Philip Roth mostra, em “Casei com um Comunista”, que a literatura ilumina a história
17 abril 2022 às 00h00
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O romance do escritor americano revela que, com uma linguagem refinada, a literatura pode funcionar como uma história paralela e esclarecedora
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Para o bom entendimento do livro, façamos um breve comentário a respeito do que representou o macarthismo na vida política dos Estados Unidos da América. Nessa época, ocorreram intensas repressões e perseguições políticas às pessoas adeptas do credo comunista.
O interessante no macarthismo é que os denuncismos — sem provas ou não — já era o suficiente para provocar consideráveis danos à reputação do acusado. Isso ocorreu com o principal personagem do romance — Ira Ringold. Este, um militante comunista, envolveu-se num casamento com uma atriz decadente Eve, completamente dominada pela filha única, Sylphid. A relação conflituosa entre Eve e Ringold resultou na separação do casal. A vingança da esposa abandonada e da filha dominadora não poderia trazer mais constrangimentos na vida do militante comunista, Ira, nos tempos de caça às bruxas. Ou seja, o livro “Casei Com Um Comunista” expõe, diante do público e das autoridades, a vida do, então, astro do rádio Ira Ringold.
Nesse sentido, entende-se melhor a paranoia da sociedade, em torno do comunismo, aqueles leitores que relacionam essa anomalia como resultante do clima criado pelo macarthismo na sociedade americana. Estabelecida essa sucinta descrição, aponto, a seguir, alguns aspectos que expressam meu olhar pessoal sobre a obra de Philip Roth.
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Pontos altos do romance
Um dos pontos mais relevantes desse romance centra-se, a meu juízo, no debate em torno da desigualdade. A maneira com que o autor instiga esse tipo de debate entre seus personagens faz-me lembrar do clímax do romance “Os Irmãos Karamázov”, do russo Fiódor Dostoiévski, especificamente, no quesito “o grande Inquisidor”, em cujo contexto Jesus Cristo desce à Terra e é preso por ordem do Cardeal. O debate entre o Messias e o Cardeal transcende para ideias maiores em torno da natureza humana, da liberdade e do poder político religioso.
“A Montanha Mágica”, do alemão Thomas Mann, é outro romance em que o debate entre os personagens eleva a obra ao patamar da universalidade. Isso ocorre entre dois internos, com tuberculose, no sanatório de Davos.
Nesse livro, o humanista italiano Settembrini, partidário de ideias iluministas, confronta-se com o jesuíta Napha — avesso à democracia que, segundo ele, seria substituída por socialismo teocrático, sob a liderança da igreja.
Na obra, “Casei Com Um Comunista”, o diálogo entre o cético professor Leo Glucksmam, que detesta tanto a literatura quanto a arte panfletária, e Nathan (alter ego do autor), consolida esse livro, ao mesmo tempo, como soberbo e belo. Posto isso, creio ser oportuno transcrever um pequeno trecho deste grande romance, em cujo contexto o mestre distingue o militante do escritor:
“O militante apresenta uma grande crença que vai mudar o mundo, e o artista apresenta um produto que não tem lugar nesse mundo. É inútil. O artista, o escritor sério, traz ao mundo algo que desde o início nem mesmo estava lá. Quando Deus criou todo esse troço em sete dias, os pássaros, os rios, os seres humanos, não teve nem dez minutos para a literatura.”
Outro ponto de relevante importância, nos escritos de Philip Roth, é evidenciado nos dois últimos capítulos desse livro. Neles, o autor, numa narrativa direta e empolgante, desnuda os sentimentos de vingança de mulher abandonada, movidos por ações dominadas pela emoção. Há de se ressaltar, também, a dimensão pública, que se tornou um escândalo, o qual era para se manter em um ambiente doméstico.
Certamente, o que, de fato, importa não é o escândalo em si, mas o uso político que dele se fez. Os verdadeiros interessados, Os Grant, os reais manipuladores das ações de Eve, tinham pretensões políticas, como bem diz o autor: “Os Grant inventaram tudo aquilo para Bryden abrir caminho rumo ao Congresso, apoiado na questão do comunismo nos meios de comunicação”.
Realmente, aniquilar Ira Ringold, só foi possível pelo clima de caça às bruxas, proporcionado não só pelo macarthismo, como também pelas incertezas da “Guerra Fria”.
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O perfil psicológico de Ira Ringold
O modo como o autor vai construindo a história de vida do personagem principal do romance e a futura conversão dele ao ideário comunista explica o quanto a mente de Ira Ringold estava preparada para a decisão que ele tomaria.
Reproduzo um trecho dessa construção psicológica, que convence, absolutamente, os leitores:
“Os anos de juventude de Ira foram uma série de ligações rompidas: família cruel, frustração na escola, mergulho de cabeça na Depressão — uma orfandade prematura que hipnotizava a imaginação de um menino como eu, tão fixado numa família, num lugar e em suas instituições, um menino que mal saíra da incubadeira emocional; uma orfandade prematura que liberava Ira para se ligar ao que bem entendesse mas que também o deixava tão livre de laços que podia se entregar a qualquer coisa de cara, se entregar completamente e para sempre.” Estava tudo pronto, só faltava o doutrinador. Ele apareceu no momento em que Ira foi enviado para guerra no distante Irã. Lá sem estar no front de batalha apareceu Johnny O’Day, o homem certo na hora certa dispôs do tempo necessário para converter o jovem Ira ao credo comunista”.
À guisa de esclarecimento, creio que seja oportuna avaliarmos o fato, predominante, que levou à conversão do personagem imaginado por Philip Roth ao comunismo e, por outro lado, a corajosa decisão de ruptura com as esquerdas, que teve um genial escritor peruano com o regime de Fidel Castro. Falo de Mario Vargas Llosa (num mundo literário, predominantemente, esquerdista, a ruptura de Vargas Llosa com as esquerdas adiou uma espera dele de mais de duas décadas para receber o que lhe era, devidamente, merecido: o Prêmio Nobel de Literatura). Em síntese: a conversão de Ira Ringold ocorreu por uma espécie de catequese do psicológico desse personagem, enquanto a ruptura de Vargas Llosa pode ser atribuída à força de seu extraordinário intelecto.
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Injustiçado pelo Prêmio Nobel de Literatura
Li “Casei Com Um Comunista” já tendo conhecido inúmeros países outrora embevecidos por essa ideologia. Desde os integrantes da antiga “Cortina de Ferro” até a Cuba de Fidel Castro Em todos esses países, a elevação da produtividade contrapõe-se à utopia de uma sociedade solidária, repleta de gente educada, sem ter mercado profissional que a absorva.
Do ponto de vista ideológico, mantenho minha crença não no keynesianismo às avessas que hoje se pratica no Brasil. O verdadeiro Keynes, de minha crença, é aquele dos anos 1930 em que se justifica a entrada do Estado para atender à demanda efetiva e não sobre investimentos, que nada se relaciona ao que disse Keynes, quando concebeu um caminho que salvou o capitalismo.
Dizem que um clássico, enquanto clássico, deve ser sempre revisitado. “Casei Com Um Comunista” é um livro assim, uma obra a nos ensinar que o militante professa sua crença, sem ser um cidadão. Nesse contexto, “o exército de reserva de mão de obra” carrega uma raiva unidirecional, desconsiderando outras faces da realidade. Desse modo, a relação amigo-inimigo empobrece a política. Essa deve, necessariamente, ser um importante instrumento de autotransformação do indivíduo. Ser um militante não é ser cidadão.
Em “Casei Com Um Comunista”, o militante Ira Ringold mantém-se inflexível, mesmo tendo conquistado os confortos oriundos de seu sucesso profissional. Confrontou uma elite, com sua truculência de militante, e dela recebeu o troco de quem ele menos esperava: da esposa. Ela, manipulada por terceiros e movida pelo ódio, escreveu (escreveram por ela) um livro resultante de intrigas e de difamações sobre Ira Ringold. Um escândalo desses, no esplendor da Guerra Fria e do macarthismo, destruiu a carreira do militante Ira Ringold.
A meu juízo, “Casei Com Um Comunista” é, ao lado de “Pastoral Americana”, as duas maiores estrelas de uma constelação, que fizeram de Phillip Roth o maior escritor norte-americano do pós-guerra (claro que o autor de “O Complexo de Portnoy” e “O Teatro de Sabbath” citaria Saul Bellow como um de seus mestres). Marcel Proust, James Joyce, Philip Roth, Carlos Drummond de Andrade e o grande escritor argentino Jorge Luis Borges constituíram-se nas maiores injustiças cometidas pela Academia Sueca, responsável pela escolha dos laureados. Uma Academia que premiou, com um Nobel de Literatura, o cantor e compositor Bob Dylan e esqueceu-se de Philip Roth. Agindo assim, a Academia Sueca viu-se diminuída aos olhos da crítica mundial.
“Casei com um Comunista”, ao iluminar a história dos Estados Unidos, ilumina também a do mundo. Não pode ficar de lado uma menção sobre a linguagem altamente refinada de Philip Roth, que viveu para escrever, e sempre muito bem.
Salatiel Soares Correia, mestre pela Unicamp, é colaborador do Jornal Opção.