Peça de Renato Lucas cria densa conexão entre poetas como Drummond e Pessoa, mantendo nuances
10 novembro 2016 às 12h22
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Atores amadores, que atuam como verdadeiros profissionais, criam uma unidade profunda entre poetas diferentes. A peça está sendo exibida no Teatro Goiânia
A única coisa que não é boa, exceto para psicanalistas e acadêmicos, na peça “O Significante Reencontro de 5 Poetas”, é o título. Não que o título esteja incorreto e seja pretensioso. O único problema é que, do ponto de vista da comunicação com um público mais amplo, diz quase nada. Não chama a atenção, em suma. Um título mais drummondiano — quem sabe “Fernando Pessoa que amava Drummond que amava Cora Coralina que amava Clarice Lispector que amava Claudia Machado” (problema: muito longo) — talvez fosse mais atraente.
Mas, retirado o problema do título — que, a rigor, não tem importância, exceto em termos de comunicação —, a peça é de uma excelência rara. Raríssima, até. A começar pela direção segura de Renato M. Lucas, responsável pela escolha dos poemas da peça (o diretor, afirmam atores, vale quase a metade de uma peça). Aliás, como sabe quem lida com teatro, peças com poemas são as mais difíceis de serem levadas ao palco. Se os poemas são longos, então, o drummond no meio do caminho é sempre gigante e é preciso de uma memória de elefante não apenas para decorá-los, mas sobretudo para declamá-los de uma maneira mais natural e menos formal.
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Fernando Pessoa & Frederico Rosa
Os atores de “O Significante Reencontro de 5 Poetas” não são profissionais. São todos psicanalistas que também se dedicam à arte da representação. Frederico Rosa, segundo disse Renato Lucas, é estreante no palco. Ele representa Fernando Pessoa, quer dizer, declama suas poesias. Não parece, em nenhum momento, amador e, sobretudo, não parece que subiu à primeira vez no palco — e para declamar a poesia complexa do bardo português. Ouso dizer que Frederico Rosa nasceu para o palco e a psicanálise não sabe.
Fernando Pessoa, na voz e na postura física de Frederico Rosa — que tem nome de poeta, compositor e imperador prussiano —, é um ser múltiplo. Como de fato era o poeta e homem português com seus heterônimos. O homem por vezes busca ser uno, mas é sempre vários homens, carregando dentro de si vários outros indivíduos, não raro os pais, uma tradição familiar e a história de seu tempo. Os valores, diria Nietzsche (ligeiramente adaptado por mim), são nossos, ao serem transformados, mas, no fundo, são de outros, dos quais somos tributários.
Ione Faleiro e Cora Coralina
Ione Faleiro é excepcional na leitura da poesia de Cora Coralina e ao interpretar a própria poeta, sem tentar reproduzir exatamente como ela era. Há mais mimese do que imitação. A poesia de Cora Coralina, que não era uma mera doceira da Casa da Ponte, contém uma certa ironia ferina, até ácida, sobre os costumes de seu tempo. Uma percepção precisa e, ao mesmo tempo, distanciada do comportamento dos indivíduos, uma percepção das filigranas da infância (lembrando, aqui e ali, o livro “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley, que, com sua sensibilidade refinada, Renato Lucas deveria adaptar, ao menos em parte). O que Ione Faleiro tem de atriz amadora? Nada. No palco, transforma-se. Torna-se outra. É uma atriz… sem adjetivos.
Priscilla Borges e Clarice Lispector
O que se vê no palco é uma Priscilla Borges em estado de graça como Clarice Lispector, ou melhor, como uma atriz que declama, conta e quase canta os poemas da escritora — que, vale dizer, era muito mais prosadora, mas, sim, dotada de uma prosa que se pode nominar de poética, de próxima da poesia. Sua atuação é magistral, porque, enquanto sua boca fala, o corpo — que parece de borracha — também diz várias coisas, contaminando positivamente todo o trabalho. A fala sobre o bobo é tão esplendorosa, chama tanto a atenção da plateia, que pode esconder uma atuação global de alta qualidade. Como Ione Faleiro, Priscilla Borges deixa a impressão de ser uma atriz profissional. É provável que, de amadora, não tenha mais nada.
Marina Cançado e Claudia Machado
Como Priscilla Borges, Marina Cançado é um fenômeno. O palco é seu — quando fala e quando anda e dança. Há momentos, nos quais está solando, declamando a poesia de Claudia Machado — belíssima, provocadora, inquiridora —, que toma conta do palco. Sua atuação e o domínio da poesia — há uma incorporação, no sentido de identificação, milimétrica entre a poesia e a mulher que narra — são irrepreensíveis.
Alex Barra faz um Carlos Drummond de Andrade solene, até mais formal do que deveria, retirando-lhe parte do humor, da fina ironia disposta no falar que contradita coisas e seres. Diria que, na sua interpretação, o vate mineiro fica menos modernista. O que se está dizendo é que Alex Barra interpreta mal? De maneira alguma. Drummond não é um poeta fácil de ser interpretado, porque é menos palavroso do que, por exemplo, Fernando Pessoa — suas imagens às vezes são mais sutis do que as do barbo português. O ator, que lembra expressionistas alemães, narra sua poesia de maneira competente, sem engolir as palavras, com as pausas apropriadas. Aos poucos, vai se soltando, e ao final o que se tem é um desempenho de primeira linha na interpretação de um poeta que só é simples na aparência. É tão sofisticado quanto o poeta americano T. S. Eliot.
Segredo da peça
Mas, afinal, qual é o segredo de a peça ser tão bem-sucedida e agradar tanto a plateia que foi ao Teatro Goiânia para vê-la?
Primeiro, o diretor não caiu na facilidade de caricaturizar os poetas e, daí, sua poesia. Os atores são Fernando Pessoa, Drummond, Clarice Lispector, Cora Coralina e Claudia Machado, mas são sobretudo atores que estão interpretando mais suas poesias do que as personas.
Segundo, como são vários poetas, todos modernistas, mas de tempos e escopos diferentes, há a tendência de cada ator solar, mas não é o que acontece. A direção conseguiu uma conexão profunda — em torno de várias discussões poéticas e existenciais (a vida, a morte, a verdade) — entre os poemas, entre os poetas. Pode-se dizer que há uma unidade que preserva a diversidade dos poetas e das poesias. Conseguir que textos diferentes, de épocas diversas, dialoguem entre si, como se fossem complementares, é uma missão muito difícil. Pois Renato Lucas conseguiu uma identidade profunda entre os poemas, sobretudo temática, mas sem eliminar as diferenças.
A rigor, “O Significante Reencontro de 5 Poetas” não é uma peça, mas várias peças, ou, digamos, um sarau integrado. Numa palavra, uma delícia. Um caso de amor e paixão com a palavra, com a fala. Marcos Fayad, um dos mais qualificados diretores de teatro e de atores do país, estava lá, na quarta-feira, 9, e não me deixa mentir. Ele gostou da peça e o disse publicamente.
A peça ainda pode ser vista nesta quinta-feira, às 20 horas, no Teatro Goiânia. Quem perdê-la pode gostar de muita coisa, mas uma coisa é certa: gosta pouco de teatro, do bom teatro.