Machucado, Pelé não brilha na Copa de 1962 e a seleção fracassa na de 1966

Para a Copa do Mundo de 1962, no Chile, Aymoré Moreira era o técnico da seleção e convocou Gilmar, Djalma Santos, Nilton Santos, Didi, Garrincha, Zito, Zagallo, Vavá, Mauro e Coutinho e Pelé. De novo, Paulo Machado de Carvalho era o chefe da delegação.

Devido ao excesso de jogos, Pelé sofreu um estiramento na virilha. Ele sentia pontadas no músculo adutor.

No primeiro jogo, contra o México, Zagallo e Pelé marcaram os gols. “Foi um gol que gostei muito de fazer, driblando quatro zagueiros na corrida antes de bater o grande goleiro mexicano, Carbajal, com um chute forte.”

Pelé sai machucado; a sorte é que o Brasil tinha Garrincha | Foto: Reprodução

Com medo de ir para o banco, Pelé escondeu a lesão, sugerindo que estava bem. No jogo contra a Tchecoslováquia, a contusão agravou-se. “Naquela época não era permitido fazer substituições. Rilhei os dentes e disse ao massagista que me sentia bem para continuar jogando, embora me sentisse tudo menos bem.” Os “jogadores tchecos preferiram me neutralizar com delicadeza. Quando Masopust e Popluhar me viam com a bola, esperavam até que eu concluísse a jogada, desde que, é claro, eu não representasse uma ameaça. (…) Foi a primeira distensão grave da minha carreira”, conta Pelé.

Garrincha disse a Pelé, então com 21 anos: “Você não vai me abandonar, vai? Você vai superar isso, vai jogar de novo logo, logo”. Ele foi substituído por Amarildo. Contra a Inglaterra, na vitória do Brasil por 3 a 1, Garrincha estraçalhou o time da “Pérfida Albion”

“Garrincha foi o dono daquela Copa do Mundo de 1962”, sublinha Pelé. Contra o Chile, marcou dois gols. Vavá fez mais dois.

Pelé acreditou que poderia jogar a final, contra a Tchecoslováquia, mas não pôde. O Brasil venceu por 3 a 1 e foi campeão. Amarildo, o substituo de Pelé, fez uma grande copa. Pelé admitiu que ficou preocupado em perder o título de “Rei”.

Recuperado, Pelé jogou a Libertadores, fez gols e o Santos foi campeão, derrotando o Peñarol, do Uruguai. “Éramos o primeiro clube brasileiro a levantar aquele troféu.”

Pelé e Eusébio: Benfica foi goleado

A vitória na Libertadores colocou o Santos na disputa contra o Benfica, do “ótimo Eusébio, na Copa Intercontinental de Clubes. Em Lisboa, Pelé fez quatro gols e deu o passe para Coutinho marcar o terceiro. O time brasileiro ganhou por 5 a 2 e sagrou-se campeão do mundo. Um dos gols, afirma Pelé, “foi uma delícia. Driblei cinco jogadores e chutei no ângulo direito. Até os torcedores do Benfica aplaudiram”. Era como se a Corte brasileira houvesse chegado, com seu rei, dom Pelé, em Portugal.

Em 1963, o Santos continuou brilhando por todo o mundo — foram 50 partidas no exterior. Pelé era marcadíssimo. “Lembro-me de momentos em que precisei sair de campo para amarrar as chuteiras e, enquanto estava agachado, um zagueiro não desgrudava de mim, mãos na cintura, supervisionando tudo.”

Por que o futebol brasileiro fazia tanto sucesso? “Em geral, os jogadores brasileiros baseavam seu jogo no domínio de bola, nos toques sutis, na troca de passes rumo ao ataque, um estilo agressivo que era ao mesmo tempo eficiente e bonito de ver”, registra Pelé.

Na disputa pela Libertadores de 1963, contra o Boca Juniors, da Argentina, os jogadores do Santos eram chamados pelos torcedores de “Macaquitos do Brasil”. Pelé diz que “nunca” se sentiu “incomodado de verdade com esses gritos de guerra racistas”. Gols e vitórias eram suas respostas.

Os argentinos bateram tanto em Pelé que chegaram a rasgar seu calção. Na época, não existia cartão vermelho. O Boca fez o primeiro gol e Coutinho empatou pelo Santos. O Rei fez o gol da vitória. “O Santos era campeão sul-americano de novo.”

O Milan era o adversário pelo título mundial. Em Milão, o Santos perdeu por 4 a 2, com dois gols de Pelé. No jogo de volta, no Maracanã, o Santos ganhou por 4 a 2 e derrotou o time italiano por 1 a 0 na prorrogação. Pelé não jogou. “Assim como o Brasil, o Santos também era duas vezes campeão mundial.”

A contratação de Júlio Mazzei, para cuidar da preparação física dos jogadores, foi, na opinião de Pelé, um avanço. O Santos ficou ainda mais forte.

Pelé e Rosemeri Cholbi: casamento, em 1966

Em 1966, Pelé se casa com Rosemeri Cholbi, depois de um namoro de sete anos. “Fiquei profundamente ofendido com alguns artigos expressando desaprovação ao fato de que, um homem negro, me casar com uma mulher branca. A questão de raça nunca foi um problema entre eu e Rose — éramos apenas duas pessoas que se amavam.”

Se o amor ia bem, a economia ia mal. Os negócios com o mui amigo Pepe Gordo deram com os burros n’água. Pelé ficou endividado. E teve de renegociar seus ganhos com o Santos. Mesmo sendo o atleta mais famoso do time, não tinha o maior salário.

O fracasso da seleção de 1966: faltou unidade

A seleção brasileira de 1966 era ruim? Como foi mal na Copa da Inglaterra, deixou tal impressão. A explicação do “analista” Pelé: “A nossa preparação não foi planejada com a mesma humildade de 1958 e 1962. Começamos a perder o título antes mesmo de embarcar para a” terra da rainha Elizabeth. Feola voltou a ser o técnico, mas sem a autoridade de 1958.

Pelé se machucou na derrota para Portugal, em 1966 | Foto: Reprodução

Pelé diz que não se tem como substituir, de uma hora para outra, craques como Didi, Garrincha, Gilmar, Mauro e Nilton Santos. “O processo de seleção acabou sendo uma piada, com jogadores demais na lista dos que começariam o treinamento — eram mais de 40 nomes, e metade deles acabaria não viajando à Europa. (…) O número excessivo de jogadores, a divisão do time em quatro equipes e o excesso de confiança geral — tudo junto se mostrou fatal para as nossas chances. (…) Deixamos o Brasil sem um time principal, e não havia nada que unisse o grupo. (…) O condicionamento [físico] foi todo errado e a seleção não foi preparada como deveria. (…) O mesmo time jamais jogou junto duas vezes.”

Na terra de Shakespeare, os Beatles tentaram fazer um show em homenagem à seleção brasileira. Pelé gostou da ideia, mas os dirigentes disseram “não”. John Lennon, de acordo com Pelé, “adorava futebol” e “admirava o Brasil”.

No primeiro jogo, contra a Bulgária, Pelé e Garrincha — “que não estava na sua melhor forma” — marcaram gols, e o Brasil venceu por 2 a 0. “Essa partida foi a última em que Garrincha e eu jogamos juntos. (…) Nós tínhamos bons jogadores, mas nos faltava unidade, algo fundamental no futebol.”

Na partida seguinte, o técnico sacou Pelé, supostamente para protegê-lo das botinadas dos zagueiros, e a seleção perdeu por 3 a 1 para a Hungria.

O Brasil perdeu para Portugal por 3 a 1 e ficou fora da Copa. Eusébio comandou a festa. “Jogamos como novatos, e tudo porque tivemos uma péssima preparação. Machuquei” um “joelho no primeiro tempo, mas ainda não eram permitidas substituições e continuei em campo. No entanto, o aspecto físico não explica a nossa derrota. Nós fracassamos, só isso.”

Desapontado, Pelé declarou “que não voltaria a disputar uma Copa do Mundo”. Seria um jogador tão-somente do Santos.

Se Pelé era o Rei dentro de campo, sua conta bancária era farta? “Ganhei muito dinheiro a minha vida inteira, mas a verdade é que nunca aprendi a fazê-lo render como algumas pessoas fazem. Eu era bom no futebol, mas não nos negócios.”

Kelly Cristina, a primeira filha de Pelé, nasceu em 1967. “A paternidade foi uma revelação para mim.”

Pelé e sua avó, Ambrosina, filha de escravos, em Bauru, em 1966 | Foto: AE

Naquele ano, o Santos excursionou pela África — no Senegal, Gabão, Congo e Costa do Marfim. “Todo mundo na África queria nos ver, nos tocar. (…) Sendo um negro de origem brasileira, descendo de africanos trazidos ao país como escravos. A escravidão não está muito distante no passado — sou apenas da terceira geração que nasceu livre na minha família. Minha avó Ambrosina, que morreu aos 97 anos, em 1976, foi da primeira geração — os pais dela eram escravos. Jornalistas tentaram traçar a minha genealogia. Surgiram duas versões: uma dizia que meus ancestrais tinham vindo de Angola; a outra, que eram originários da Nigéria. Aparentemente, Nascimento era o nome do proprietário da fazenda onde trabalhava o primeiro dos meus ancestrais a chegar ao Brasil”.

No Senegal, Pelé fez um gol e o goleiro começou a chorar e teve de ser substituído. O goleiro havia apostado com os amigos: “Esse Pelé se acha o máximo. Aposto com vocês que não vai conseguir marcar gol em mim. Qualquer outro jogador do Santos, tudo bem, mas ele não.”

O Santos estava numa fase extraordinária, vencendo todos, goleando. “Acho que 1968 foi, provavelmente, o melhor ano para o clube. Vencemos todas as cinco competições importantes de que participamos, levantando títulos no Chile, na Argentina, o Sul-Americano de Interclubes, no Brasil, e mais: jogamos em seis países, com um aproveitamento que não ficava atrás de ninguém. (…) O Santos era o maior time do mundo. (…) Era só entrarmos no campo que o público se curvava em sinal de respeito.” O futebol do time era, além de bonito, eficiente.

Torcida expulsou árbitro colombiano que puniu Pelé

Finalmente, Pelé se tornou o jogador mais bem pago do Santos. “De tudo o que o Santos” ganhava “nas viagens, a metade ficava” com o ídolo global.

Auxiliado por Marby Ramundini, Pelé passou a ganhar mais dinheiro com publicidade e chegou a aparecer na telenovela “Os Estranhos”.

Há uma história divertida sobre um jogo do Santos contra a seleção olímpica da Colômbia. O árbitro Guillermo “Chato” Velázquez decidiu não anular um gol ilegal contra o time brasileiro. Pelé, furioso, protestou e foi expulso. “O estádio foi à loucura. (…) Começaram a gritar: ‘Pelé!’, ‘Pelé!’” Os torcedores haviam ido ao estádio para ver o craque patropi jogar. “A única solução foi uma medida sem precedentes: expulsar o próprio Chato. E, com o árbitro expulso, eu pude ser ‘desexpulso’. Fui readmitido no jogo e todo mundo ficou feliz. Menos o Chato.”

Em 1968, Pelé conheceu a rainha Elizabeth II, no Brasil. A majestade disse “que era um prazer me conhecer” e contou que o marido, o príncipe Philip, “era um grande fã meu”.

Na África, em 1969, a Nigéria e Biafra estavam em guerra civil. “Dizem que realmente houve um cessar-fogo de 48 horas por nossa causa.” O Santos empatou em 2 a 2.

O milésimo gol de Pelé, com festa no Maracanã

Pelé marca seu milésimo gol contra o Vasco, cujo goleiro era o argentino Andrada | Foto: Reprodução

Pelé frisa que “estava jogando melhor do que nunca”. Fazia gols a rodo. “No final do verão e no outono de 1969, todas as atenções começaram a se concentrar na minha conquista da marca de mil gols, um feito nunca alcançado antes.”

Num jogo em João Pessoa, capital da Paraíba, contra o Botafogo de lá, Pelé sentiu que estavam facilitando para ele marcar o milésimo gol no Estado. De repente, pênalti. A torcida gritava: “Pelé! Pelé!” O artilheiro bateu e fez o gol de nº 999. A partida estava tão fácil que, fatalmente, o craque do Santos faria mais um gol.

Porém, o goleiro do Santos, Jair Estevão, passou mal (parece ter sido uma armação) e Pelé foi escalado para substitui-lo. “Eu sempre fui o goleiro reserva do Santos [e na seleção]. Passei o resto da partida sob as traves. Não tomei nenhum gol.”

Em Salvador, num jogo do Santos contra o Bahia, Pelé chutou a bola, o goleiro já havia sido vencido…entretanto, um zagueiro impediu o gol. “O estádio inteiro começou a vaiar”, não Pelé, e sim o jogador que não o deixou fazer o milésimo gol.

Em 19 de dezembro de 1969, o Santos jogou contra o Vasco, no Maracanã, o palco ideal para o milésimo gol. Os jogadores vascaínos diziam: “Não vai ser hoje, Crioulo”. O goleiro Andrada, em boa forma, fazia o impossível para Pelé não marcar gol.

Um jogador do Vasco atropelou Pelé, na área, e o árbitro deu pênalti. O Rei decidiu bater. Estava nervoso. Deu uma “paradinha”, enganando Andrada (argentino de Rosário — morreu em 2019, aos 80 anos), e chutou, marcando o milésimo gol. “Corri direto para o fundo da rede, peguei a bola e a beijei. Dediquei o gol às crianças do Brasil.” O Maracanã explodiu em aplausos. O estádio carioca se tornou o Palácio de Buckingham do Rei brasileiro.

[A base deste texto, o terceiro de uma série, é o livro ‘Pelé — A Autobiografia” (Sextante, 299 páginas, tradução de Henrique Amat), de Pelé, com redação de Alex Bellos e Orlando Duarte.]