Hélio Doyle é um jornalista competente e com uma formação acadêmica respeitável, tanto que foi professor da Universidade de Brasília (UnB).

Mesmo tendo sido acadêmico, Hélio Doyle atuou no mercado, pondo a mão na massa, inclusive se relacionando com políticos, sempre de maneira republicana. Mantendo uma independência rara.

Convidado, aceitou dirigir a Empresa Brasileira de Comunicação. Dizem que a EBC é um vespeiro e que dirigi-la é uma missão quase impossível e, até, suicida. Talvez não seja. Afinal, onde há gente há problemas, ou seja, em qualquer lugar, não apenas na estatal criada em 2007, no segundo governo de Lula da Silva (PT).

A EBC não é, claro, uma BBC. Mas, aos trancos e barrancos, vai indo, como diz o vulgo. A impressão que se tem é que Hélio Doyle estava patrocinando uma mudança na estatal, reduzindo o chapa-branquismo. Reduzir não significa acabar, pois se trata de uma empresa pública, com os vícios típicos da área no Brasil, país em que se confunde questões de governo com questões de Estado, frequentemente as segundas se submetendo às primeiras.

É provável que, no comando, Hélio Doyle queria uma EBC — e seu jornalismo — mais de Estado do que de governo. Isto é impossível? Talvez, no Brasil, seja. Estamos no país do jeitinho e ajeitamentos. É assim que a nação verde-amarelo “funciona” — seja com a direita ou a esquerda no poder. É um caldo cultural. Com a direita, a de Jair Bolsonaro, era um tanto pior, porque vicejava a falta de limite, o desinteresse pela legalidade e pela democracia.

Pois Hélio Doyle, que vinha “ajustando” a EBC, se o termo ajustando é correto, acabou por ser demitido na quarta-feira, 18, pelo ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta.

Não se pode ter opinião quando se pertence a um governo? Ou aquele que tem opinião deve ficar silente ou divulgar apenas os dogmas da liturgia do governo ou partidária?

Lula da Silva e Hélio Doyle: talvez o presidente da República precise de um ombudsman da estirpe do jornalista e ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) | Foto: Divulgação da EBC

Para consumo público, a demissão de Hélio Doyle tem a ver com o fato de ter postado uma mensagem do cartunista e ativista Carlos Latuff, que escreveu: “Não precisa ser sionista para apoiar Israel. Ser um idiota é o bastante”.

Trata-se, além de uma grosseria, de uma opinião falsa. Nem todo mundo — e nem todo sionista — que apoia Israel é idiota. Mas, na democracia, Carlos Latuff, assim Hélio Doyle, tem o direito de expor sua opinião. O crítico de ambos também tem o direito de escrever o que julgar apropriado. Aqueles que exageraram, ao ferirem os sentimentos alheios, podem ser processados judicialmente. A democracia é assim: nada perfeita, mas o melhor que se tem — sempre.

Apesar da postagem que assusta, dada a agressividade da palavra “idiota” — que é de terceiro —, Hélio Doyle tem uma posição firme sobre o conflito entre Israel e Hamas, mas que não deixa de ser moderada.

Ao “Estadão”, na quarta-feira, Hélio Doyle disse que faz a defesa de dois Estados, o de Israel e o da Palestina, assim como a coexistência pacífica dos dois povos. Sua posição é a mesma de políticos moderados pelo mundo afora. Israel e Hamas querem os dois Estados? Tudo indica que não. O Hamas quer destruir o Estado de Israel — como muitos árabes.

Hélio Doyle assinala, na entrevista ao “O Estado de S. Paulo”, que, ao compartilhar a postagem de Carlos Latuff, mostrou sua contrariedade com os ataques de Israel em Gaza. Como se sabe, tais ataques, como tantos outros, não são cirúrgicos. Portanto, matam mais inocentes do que, digamos, terroristas do Hamas. O mais provável é que, para matar dez terroristas, os bombardeios acabam por matar dezenas de pessoas que, na prática, pouco ou nada têm a ver com a organização terrorista.

Sim, o Hamas é terrorista, como, no passado, Israel teve organizações terroristas, como o Irgun e o Lehi. Este, dirigido por Abraham Stern, chegou a se aproximar dos nazistas. Sua história, nada edificante, está contada no livro “Os Árabes — Uma História” (Companhia das Letras, 788 páginas, tradução de Marlene Suano), de Eugene Rogan, professor de Oxford. Pode ser verificada na página 357.

Se o Hamas é terrorista, capaz de qualquer coisa, como a matança de civis, não se pode dizer o mesmo do povo palestino. A maioria dos palestinos é composta de gente que, apesar de não tolerar Israel, quer apenas viver em paz. Tolera o Hamas e o Hezbollah — que atua no Líbano — porque, ante um inimigo forte e poderoso, ambos são seus defensores, para o bem e para o mal.

Ao “Estadão”, Hélio Doyle acrescentou: “Defendo a existência de um Estado palestino conforme resoluções da ONU, e a coexistência pacífica entre israelenses e palestinos. Condeno a ocupação de territórios palestinos por Israel, assim como qualquer violência contra civis praticada por qualquer um dos lados. Isso significa que, em relação aos fatos recentes, condeno tanto o Hamas quanto o governo de Israel. Ao compartilhar o post, o apoio a Israel ao qual me refiro é quanto aos ataques indiscriminados contra a população de Gaza”. Uma posição moderada e, portanto, defensável.

O que Hélio Doyle disse não é muito diferente do que pensam petistas, Lula da Silva e seu entorno (Celso Amorim, por exemplo). Mas o petista-chefe está na Presidência, portanto tem de defender os interesses coletivos, precisa de (mais) diplomacia. Sobretudo, o Brasil está no centro do debate sobre a crise do Oriente Médio, com participação importante na ONU — daí o suposto desconforto com as palavras do jornalista. Observe-se que o ministro do Esporte, André Fufuca (pP-MA), qualificou o Hamas como “terrorista” nas redes sociais. Até agora, talvez pela força do Centrão, não foi admoestado pelas patrulhas da correção do governo.

A queda de Hélio Doyle tem a ver, é provável, com suas posições relativamente autônomas, e talvez muito pouco com o que disse sobre Israel. Governos exigem uma “unidade” que, a rigor, é prejudicial ao espírito crítico. Se todos baterem “continência” para o presidente Lula da Silva, mesmo quando estiver errado, pequenas e grandes tragédias tendem a ocorrer e conspurcar a gestão. Vozes críticas, que guardam certa independência, são úteis aos governos, aos políticos, aos administradores públicos.

Dada a experiência de Lula da Silva, um ás da política — que é exemplar pela amplitude de sua história, não pelos detalhes (há ruins, há mais ou menos e há bons) —, ele deveria reconvocar Hélio Doyle e nomeá-lo como uma espécie de ombudsman do governo. Uma instância crítica, acima do governo e do partidarismo, pode contribuir para melhorar a administração pública — inclusive sua comunicação.

Ouvi de um jornalista petista: “Hélio Doyle é um chato”. Talvez seja. Mas os chatos, aqueles que dizem a verdade, às vezes funcionam como o Sol — são luzes contra o erro.