Processo contra filha de Guimarães Rosa e editora deve render 50 mil reais para escritor goiano

08 junho 2023 às 00h19

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Machado de Assis morreu em 29 de setembro de 1908, aos 69 anos, no Rio de Janeiro. Legou aos leitores ao menos três romances memoráveis: “Quincas Borba”, “Dom Casmurro” (quiçá o mais intrincado) e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (o mais rico, literariamente).
No mesmo ano, em 27 de junho, nasceu João Guimarães Rosa, em Cordisburgo, Minas Gerais. Deixou como herança o magistral romance “Grande Sertão: Veredas” (o diálogo patropi com Goethe, James Joyce e Faulkner) e contos que, em alguns casos, são mini-romances ou novelas. “Sagarana”, para citar uma coletânea, ombreia-se, por vezes, ao romanção.

Guimarães Rosa morreu em 19 de novembro de 1967, aos 59 anos (Machado tinha dez anos a mais quando morreu). A morte do autor de “A Terceira Margem do Rio”, um dos contos mais belos e finos da literatura brasileira, ocorreu há 55 anos.
Se Guimarães Rosa nasceu há mais de um século, e se morreu há mais de meio século, por que não abundam (putz!) biografias do médico, diplomata e escritor?
Pode-se dizer que a literatura de Guimarães Rosa está devidamente “biografada” por críticos do naipe de Paulo Rónai, Antonio Candido, Benedito Nunes, Walnice Nogueira Galvão, Luiz Roncari, Willi Bolle, Kathrin Holzermayr Rosenfield, Silviano Santiago… e tantos outros.

Entretanto, a vida de Guimarães Rosa, suas várias peripécias — o trabalho como médico, a diplomacia, o tradutor, o salvamento de judeus, ao lado de sua mulher, Aracy —, é pouco conhecida. Sua obra é parte significativa de sua biografia. Mas é possível que um mergulho amplo na sua vida possa “revelar” ainda mais (a gênese de) sua escritura. As aproximações entre a vida e a obra podem esclarecer possíveis pontos obscuros, digamos assim. Podem iluminar “quartos” ainda escuros na biografia e na prosa.
Se Guimarães Rosa é imenso, como atestam sua literatura e a vasta crítica literária, de alta qualidade, por que o homem, o indivíduo, não reluz?
Aparentemente, porque a família — sobretudo Vilma Guimarães Rosa, uma das filhas do escritor — impedia.

Há quase 16 anos, em 2007, o escritor goiano Alaor Barbosa publicou “A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa” (LGE Editora, 388 páginas). Trata-se do tomo I. O tomo II não foi publicado.
Vilma Guimarães Rosa e a Editora Nova Fronteira, que publica a obra de Guimarães Rosa no Brasil — perdeu “Grande Sertão: Veredas” para a Companhia das Letras, que lançou uma edição esmerada do romance —, recorreram à Justiça (a 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro) e conseguiram censurar a biografia por cinco anos.
Na ação, Vilma Guimarães Rosa postulou que a biografia não havia sido autorizada pela família do escritor. Sublinhou também que ficava aquém da literatura do pai e que seu autor havia plagiado parte de seu livro “Relembramentos — João Guimarães, Meu Pai” (Nova Fronteira, 586 páginas). Este não é um livro excepcional, pois falta distanciamento à autora. Ainda assim, o aprecio. Pelo mesmo motivo que avalio que o livro de Alaor Rosa não é ruim: porque pelo menos acrescentam alguma coisa sobre a vida e sobre a obra do autor de “Corpo de Baile”.
Quando do lançamento do livro, fiz um comentário no Jornal Opção, o que levou Vilma Guimarães Rosa a ligar na redação. Estava brava. Bravíssima.

Em entrevistas, Vilma Guimarães Rosa chamou Alaor Barbosa de “mentiroso doido e nojento”. O escritor não é, claro, mentiroso, doido e nojento. Pelo contrário, é um pesquisador criterioso. Há falhas na biografia? É provável. Mas não invalida o fato de que, sendo pioneira, plantou as bases para biografias mais amplas.
Dados os xingamentos, que nada têm a ver com crítica — são ofensas graves —, Alaor Barbosa processou Vilma Guimarães Rosa. Como tem uma história positiva, do conhecimento geral, e citação, mesmo longa, não é plágio — o livro da filha de Guimarães Rosa é citado escrupulosamente como fonte (e é praticamente uma fonte primária — um documento) —, o escritor-biógrafo ganhou uma indenização de 140 mil reais.
Alaor Barbosa moveu um segundo processo, porque a biografia ficou cinco anos fora das livrarias, o que lhe acarretou prejuízos. O escritor ganhou o processo e o desembargador Fernando Habibe fixou a nova indenização em 50 mil reais. A Editora Nova Fronteira e Vilma Guimarães Rosa recorreram.
A Justiça do Distrito Federal retoma o julgamento do recurso da Nova Fronteira e de Vilma Guimarães Rosa (morreu em 2022, aos 90 anos), nesta semana, e deve conclui-lo na sexta-feira, 16.
O repórter de “O Globo” João Paulo Saconi, em reportagem publicada na quarta-feira , 7, diz que Alaor Barbosa é “jornalista”. O goiano de Morrinhos é, acima de tudo, escritor. Dos bons, por sinal. E é um crítico literário percuciente da obra de Guimarães Rosa e, entre outros, Monteiro Lobato.
Um professor da UnB está pesquisando, há alguns anos, e promete publicar uma biografia de Guimarães Rosa. A decisão do Supremo Tribunal Federal que facilita a vida dos biógrafos certamente vai ajudá-lo a publicar o livro.
Goiano deu origem a frase famosa de Guimarães Rosa
Na página 132 do livro “A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa”, Alaor Barbosa escreve: “Afirma Ismael de Faria que a frase ‘as pessoas não morrem, ficam encantadas’, que João Guimarães Rosa proferiu quase ao encerrar o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em 16 de novembro de 1967, foi pronunciada por ele 37 (Ismael de Faria errou na conta: foram 41) anos antes, no velório de um colega da Faculdade, Oséas Antônio da Costa Filho, morto de febre amarela em 1926”.
Pedro Nava, no livro “Beira-Mar”, assinala que Oséas Antônio da Costa Filho era goiano.
Link para a reportagem de O Globo