Prisão de Renato Tapajós e censura a romance podem ter sido tentativa de frear outros livros
17 março 2024 às 00h01
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“Em Câmara Lenta” (192 páginas), de Renato Tapajós, de 80 anos, é um romance sobre a luta contra a ditadura civil-militar (1964-1985). Ao seu modo, é uma história do Brasil sob o olhar vigilante e estético da ficção. Em 2022, saiu uma nova e bem-cuidada edição pela Editora Carambaia, que inclui uma entrevista do escritor, um parecer do crítico literário Antonio Candido e um posfácio de Jayme Costa Pinto.
Uma das editoras mais corajosas do país, a Alfa-Ômega publicou, em 1977, a primeira edição de “Em Câmara Lenta”. O livro é a história da participação de Renato Tapajós na luta armada, na segunda metade da década de 1960. Capturado pela repressão, ficou preso de 1969 a 1974. Na prisão, com extremo cuidado, escreveu a obra, em 1973, “depois de saber da morte, na prisão, da” guerrilheira Aurora Maria Nascimento Furtado, conta Sandra Reimão, no livro “Repressão e Resistência — Censura a Livros na Ditadura Militar” (Edusp/Fapesp, 184 páginas).
A publicação do livro gerou dissabores para Renato Tapajós, que, ao deixar a sede da Editora Abril (onde trabalhava), em julho de 1977, acabou preso por agentes do Deops. O torturador-mor dos delegados, Sérgio Fleury, concluiu que “Em Câmara Lenta” violava a Lei de Segurança Nacional. Seria, no registro do policial, “uma apologia do terrorismo, da subversão e da guerrilha em todos os aspectos”. Só faltou tachar o romance de “Carlos Marighela ou Carlos Lamarca dos livros”. Vale notar que se estava no governo do general-presidente Ernesto Geisel, em pleno período da distensão.
De acordo com Sandra Reimão, “o impacto da notícia, caso único de autor preso durante a ditadura militar por causa do conteúdo de um livro, e o espanto pelo fato de a prisão ter ocorrido já no início de um processo de abertura política — ‘lenta, gradual e segura’ — geraram uma grande mobilização da imprensa e da sociedade”.
Os jornais publicaram reportagens e artigos críticos à prisão do escritor. Num abaixo-assinado, 800 pessoas lavraram seu protesto contra o arbítrio do governo civil-militar. A Anistia Internacional endossou as críticas.
O tema ditadura civil-militar, assim como seu combate, gerou a publicação de vários livros. Trata-se, no geral, de literatura de testemunho, que, dada a fidelidade aos fatos, é usada como documento de pesquisa pelos historiadores.
“Em Câmara Lenta”, frisa Sandra Reimão, “é o primeiro livro de memórias de ex-militantes políticos da década de 1960” (na minha opinião, é o melhor deles. Em 2024, saiu pela Editora Record, “Na Corda Bamba — Memórias Ficcionais”, do historiador Daniel Aarão Reis. Muito bom, por sinal. Inclusive sem descartar um certo humor).
Trata-se, segundo Mário Augusto Medeiros da Silva, no livro “Os Escritores da Guerrilha Urbana”, de “o primeiro livro de memórias, um romance, fruto de um militante ativo do período de desenvolvimento e fim das ações armadas e da guerrilha urbana”.
Na década de 1970, depois da extinção do AI-5 e da Anistia, saíram vários livros-depoimentos sobre os anos de chumbo — como “Os Carbonários”, de Alfredo Sirkis, e “O Que É Isso Companheiro?”, de Fernando Gabeira (os dois participaram do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969, no auge da guerrilha e da repressão militar). O historiador Carlos Fico assinala que “foi, de algum modo, a primeira tentativa de construção de uma narrativa histórica sobre o período”.
“O Que É Isso Companheiro?” foi o grande best-seller da safra de livros de ex-guerrilheiros. Publicado pela Editora Codecri, o livro vendeu., de cara, 80 mil exemplares. A Companhia das Letras divulgou, em 2009, que a obra, com mais de 40 edições, vendeu mais de 250 mil exemplares.
“Os Carbonários”, ainda que não tenha se tornado um best-seller, é um livro interessantíssimo, sobretudo por contar a saga de um guerrilheiro-mirim — de 19 anos de idade, o próprio Alfredo Sirkis. (Nos sequestros de embaixadores, por falar inglês, era a ponte com os estrangeiros capturados. Era gentil e, certa vez, contribuiu, ao convencer o líder Carlos Lamarca, para evitar a execução de um diplomata.)
A minissérie da TV Globo “Anos Rebeldes” é baseada em “Os Carbonários” e no livro “1968 — O Ano Que Não Terminou”, de Zuenir Ventura. Levada ao ar em 1992, fez sucesso.
Ao contrário de “Em Câmara Lenta”, “O Que É Companheiro?” e “Os Carbonários” não foram censurados pelo Departamento de Censura Federal.
A capa da primeira edição de “Em Câmara Lenta”, feita por Moema Cavalcanti, mostra uma boca: “lábios sorrindo; lábios entreabertos; lábios com um fio de sangue” — anota Sandra Reimão. “A boca que sorria era de Aurora Maria Nascimento Furtado, morta em uma sessão de tortura”, relata a pesquisadora.
“A narrativa desenvolve-se em dois eixos — presente e passado — e em vários blocos temporais distintos — memórias de distâncias variadas. Entre esses blocos e ao mesmo tempo completando-os, a cena da prisão e da tortura de Aurora Furtado vai se repetindo como uma imagem-refrão e vai se formando. Enquanto estava preso, Renato Tapajós enviava os originais, clandestinamente, em pequenos retalhos de papel, pelas visitas que recebia”, conta Sandra Reimão.
Em maio de 1977, período ainda trevoso, com a linha dura sob relativo controle mas com as presas à mostra (o Riocentro ocorreu em 1981), no lançamento, “Em Câmara Lenta” vendeu 800 exemplares. Dado o sucesso, o Ministério da Justiça “proíbe a publicação e a circulação do livro”.
Entre março e abril de 1978, na tramitação do processo de censura do livro, o maior crítico literário do país, Antonio Candido, foi convocado para apresentar um parecer. O mestre da Universidade de São Paulo foi certeiro: “Resumindo para concluir: em qualquer nível que me coloque, sou levado a negar que ‘Em Câmara Lenta’ constitua um incentivo ou sequer um mero exemplo de atividade subversiva. E se fosse necessário extrair dele uma lição, como dos velhos romances alegóricos, eu concluiria que é, antes, o contrário”.
“Em Câmara Lenta” não é, no geral, uma celebração da guerrilha, e sim um retrato realista, burilado pela ficção, de um tempo histórico. Escrevendo, digamos, em cima dos fatos, Renato Tapajós ainda assim conseguiu escapar do maniqueísmo habitual. Há nuances que o coronel Erasmo Dias e Sérgio Fleury, acostumados a uma visão linear — a da extrema-ignorância —, não tinham como compreender. A descrição de um fato não equivale, necessariamente, a um convite para repeti-lo. O autor do livro, ao condenar a violência da repressão militar, não estava sugerindo um retorno à guerrilha. A rigor, fez um balanço rigoroso e perceptivo dos fatos, com o uso iluminador da literatura.
O “lobo” Armando Falcão, ministro da Justiça, liberou o livro em 17 de março de 1979.
A prisão de Renato Tapajós e a censura ao livro constituem, no dizer de Mário Augusto Medeiros da Silva, autor do livro “Os Escritores da Guerrilha — Literatura de Testemunho, Ambivalência e Transição Política”, “um dos casos mais extraordinários de arbitrariedade, abuso de poder e, até mesmo, disputas de leituras e visões de mundo a partir de uma mesma obra, conhecidos nas histórias política e literária contemporânea”.
No livro “Em Busca do Povo Brasileiro”, o historiador Marcelo Ridenti avalia o ataque a Renato Tapajós e ao seu romance como “uma operação inusitada da ditadura, já sob o governo Geisel: prendeu o autor e só veio censurar o livro depois”. (De maneira jocosa, talvez seja possível sugerir que os censores da ditadura demoraram a ler o livro e decidiram pela censura, não por entender, e sim por não entender a amplitude e matizes de seu escopo.)
Sandra Reimão conta a história da Alfa-Ômega (da qual comprei vários livros, quase todos engajados, na década de 1980, quando fazia História na UCG e Filosofia e Jornalismo na UFG). A editora foi fundada, em 1973 — no governo de Emilio Garrastazu Médici, o mais linha dura dos generais-presidentes —, por Fernando e Claudete Mangarielo. “A Ilha”, de Fernando Morais, foi um de seus best-sellers. Estudante, li com interesse, até avaliando que era bom. Na verdade, é uma mera apologia do governo de Fidel Castro em Cuba. Mais tarde, o jornalista e pesquisador escreveu livros de qualidade, como as biografias de Olga Benario e de Assis Chateaubriand, o Chatô.
Fernando Mangarielo diz que a censura aos livros — assim como sua apreensão — provocava crise financeira nas editoras. “Havia uma autocensura dos editores, porque uma edição, sendo pega, desmontava financeiramente uma empresa.”
O editor da Alfa-Ômega conta que, “nos primeiros anos, preventivamente, o estoque de cada um dos títulos da editora já saía da gráfica estrategicamente dividido em três blocos: mil exemplares eram enviados para a sede da editora, que ficava com apenas uns cem, e já encaminhada os outros para as livrarias; dois mil exemplares iam para outro lugar: ‘era uma coisa importante na minha geração, a estratégia e a tática do vietcongue. Eu dividia em três partes, porque a ação, quando pegava tudo… gerava um grande prejuízo’”.
Mesmo com a prisão de Renato Tapajós e a censura ao livro, o governo Geisel não fez nenhuma busca na sede da Alfa-Ômega e não apreendeu exemplares. Porém, alguns foram apreendidos em livrarias. “Mais ou menos uns 300 livros, 10% da primeira edição, foram pegos de forma fragmentária ao longo de todo o território”, garante Fernando Mangarielo.
O editor afirma que, apesar da pressão, não pensou em recolher o livro “Em Câmara Lenta”. “Quando a censura oficial chegou, a primeira edição já estava esgotada. Houve uma segunda edição”, relata Fernando Mangarielo.
Em 2 de agosto de 1977, o jurista, historiador e crítico Fernando Faoro, autor da obra-prima “Os Donos do Poder” e de um livro sobre Machado de Assis, criticou a prisão arbitrária de Renato Tapajós: “É espantoso que havendo Censura Federal, com poderes draconianos, poderes de verificação prévia — segundo uma lei que reputamos inconstitucional mas que está em pleno vigor —, a polícia estatual interferia e repute subversivo um livro que à Censura Federal não causou nenhuma impressão negativa”. A prisão do escritor se deu “um mês e pouco antes da censura do próprio livro”.
O delegado Alcides Singillo, do Deops de São Paulo escreveu, no parecer sobre o livro: “Outro aspecto a ser abordado é que o livro ‘Em Câmara Lenta’ seja nada menos que o embrião de uma nova modalidade de ataque e calúnias aos governos, disfarçada por uma casca literária”.
Sandra Reimão pontua que “essa frase do parecer reflete o temor das forças da repressão frente ao início do processo de abertura. Os militares temiam uma ‘onda’ de memórias recentes dos militantes da esquerda, o que realmente veio a acontecer. (…) Se destacarmos o trecho citado do parecer do delegado Singillo, então não podemos deixar de concluir que as manifestações de repúdio à prisão do autor e sua absolvição tornaram politicamente possível que as demais publicações do gênero vicejassem sem maiores problemas”.
O Avesso da Pele/o caso de Jeferson Tenório
Em 2024, ano em que mais uma vez se registra vários casos de escravidão em fazendas, a extrema-ignorância volta a operar a censura de um livro, agora o romance “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório.
Descrito no livro, o racismo não é discutido pelos “novos censores”, por não avaliá-lo como absurdo.
Mas cenas de sexo, que não são pornográficas (os críticos nem percebem ou não querem perceber a crítica do autor), incomodam os senhores da moral de um Estado que, se a sociedade não reagir, poderá se tornar fundamentalista-teocrático. O peso de religiões, notadamente das evangélicas em decisões políticos — que afetam a todos —, está criando um mal-estar na civilização patropi.
É hora de a sociedade pensar em (como) conter isto. Antes que seja tarde.