Portugal publica livro-bomba de Soljenítsin com tradução direta do russo

11 agosto 2018 às 22h41

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O épico que denunciou a barbárie perpetrada por Lênin e Stálin também ganhará tradução brasileira pela Editora Carambaia

A Editora Carambaia vai publicar no Brasil o livro “O Arquipélago Gulag”, do escritor Aleksandr Issáevitch Soljenítsin (1918-2008), com tradução do russo. A Sextante Editora (589 páginas), de Portugal, publicou, em 2017, a tradução de António Pescada, a partir do russo. Trata-se da “edição abreviada” pelo próprio autor, com prefácio de sua mulher, Natália Soljenítsina. A edição (de 1975) que circula no Brasil, nos sebos, é uma versão portuguesa, da Difel, feita por Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra, aparentemente do russo.
“O Arquipélago Gulag” é um dos mais notáveis livros da história universal — o equivalente ao romance “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói. Antes dele, Soljenítsin havia escrito um livro menor (em número de páginas), o magnífico “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”, sobre os campos de trabalhos forçados. Mas “O Arquipélago Gulag” é um retrato maior e mais poderoso do que os comunistas fizeram com aqueles que discordavam ou eles achavam que discordavam de seus métodos de gerir a União Soviética. A historiadora Anne Applebaum, no livro “Gulag — Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos” (Ediouro, 749 páginas, tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte), explica que “a palavra Gulag é um acrônimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou Administração Central dos Campos. Com o tempo, passou também a indicar não só a administração dos campos de concentração, mas também o próprio sistema soviético de trabalho escravo, em todas as suas formas e variedades: campos de trabalhos forçados, campos punitivos, campos criminais e políticos, campos femininos, campos infantis, campos de trânsito. De modo ainda mais amplo, Gulag veio a significar todo o sistema repressivo soviético, o conjunto de procedimentos que os presos outrora denominaram ‘o moedor de carne’: as prisões, os interrogatórios, o traslado em vagões de gado sem aquecimento, o trabalho forçado, a destruição de família, os anos de degredo, as mortes prematuras e desnecessárias”.
Lênin, o precursor do Gulag
Já em 1918, Lênin mandou “elementos indignos de confiança” — leia-se adversários, inclusive de esquerda — para campos de concentração. “Em 1921”, informa Anne Applebaum, “já havia 84 campos de concentração em 43 províncias. (…) A partir de 1929, Stálin resolveu usar o trabalho forçado tanto para acelerar a industrialização da URSS quanto para explorar os recursos naturais no extremo norte, quase inabitável, do país”. No mesmo ano, “a polícia secreta começou a assumir o controle do sistema penal soviético”. Lênin e Stálin edificaram “476 complexos distintos de campos”. “Os presos trabalhavam em quase todas as atividades imagináveis — derrubada e corte de árvores, transporte dessa madeira, mineração, construção civil, manufatura, agropecuária, projeto de aviões e peças de artilharia. Era um Estado dentro do Estado.”
“A metáfora do ‘arquipélago’” não foi escolhida por acaso por Soljenítsin “para descrever o sistema soviético de campos de concentração. Solovetsky, o primeiro a ter sido planejado e construído para durar, desenvolveu um verdadeiro arquipélago, expandindo-se de ilha a ilha, ocupando à medida que crescia as velhas igrejas e construções monásticas da antiga comunidade de monges”.
Pesquisadores especulam que “Stálin fomentou as primeiras e superambiciosas obras de construção dos campos para reforçar seu prestígio pessoal. (…) Talvez tenha imaginado que novas façanhas na frente industrial, realizadas com o uso da mão de obra escrava do sistema prisional, o ajudassem a consolidar sua autoridade”. Anne Applebaum frisa que o historiador Robert Tucker “já demonstrou fartamente o interesse obsessivo de Stálin por Pedro, o Grande”.
O livro de Soljenítsin, assim como outras obras de sobreviventes dos campos, como Varlam Chalámov, é um dos pontos de partida para se entender o Gulag. Sua história começa, porém, com a publicação de outra obra, “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”.

No prefácio “O dom da personificação”, Natália Solejnítsina relata que, em 1961, o manuscrito de “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch” chegou à redação da revista “Novi Mir”. “À noite”, o diretor da publicação, Aleksandr Trifónovitch Tvardovski, “deitou-se na cama e pegou o manuscrito. Mas ao fim de duas ou três páginas decidiu que aquilo não era coisa para ler deitado. Levantou-se, vestiu-se. Em casa toda a gente estava a dormir, e ele passou a noite a ler o relato, intervalando com o chá da cozinha — leu uma vez, leu [uma] segunda vez”.
Tvardovski decidira: tinha de publicar a terrível história do campo de concentração stalinista. Era possível porque Nikita Kruchev, reformista, estava no poder. “Diz-se que mataram a literatura russa. Uma ova! Aqui está ela, nesta pasta amarrada com cordões. Mas o autor? Quem é ele? Nunca ninguém o viu.”
Soljenítsin era professor de física e astronomia numa escola secundária, em Riazan, e havia ensinado matemática. “Estivera desterrado, no Cazaquistão.”

A prisão de Soljenítsin
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), depois de ter começado a combater como soldado, se tornou, a partir de 1942, comandante de “uma bateria de detecção acústica, com o posto de tenente”. Lutador destemido, foi condecorado com a ordem da Guerra Patriótica de 2ª classe e, depois, a ordem da Estrela Vermelha. “Ao comando de sua bateria, esteve ininterruptamente na frente até fevereiro de 1945, quando, já na Prússia oriental, com o posto de capitão, foi preso devido a uma correspondência, interceptada pela censura, com um amigo da escola. Nas suas cartas, os jovens oficiais chamavam a Stálin Cabecilha — por ter ‘traído a revolução’, pela perfídia e pela crueldade. O castigo era inevitável”, conta Soljenítsina.
Aos 26 anos, Soljenítsin foi condenado a “oito anos de campo de trabalhos e ‘desterro perpétuo’ depois de cumprida a pena de oito ano”. Na prisão, “começou a escrever, ou mais precisamente a compor na mente, sem papel”. O escritor diz que “a princípio memorizava os versos, e depois memorizava também a prosa”.
Preso no campo de trabalho correcional de Ekibastuz, no Cazaquistão, entre 1950 e 1953, Soljenítsin “trabalhou na brigada de pedreiros e na fundição”. A dolorosa história do campo está registrada em “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”.
Um ano antes de deixar o Gulag, Soljenítsin teve câncer e quase morreu. “A despeito dos prognósticos desesperados, as fortes doses de terapia de raios X restituem-no à vida”, assinala Soljenítsina. A experiência é contada no romance “Pavilhão dos Cancerosos”.
Em 1959, começou a escrever o que se tornaria “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”. “Escreveu-o e escondeu-o.” Com Kruchev no poder, atacando Stálin e o stalinismo, Soljenítsin criou coragem e se dispôs a publicá-lo. A poeta Anna Akhmátova asseverou: “Cada cidadão, de todos os duzentos milhões de cidadãos da União Soviética, tem a obrigação de ler e decorar esta história”.
Tvardovski, depois de onze meses de luta, conseguiu publicá-lo na “Novi Mir” (tiragem de mais de cem mil exemplares). “A publicação de minha novela na União Soviética em 1962 era como se, contra as leis da física, os objetos começassem a erguer-se do chão por si mesmos ou as pedras frias começassem a aquecer até se incendiarem”, escreveu Soljenítsin.
As pessoas leram o livrinho e, emocionadas, ligavam para a revista, pois queriam localizar o autor. “Nas bibliotecas inscreviam-se nas listas de espera, nas ruas de Moscou os moscovitas assediavam os quiosques.” A revista esgotou-se rapidamente. Um homem, que não se lembrava do nome da revista, dizia ao vendedor de uma banca: “Bem, aquilo, aquilo, onde vem escrita toda a verdade!”
O acadêmico Serguei Averintsev recorda que as pessoas diziam: “Olha aqui, a história ainda não acabou!” Varlam Chalámov escreveu para Soljenítsin: “Estive duas noites sem dormir, a ler e reler a novela, a recordar… Esta novela é como um poema, tudo nela é perfeito, tudo tem um sentido. Cada linha, cada cena, cada caracterização tão lacônica, inteligente, sutil e profunda, que eu penso que a ‘Novi Mir’ em toda a sua existência não publicou nada tão completo, tão forte”. (Chalámov escreveu “Contos de Kolimá”, obra seminal sobre o Gulag publicada no Brasil pela Editora 34, com tradução direta do russo. É exemplar o trabalho editorial da 34 e dos tradutores da obra.) No caso, a literatura, sem deixar de ser literatura, recria a realidade de maneira poderosa, tornando-a, por assim dizer, ainda mais real.
Com o descenso do degelo de Kruchev, com a revivescência do stalinismo, a obra de Soljenítsin, como “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”, foi proibida na União Soviética. Uma diretiva secreta retirou o livro das bibliotecas.
Conexão União Soviética-Paris
Apesar da repressão, Soljenítsin começou a receber cartas de toda a União Soviética. Eram centenas. As pessoas contavam histórias sobre seus sofrimentos ou de seus familiares no Gulag. “Não é pois de surpreender que a necessidade de escrever o ‘Arquipélago’ se lhe tenha imposto como um dever moral. Assim se tornou Soljenítsin o cronista acreditado da desgraça do povo”, sugere Soljenítsina.
O material era vasto e organizá-lo, dando-lhe forma literária e tornando-o inteligível, era uma tarefa quase de Hércules. Soljenítsina afirma que o escritor “era um convicto adversário da invenção de novas formas apenas pela novidade; considerava que, apurando bem o ouvido, o próprio material nos dita a forma, a densidade e a trama da obra”. “Nunca pensei na forma da ‘investigação literária’, foi o material do ‘Arquipélago’ que ma ditou. Uma investigação literária é a utilização do material factual, vivo (não transformado), para que dos fatos isolados, dos fragmentos, reunidos, no entanto, segundo as capacidades literárias do autor, se extraia com toda a evidência uma ideia geral, que de modo nenhum seja inferior a uma investigação científica”, assim Soljenítsin explica sua, digamos, missão.
Num país democrático, o escritor pode escrever com tranquilidade, pois seus originais não serão vasculhados, apreendidos ou destruídos. Na União Soviética de e pós-Stálin, Soljenítsin tinha de esconder até que estava escrevendo um livro. “O escritor nunca conservou, nem juntou numa mesma mesa todos os materiais recolhidos. O essencial do ‘Arquipélago’ escreveu-o num lugar secreto, o Esconderijo. Trabalhou ali dois invernos seguidos — 1965-1966 e 1966-1967”, revela Soljenítsina. Só em 1991, com a queda do comunismo na União Soviética, o escritor teve coragem de contar onde havia escrito a obra. “Era numa quinta nas proximidades de Tartu, na Estônia, que estava desabitada no inferno”, declara. O lugar era gelado — 30º negativos — e isolado, por isso, possivelmente, a polícia secreta não o descobriu.
“Nunca na minha vida trabalhei como durante esses 146 dias no Esconderijo [em dois invernos]; era até como se não fosse eu, era arrastado, a minha mão escrevia e eu era apenas uma mola preparada, comprimida durante meio século e agora solta”, conta Soljenítsin. Devido ao frio, cortava lenha, aquecia o fogão e escrevia em pé, “com as costas apoiadas à parede escaldante do fogão; outra parte fazia-a deitado debaixo dos cobertores. (…) Liguei-me ao meu material secreto, e o meu objetivo único e final era que dessa ligação nascesse o ‘Arquipélago… Essas semanas foram o auge da minha vitória e da minha renúncia”.
Em maio de 1968, o livro estava pronto, ou quase. Assistentes datilografavam o texto e Soljenítsin ia fazendo correções. “O mais horrível era que tínhamos conosco o único original”, assinala o escritor. Se a polícia secreta confiscasse o material, adeus “O Arquipélago Gulag”. Concluído, o texto final é “microfilmado, a película enrolada, de modo que será mais fácil guardá-lo e em devido tempo enviá-lo para um lugar seguro e inacessível”.
Um neto do escritor Leonid Andréiev (1871-1919), Sacha Andréiev, estava em Moscou, com um grupo da Unesco. Disseram a Soljenítsin que era “confiável” e, por isso, o escritor entregou o romance para o russo que morava em Paris.
Em 1970, antes da publicação de “O Arquipélago Gulag”, Soljenítsin ganhou o Prêmio Nobel de Literatura — “pela força moral com que prosseguiu a eterna tradição da literatura russa”. Não chega a ir a Estocolmo, com receio de que o regime comunista não permitisse sua volta. Apesar do prestígio no exterior, sua obra era proibida na União Soviética. Mesmo assim, “Ivan Deníssovitch”, o “Pavilhão dos Cancerosos” e o “Círculo” eram lidos — em samizdat (edições clandestinas).
O escritor pretendia publicar “O Arquipélago Gulag” — um “herdeiro, um filho da Revolução” — no Natal de 1971. “Revelar o ‘Arquipélago’, é meter a cabeça no patíbulo, este livro não será perdoado ao autor, e os zeks [presos dos campos de concentração comunistas] que deram os seus testemunhos vão passar um mau bocado. Depois do ‘Arquipélago’ já não deixarão escrever um romance sobre a revolução — portanto, o melhor é escrever o máximo possível antes”, escreve a companheira do autor.
A publicação acaba ficando para 1975. Porém, em agosto de 1973, o KGB confisca uma cópia datilografada de “O Arquipélago Gulag”. Soljenítsin envia uma ordem para Paris: imprimam o livro. Já! Na primeira página, escreve: “De coração constrangido, abstive-me durante anos de imprimir este livro, que já estava pronto: o dever perante os que ainda vivem sobrepunha-se ao dever perante os mortos. Mas agora, quando os serviços de segurança do Estado se apoderaram deste livro, não me resta mais nada se não publicá-lo imediatamente”.
Para evitar a espionagem soviética, sempre onipresente e poderosa na Europa, a editora IMKA-Press o compôs e o imprimiu secretamente e o lançou em 28 de dezembro de 1973. A imprensa soviética atacou o autor e o livro — chegaram a espalhar que Soljenítsin era alcoólatra (ele não bebia). Na Europa, a repercussão foi imediata e intensa. Um crítico escreveu: “Contra insurretos armados pode-se enviar tanques, mas contra um livro?” O fato é que o romance, contando a selvageria do Estado comunista contra os “culpados” que produzia a granel, pôs o governo do stalinista Leonid Brejnev de joelho.
Procurado pela imprensa internacional, Soljenítsin limita-se a dizer: “Cumpri o meu dever para com os que morreram e isso dá-me alívio e tranquilidade. Esta verdade estava condenada ao aniquilamento total, exterminavam-na, afogavam-na, queimavam-na, desfaziam-na em pó. Mas aí está ela unida, viva, impressa — e isso já ninguém o poderá limpar nunca”.
Os comunistas queriam destruir o livro, que conquistara o mundo, mas, como não puderam, prenderam Soljenítsin, sob acusação de “traição à pátria”. Em seguida, retiraram-lhe a cidadania, levaram-no ao aeroporto e o expulsaram da União Soviética. Era uma grande vingança, porque o escritor, apesar tudo, ama seu país.
Ao avaliar a história dos homens que foram transformados em escravos, depositados em lugares ermos — para trabalhar e, até, para morrer —, por um regime que pregava a igualdade acima de tudo, Soljenítsina, no seu belo texto, sustenta que o Gulag “não” foi criado por “um encadeamento de ‘erros’ e de ‘violações da legalidade’. (…) Foi o inevitável produto do próprio Sistema, incapaz de conservar o poder sem essa ferocidade inumana”.
O romance como poema épico
“Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, é um romance, mas é também uma radiografia histórica da invasão da Rússia, em 1812, por tropas francesas de Napoleão Bonaparte. A literatura é tão poderosa que rivaliza com livros de história — ainda que, aqui e ali, haja alguma imprecisão. Há um aspecto que nem sempre ganha corpo nos livros de história — a descrição vívida da vida privada, o que Tolstói faz com mestria, ao transformar um fato “morto” num fato “vivo”. Tal ocorre com “O Arquipélago Gulag”, que, embora seja um romance, se tornou um documento histórico consultado, respeitado e acatado pelos principais historiadores do período soviético, como Richard Pipes, Orlando Figes (autor do notável “Sussurros”, sobre a vida privada na União Soviética), Robert Service, Sheila Fitzpatrick, Simon Sebag Montefiore e Anne Applebaum.
Um crítico, citado por Soljenítsina, escreveu: “É impossível encarar o ‘Arquipélago’ como uma obra apenas de literatura, embora se trate de literatura, e de grande literatura… Trata-se de algo inteiramente único, sem paralelo (equivalente) na literatura russa nem na literatura ocidental”. Há uma mistura de gêneros na literatura de testemunho do insider Soljenítsin. Trata-se de uma denúncia candente, mas não é mero panfleto. A mulher do escritor percebe o romance como um “poema épico”.
O comunismo, com o artifício de potencializar o mal — produzindo depoimentos falsos a partir de tortura, ou forçando a se contar a verdade para sacrificar o indivíduo, e criando delatores nas famílias e entre amigos —, gestou uma sociedade da desconfiança. Não chegou a eliminar o bem, mas, ao investir no mal, criou uma sociedade da perversão. “A linha que separa o bem do mal atravessa o coração de todas as pessoas… Essa linha é móvel, oscila dentro de nós com o passar dos anos. Mesmo num coração dominado pelo mal, ela deixa sempre um pequeno espaço do bem. E mesmo no coração mais generoso há um inextirpável cantinho de mal”, escreveu Soljenítsin.
A notável pesquisadora Anne Applebaum afirma que, “precisamente devido à sua veracidade, o ‘Arquipélago’ não perdeu a atualidade nem a importância, impossíveis de lhe retirar”. Lídia Tchukósvskaia disse, numa carta para Soljenítsin: “Só há uma coisa que não conhecerá: uma análise artística, literária, das suas obras. A admiração e a indignação impedem as pessoas de apreciaram a genialidade artística e alcançarem a sua natureza. (…) O mais fácil será a especificidade do léxico, mas e a sintaxe? O ritmo oculto, na ausência de um ritmo visível? A amplitude da palavra? A novidade no modo de dar movimento, de desenvolver o pensamento? (…) Para analisar, é preciso acostumar-se, deixar de sentir a queimadura — e nós estamos presos ao sentido, às informações, a dor queima-nos”. A tradução portuguesa, bem-feita, permite ao leitor acesso à prosa criativa — não ao modo da de James Joyce, é claro — de Soljenítsin. A sua implacabilidade narrativa, sem autocomiseração e sentimentalismo, com sua precisão milimétrica, pode ser apreendida com o máximo de objetividade.
O poeta Ióssif Bródski, perseguido pelo comunismo dos justiceiros — que o condenou por “parasitismo” (poetas, na visão administrativa, “não” são muito produtivos) —, deu sábia contribuição à fortuna crítica de “O Arquipélago Gulag”: “Se o poder soviético não tinha o seu Homero, obteve-o na pessoa de Soljenítsin… Talvez dentro de dois mil anos a leitura do ‘Gulag’ proporcione o mesmo prazer que a leitura da ‘Ilíada’ proporciona hoje. Mas se não se ler o ‘Gulag’ hoje, pode acontecer que muito antes de dois mil anos não haja ninguém para ler nenhum dos dois livros”.
O que Anne Applebaum escreveu sobre seu próprio livro serve para o romance de Soljenítsin: “Este livro não foi escrito para que ‘a história não se repita’, como diz um velho clichê. Este livro foi escrito porque é quase certo que a história se repetirá. (…) A destruição do ‘inimigo impessoal’, como Hannah Arendt disse certa vez, continua sendo um objetivo fundamental de muitas ditaduras. Precisamos saber por quê — e todas as histórias, todas as memórias, todos os documentos da história do Gulag são uma parte do quebra-cabeça, uma parte da explicação. Sem eles, vamos acordar um dia e perceber que não sabemos quem somos”.
“O Arquipélago Gulag” foi publicado originalmente em três tomos — o que afugenta parte dos leitores. Por isso o professor Edward Erikson, depois de insistir, conseguiu convencer Soljenítsin a publicar, num único volume, uma versão abreviada. O escritor disse a Soljenítsina: “Que fazer? Se não o conseguem ler completo, pois que leiam esse”. Na Rússia, queria publicar a versão completa. Mas mesmo lá saiu uma edição enxuta.
Por que, se tantos morreram, Soljenítsin sobreviveu? Possivelmente porque, instruído, foi incumbido de atividades mais leves, administrativas. Sob o pseudônimo de Vetrov — “essas seis letras estão gravadas em vergonhosos sulcos na minha memória” —, tornou-se informante das autoridades do campo de concentração. Havia sido encarregado de delatar criminosos. “Por sua própria iniciativa, Soljenítsin nunca chegou a delatar. De uma sinceridade rara, nunca deixou de admitir que havia sido, durante certo tempo, um “prisioneiro de confiança” — como Evgeniya Ginzburg, Liev Razgon e Varlam Shalámov. O certo é que, não fosse assim, o leitor não teria, além de “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”, a poderosa denúncia de “O Arquipélago Gulag”, que permitiu que os historiadores pudessem explicar, de maneira mais precisa, a história dos campos de concentração soviéticos — que, sim, influenciaram os campos do nazista Adolf Hitler, tanto na Alemanha quanto na Polônia.
Obra basilar sobre o Gulag
Os campos de concentração e extermínio da Alemanha de Hitler são bem conhecidos, com obras sendo publicadas com frequência, como “O Holocausto — Uma Nova História”, de Laurence Rees, recém-lançado no Brasil. Mas os campos de concentração de Stálin e aliados são menos analisados e, sobretudo, menos execrados (os comunistas, quiçá por falar no bem da humanidade e sobretudo defenderem a igualdade social, têm seus crimes brutais “perdoados”). Em português, o livro mais abrangente e documentado é “Gulag — Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos”, de Anne Applebaum. A obra deu-lhe o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção de 2004. A pesquisadora narra que “há até mesmo histórias de que a polícia secreta soviética usou gás de escapamento (uma forma primitiva de gás venenoso) para matar prisioneiros, da mesma forma que os nazistas fizeram no começo”.
Num apêndice, Anne Applebaum tenta quantificar quantas pessoas passaram pelo Gulag e quantas lá morreram. Não há dados precisos. Por isso é preciso, a partir do que se tem, supor. Estima-se, anota a historiadora e jornalista, “que 18 milhões de cidadãos soviéticos passaram pelos campos e pelas colônias entre 1929 e 1953”. Mas tais números “são enganosos”, pois “nem todas as pessoas condenadas ao trabalho forçado na União Soviética cumpriam a sentença num campo de concentração dirigido pelo Gulag”. O dado exclui “as muitas centenas de milhares de pessoas que foram condenadas ao ‘trabalho forçado sem prisão’ por infrações no local de trabalho” e “existiam pelo menos três outras categorias de presos destinados ao trabalho forçado: os prisioneiros de guerra, os habitantes dos campos de triagem no pós-guerra e, acima de todos, os ‘degredados especiais’: os kulaks deportados durante a coletivização, os poloneses, os bálticos e outros deportados depois de 1939, e os caucasianos, os tártaros, os alemães do Volga e outras pessoas deportadas durante a guerra”.
O número de prisioneiros de guerra superava 4 milhões, sublinha Anne Applebaum. Mais de 420 mil foram investigados nos campos de filtragem. Aos menos 2,1 milhões de kulaks foram degredados “no início da década de 1930. Os kulaks e outros degregados somam — de 1930 a 1948 — 6 milhões. “Somando todos os resultados, o total de pessoas que realizaram trabalhos forçados na URSS chega a 28,7 milhões”, afiança Anne Applebaum.
Sobre o número de mortes, sublinha Anne Applebaum, “até hoje” (o livro é de 2003) “não apareceu nenhuma estatística satisfatória para o Gulag ou para o sistema de degredo. (…) Os autores do ‘Livro Negro do Comunismo’ falam em 20 milhões de mortes. Outros citam cerca de 10 ou 12 milhões”. A historiadora ressalva que, “na maioria das vezes, a polícia secreta não utilizou os campos para matar as pessoas. Quando queria matar, ela realizava execuções em massa nas florestas; certamente, essas também são vítimas da justiça soviética, e são muitas”. Não se registra a morte de familiares, que ficaram sem assistências de seus provedores. E muitos morreram de fome. “Nenhum número é capaz de retratar o impacto cumulativo da repressão stalinista na vida e na saúde de todas as famílias. (…) No final, estatística alguma poderá jamais descrever completamente o que aconteceu.”
“Os Escombros e o Mito — A Cultura e o Fim da União Soviética” (Companhia das Letras, 312 páginas), o extraordinário livro de Boris Schnaiderman, é uma espécie de “O Arquipélago Gulag” da cultura. Sob o regime comunista, originais foram confiscados, escritores guardavam textos mais críticos e, eventualmente, publicavam textos mais leves. O autor conta a história dolorosa de escritores que foram duramente perseguidos e, até, assassinados pelo stalinismo.
Leia trechos da nova tradução de “O Arquipélago Gulag”
1
“Na detenção do maquinista do caminho de ferro Inóchin, havia num quarto um pequeno caixão com uma criança que acabara de morrer. Os homens da lei retiraram a criança do caixão, e também ali revistaram. (…) Buscam o que ninguém lá pôs.” (Página 35)
2
“A pessoa que não está interiormente preparada para a violência é sempre mais fraca do que quem pratica a violência.” (Página 38)
3
“Korolenko escreveu a Górki em 29.6.1921: ‘A história há de notar algum dia que a revolução bolchevique reprimiu os mencheviques e os socialistas-revolucionários com os mesmos meios que o regime czarista’. Oh, se fosse só isso! — todos eles teriam sobrevivido.” (Página 50)
4
“Na verdade, considerava-se que as prendiam [mulheres religiosas] não propriamente pela sua fé, mas por proferirem em voz alta as suas convicções e pela educação dos filhos nesse espírito. Como escreveu Tânia Khodkevitch: ‘Podes livremente rezar,/Mas… só Deus pode escutar’. (Por estes versos apanhou dez anos.)” (Página 51)
5
“Algumas dezenas de jovens juntam-se nuns serões musicais sem a concordância da GPU. Ouvem música, depois bebem chá. Para pagar o chá, reúnem as contribuições voluntárias de alguns copeques cada um. É perfeitamente claro que essa música é a cobertura para o seu espírito contrarrevolucionário e o dinheiro é reunido não para o chá, mas para ajudar a burguesia mundial agonizante. E detiveram-nos a todos, deram-lhes penas de três a dez anos (Anna Skripnikova apanhou cinco anos), e aos instigadores que não confessaram (Ivan Nikoláevitch Varentsov e outros), fuzilaram-nos!” (Página 53)
6
“Uma conferência distrital (na região de Moscou) da organização do partido. Dirige-a o novo secretário do comitê distrital, em substituição daquele que foi recentemente detido. No final da conferência adota-se uma mensagem de fidelidade ao camarada Stálin. É claro, todos se levantam (como durante a conferência todos se levantavam de um salto de cada vez que o nome dele era referido). Na pequena sala eclode ‘uma tempestade de aplausos, que se transforma em ovação’. Três minutos, quatro minutos, cinco minutos, os aplausos continuam tempestuosos e a transformar-se em ovação. Mas já doem as palmas das mãos. Já os braços levantados entorpecem. Já as pessoas de mais idade começam a ofegar. E já isto começa a tornar-se insuportavelmente estúpido até para aqueles que sinceramente adoram Stálin. Contudo: quem se atreve a ser o primeiro a interromper? Porque aqui, na sala, estão também a aplaudir de pé alguns membros da NKVD, e espreitam a ver quem será o primeiro que se atreve a parar!… E os aplausos na pequena sala desconhecida, ignorada pelo chefe, prolongam-se por seis minutos, sete minutos, oito minutos!… Eles sucumbem! Estão perdidos! Já não conseguem parar, enquanto não caírem de coração rebentado! O diretor de uma fábrica de papel local, homem sólido e independente, está na presidência e aplaude! — nono minuto! Décimo minuto! Olha com tristeza para o secretário do comitê distrital, mas este não se atreve a parar. Loucura geral! E o diretor da fábrica de papel, ao 11º minuto, assume o ar de homem prático e senta-se no seu lugar à mesa da presidência. E então — ó milagre! — onde foi parar o irresistível e indescritível entusiasmo geral? Todos pararam no mesmo aplauso e se sentaram ao mesmo tempo. Estavam salvos!
“Contudo, é precisamente assim que se descobrem os espíritos independentes. E é assim que os extirpam. Nessa mesma noite o diretor da fábrica foi detido. Facilmente acham outro motivo para lhe aplicar dez anos [de prisão]. Mas depois da assinatura do 206º (conclusão das investigações), o instrutor do processo lembra-lhe:
“— E nunca seja o primeiro a parar de aplaudir!” (Páginas 58 e 59)