Pedro Bial tem “experiência” suficiente para escrever biografia de Luiza Trajano, do Magalu?
30 maio 2021 às 00h02
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O jornalista sabe escrever, mas deveria pedir uma consultoria a Jorge Caldeira, autor de biografias do Barão de Mauá e de Júlio Mesquita
Luiza Helena Trajano Inácio Rodrigues, de 72 anos, criou um império comercial no Brasil com o Magazine Luiza e, mais recentemente, com o portal Estante Virtual, que reúne os principais sebos do Brasil. A empresária cogita, inclusive, adquirir uma rede de livrarias — como a Saraiva e a Cultura. Uma delas pode ter salvação nas mãos eficientes da mestre do capitalismo de varejo.
É mais fácil “viajar” para Marte do que ser empresário no Brasil. O Estado escorcha os empresários e trabalhadores com impostos úteis sobretudo para manter uma máquina inchada e dispendiosa. Mas Luiza Trajano não se importa com isto e segue em frente — investindo e gerando empregos e dividendos para os governos. É uma vencedora num mundo tipicamente masculino — o dos bilionários.
Capitalista moderna, o que significa ter preocupações sociais — criou um programa para qualificar pessoas negras para cargos de direção no Magalu (e não apenas como vendedores) e luta para que todos os brasileiros sejam vacinados o mais rapidamente possível —, Luiza Trajano merece uma biografia. O nome ideal para esquadrinhá-la, por entender de economia e ser um pesquisador rigoroso, é o doutor em história Jorge Caldeira — que está preparando um livro sobre o banqueiro e embaixador Walther Moreira Salles, pai dos Moreira Sales que atuam no campo cultural (revista “Piauí”, cinema, poesia) e no setor bancário (Banco Itaú-Unibanco). Dada sua formação jornalística, Caldeira é dono de um texto fluente, ágil e, ao mesmo tempo, denso. Pode-se sugerir, inclusive, que, com novos métodos de pesquisa — que revisitam dados antigos e apontam equívocos de interpretações tradicionais —, está reinventando a história patropi. Há pouco tempo, demonstrou que a República Velha foi um período de prosperidade e que a economia colonial tinha um mercado interno azeitado, ou seja, não era voltado tão-somente para o mercado externo.
Viva e ativa, Luiza Trajano costuma dizer que não tem interesse por biografia e autobiografia. A repórter Maria Fernanda Rodrigues, do “Estadão”, assinala que a empresária sublinha que “sua vida muda muito rapidamente” e, por isso, o livro “poderia ficar” superado em pouco tempo. De fato, tem razão. Porque, inicialmente, a dona do Magalu se fortaleceu como empresária, articulando a acumulação primitiva do capital e, depois, a expansão dos negócios — tornando-os de milionários a bilionários. Em seguida, fortaleceu sua preocupação social, daí a articulação do Grupo Mulheres do Brasil. Pode-se sugerir que, num primeiro momento, pensava quase que exclusivamente em ganhar dinheiro, até para fortalecer o grupo numa economia instável como a patropi. Posteriormente, aguçou sua percepção sobre o Brasil, de suas desigualdades sociais.
Por que a liberal radical se tornou uma liberal social? Consciência de que a tese da meritocracia é uma balela. As pessoas não chegam em igualdades de condições para disputar uma vaga de gerência ou um cargo executivo de primeira linha. Fala inglês? Não. Então está fora. Nem todos os empresários, depois de ganhar muito dinheiro, desenvolvem uma percepção global da sociedade. Mas Luiza Trajano mudou. Claro que continua lutando para obter lucro — essência do empreendimento capitalista —, mas quer partilhar um pouco com os demais brasileiros.
Luiza Trajano quer ser política? Não parece. Recentemente, Lula da Silva (PT) — que, segundo Delfim Netto, economista darling da direita e do centro, tende a ser eleito presidente no primeiro turno — chegou a sondá-la para ser sua vice. Seria, de fato, uma vice extraordinária. Mas a empresária não quis.
Tudo indica que Luiza Trajano não aposta na direita, dados o autoritarismo e a despreocupação do presidente Jair Bolsonaro com a vida das pessoas, nem na esquerda, devido à corrupção e a incapacidade técnica de gerir o país (sobretudo no governo de Dilma Rousseff). O mais provável é que Luiza Trajano queira apoiar um candidato de centro — como Eduardo Leite (PSDB), Tasso Jereissati (PSDB), João Amoêdo (Novo) ou João Doria (PSDB).
A empresária não diz, mas ela mesma poderia ser um nome de centro capaz de unir os principais líderes das oposições. Mas seria uma grande presidente? Não se sabe. Porque a gestão pública, com sua infinidade de leis de contenção e sua subordinação a uma burocracia paralisante, é muito diferente da gestão privada. O ministro da Economia, Paulo Guedes, e Luiza Trajano têm pensamentos semelhantes, porque são da iniciativa privada. Mas o chicago-boy é engessado pela “gula” do Estado — que, em si, às vezes funciona como um país à parte, drenando recursos da sociedade. Mas o Estado é vital como instrumento de redução das desigualdades sociais; portanto, para produzir mais igualdade. Uma mente inteiramente liberal jamais criaria o Sistema Único de Saúde. Sem a estrutura do SUS, provavelmente, no lugar dos 461 mil mortos, já teriam morrido, por causa da pandemia da Covid-19, uns 800 mil brasileiros, ou até mais. Luiza Trajano, se presidente, teria constituído o SUS? Talvez sim, dada sua visão mais social. Mas Paulo Guedes, um expert em cortes de custos, não o teria feito.
O fato é que Luiza Trajano tem uma história positiva e, por isso, há quem a queira como vice ou até candidata a presidente da República. Sua vida realmente merece ser contada, com suas virtudes e defeitos (que se complementam). O que torna uma biografia densa são as nuances, as verdades que, doloridas ou não, têm de ser expostas. As pessoas mais interessantes são aquelas que escapam ao rótulo de quase-perfeitas. O sal da vida é a imperfeição — não a ficção (a ilusão) da perfeição.
O jornalista Pedro Bial — autor de uma biografia chapa-branca de Roberto Marinho (útil, apesar de tudo, para pesquisadores pelo levantamento dos dados basilares) — e sua equipe estão pesquisando a vida de Luiza Trajano. O livro deve ser lançado em novembro deste ano — o que sugere, dada a pressa, que não será uma obra alentada. Mas antes alguma coisa do que nada.
Ao escrever a biografia de Roberto Marinho, que tratou como deus ou semideus, Pedro Bial descuidou-se da história do Brasil. Grandes homens, e o empresário é um deles, influenciam o contexto em que atuam, mas também são filhos dele. Portanto, o jornalista deveria ter explicado de maneira ampla o período histórico em que o dirigente de “O Globo” e criador da TV Globo atuou, moldando-o e sendo moldado por ele. Ao escrever sobre Luiza Trajano, vai precisar, além do exame detido do contexto histórico, estudar economia para explicar como a empresária se tornou vitoriosa num país que se esmera em produzir derrotas e derrotados.
Pedro Bial sabe escrever, obviamente. O que falta é conectar melhor o fato histórico à ação do indivíduo. Mostrar uma grande personagem, como Luiza Trajano — sempre no fio da navalha e com uma espada de Dâmocles sobre a cabeça —, explicitando sua ação para constituir um império, lucrar e, em seguida, pensar também na sociedade, em suas profundas desigualdades e em como reduzi-las, não é uma missão fácil. O jornalista terá de se desdobrar. De preferência, deveria pedir uma consultoria a Jorge Caldeira, que escreveu biografias notáveis do Barão de Mauá e Júlio Mesquita (o empresário que transformou o “Estadão” num grande jornal).
Será uma pena se Pedro Bial estiver preparando tão-somente uma biografia de “oportunidade” sobre a grande empresária e mulher Luiza Trajano. Poderá até agradá-la. Mas o leitor certamente pode ficar com a impressão de que, se foi enaltecida, não foi devidamente explicada. Finalmente, oxalá o jornalista não a transforme no Roberto Marinho chapa-branca do varejo brasileiro. A empreendedora precisa de uma biografia — não de uma hagiografia. O leitor fica na torcida para que, desta vez, o apresentador da TV Globo acerte a mão.