O cientista Fernando Abrucio, da Fundação Getúlio Vargas, receia o caráter autocrático do presidente Jair Bolsonaro

O cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, concedeu uma entrevista à repórter Beatriz Bulla, do “Estadão”, na quinta-feira, 28, que merece registro.

Abrucio postula que, ao confrontar o Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro arma dois jogos estratégicos. Primeiro, o eleitoral. O presidente está oferecendo uma “resposta” aos eleitores populistas de “extrema direita” e confundindo “o resto da opinião pública”. O STF estaria “atrapalhando” o governo.

Fernando Abrucio: cientista político | Foto: Divulgação

Segundo, a questão do poder. “O projeto de Bolsonaro é transformar o Brasil em uma Hungria. É um processo de ‘orbanização’ [Viktor Orbán é presidente da Hungria]. Significa, primeiro, criar uma eleição na qual ele só pode ganhar. Segundo, após a eleição, se eleito, reduzir ainda mais os controles democráticos. O projeto estratégico dele é ganhar a eleição, escolher mais dois ministros e fazer o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Com isso, ele indicaria seis dos 11 ministros do Supremo”. Tal projeto está implícito ou explícito? Pelo que diz Abrucio, é explícito. Há a questão de que Bolsonaro não “formula”, do ponto de vista público, seu projeto. Mas vai “empurrando-o”. Se deu certo, deu; se não, recua, e faz composição política.

Ao conceder perdão ao deputado federal Daniel Silveira, da linha mais brucutu do que ideológica — é provável que não saiba diferenciar as ideias de Keynes das de Hayek —, Bolsonaro estaria usando o parlamentar mais para “afrontar” o Supremo? Por que o STF está demorando a reagir? Abrucio frisa que a maioria dos ministros não quer “cair na estratégia eleitoral” do presidente.

Para se defender, o Supremo precisa de anteparo político, sugere Abrucio. “Os ministros sabem qual é o limite do poder deles. O limite provavelmente é a retirada dos direitos políticos de Daniel Silveira.”

Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes: ministros que estão na mira de Bolsonaro | Foto: Reprodução

Abrucio admite que o Supremo “exagerou” ao condenar Daniel Silveira a quase nove anos de prisão. “O melhor voto foi o do ministro André Mendonça [por sinal, tido como bolsonarista]: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão. Os ministros sabem que há uma estratégia, a questão é saber como reagir.”

De alguma maneira, a pena alta “serviu”, paradoxalmente, a Bolsonaro. Por intermédio de um peão do jogo, Daniel Silveira, “pôs” na sua mão a arma do indulto.

De acordo com Abrucio, o Congresso deveria apoiar o Supremo. Porém, o bolsonarismo “ficou muito forte com a compra do Congresso via orçamento secreto”. O orçamento secreto repassou a deputados e senadores 30 bilhões de reais. Bolsonaro “comprou metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado”. Há políticos em Goiás distribuindo tratores e patrois até em cidades que não estão precisando deles. Trata-se do dinheiro farto do orçamento secreto.

Steve Bannon e Bolsonaro: projeto autoritário em curso | Foto: Reprodução

“O Congresso, em boa parte, está dominado, com algum foco de resistência no Senado. O Ministério Público Federal está praticamente dominado. Polícia Federal, dominada. CGU, dominada. O que sobra? O Supremo e os Estados” (alguns governadores), sublinha Abrucio. O cientista político diz que, se for eleito, Bolsonaro adotará uma política de desgastar aqueles governadores que lhe apoiaram na eleição deste ano. O pesquisador indica que o desgaste de João Doria (PSDB), que fez um governo positivo em São Paulo, tem a ver com a campanha feita contra ele pelo bolsonarismo.

Segundo Abrucio, Bolsonaro tem planos “A” e “B”. “Se ele perder a eleição, o discurso de que a eleição foi roubada vai mobilizar uma parte importante do eleitorado. Se ele mobiliza uma grande parte da população, com pessoas cada vez mais armadas, cria-se uma situação que torna muito difícil a posse, pode gerar uma confusão.”

O que pode “salvar” o Brasil? Abrucio assinala que o “salvador” não será o Supremo, e sim “a geopolítica internacional”. “A esquerda talvez precise dos Estados Unidos para assumir a Presidência da República no Brasil, porque nos Estados Unidos circula o comentário de que não se pode ter uma nova Venezuela na América.” Com tantas preocupações mundo afora, como na Rússia, em guerra contra a Ucrânia, e uma batalha econômica e tecnológica para não ser superado pela China, o governo de Joe Biden iria interferir numa crise brasileira? Provavelmente, não. Abrucio parece otimista. O mais provável seria uma condenação pública, na possibilidade de golpe eleitoral, mas não uma intervenção. A reação de Biden contra Vladimir Putin é dura, decerto, sobretudo na questão financeira. Mas a Rússia permanece atacando o território da Ucrânia, destruindo o país, matando seu povo. Palavras, assim como o bloqueio econômico dos recursos financeiros de russos no exterior, não contribuíram para Putin recuar, ao menos por enquanto. Portanto, reação a uma tentativa de golpe deve ser interna, e não externa.

Abrucio diz acreditar que o vencedor — Lula da Silva, do PT, ou Bolsonaro, ou outro — assumirá a Presidência. “Bolsonaro está disposto a negociar esse custo político e social. Essa é uma eleição completamente atípica, mais parecida com uma guerra. Talvez, se perder, ele terá de fazer um armistício, para salvar a si e os seus próximos.”

O que faltou à entrevista? Um exame do que é ou do que parece ser o projeto de Lula da Silva, se for eleito presidente. Há, por exemplo, a questão da regulação da imprensa. O petista-chefe tem moderado o discurso, mas, em essência, a ideia é a mesma. Como se comportará o petista em relação ao Judiciário e ao Ministério Público? Ideias autoritárias não são típicas tão-somente da direita.