Num ensaio sobre o romance “Oblómov”, Carpeaux chama seu autor, Ivan Gontcharóv, de “poeta do verão”. A expressão é de um ensaio — de 1937 — do italiano Renato Poggioli. É um problema bem menos grave. Até porque há expressões que se tornam, por assim dizer, de domínio público. Repetir a frase “poeta do versão” não configura plágio e nem mesmo apropriação indébita de uma ideia. É uma referência culta.
O “Estadão” publica uma informação equivocada. “Oblómov” não foi traduzido recentemente no Brasil. Há uma tradução bem antiga, a que foi plagiada pela Editora Germinal (o Jornal Opção documentou o plágio detalhadamente). Mas de fato não era uma tradução direta do russo, como a recente, feita por Rubens Figueiredo para a extinta Editora Cosac Naif (a edição e a tradução são primorosas).
Literatura de Nikolai Leskóv no Brasil
A literatura de Nikolai Leskóv começa a ser conhecida no Brasil, com tradução direta do russo. A Editora 34 publicou “A Fraude e Outras Histórias” (tradução de Denise Sales e ensaio de Elena Vássina), “Homens Interessantes e Outras Histórias” (tradução, posfácio e notas de Noé Oliveira Policarpo Polli) e “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” (tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra). As traduções, de qualidade, colaborar para que se leia e se aprecie a prosa de um escritor de alto nível, mas pouco mencionado no país.
Livro de 2002 mencionou a história do plágio de Carpeaux
O livro “De Karpfen a Carpeaux — Formação Política e Interpretação Literária na Obra do Crítico Austríaco-Brasileiro”, de Mauro Souza Ventura, foi publicado pela Topbooks em 2002 — há 14 anos — e, já naquela época, apontava o problema, o plágio.