O jornalista e escritor tinha uma legião de leitores, quase discípulos religiosos, que buscavam informações culturais sobre a “corte” e, também, seu texto provocativo, divertido

Pois é, homem da colônia que se tornou metrópole: quando a “Veja” publicou uma capa informando, sim isto: informando, que Paulo Francis faria falta, você deve ter pensado: exagero. Não era. A revista estava certa. Morto em 1997, o jornalista e escritor faz falta (como meu pai, Raul, meu cachorro Kirilov e Emily Dickinson). Mesmo com o mundo mais integrado, porque a internet o colocou dentro de casa, conectando os indivíduos, bem ou mal, um vulgarizador cultural da qualidade do autor de memórias impagáveis, “O Afeto Que Se Encerra”, faz falta, e como faz — muito. Quando a morte de uma excepcional escritora, como a australiana Shirley Hazzard, deixaria de ser registrada nos jornais patropis, tão entrópicos, senão depois da morte de Paulo Francis… Marcelo Coelho, que a “Folha” inicialmente tentou vender como seu sucessor, é excelente analista, um racionalista, mas falta-lhe a graça e o charme de Paulo Francis. Falta-lhe, numa palavra, alma, ainda que às vezes lhe sobre verbo. Dos sucessores, são tantos, quase todos esquecíveis, o que chegou mais perto, como epígono, foi mesmo Daniel Piza, do “Estadão”, que, infelizmente, morreu cedo. Chutava bem, como Paulo Francis, mas sabia instruir os colonos com as novidades de várias cortes, inclusive da colônia que se tornou, ou está se tornando, metrópole. Cristóvão Tezza e Milton Hatoum foram muito bem divulgados por Daniel Piza.

Paulo Francis, quando a internet não permitia que os colonos tivessem acesso ao que de melhor se publicava nas cortes europeia e americana, aparecia e nos informava, divertindo-nos com suas idiossincrasias assumidas — todos têm, mas escondem-nas por meio de objetividades não objetivas. A escritora Muriel Spark, uma escocesa de gênio, ganhou o Brasil pela pena do jornalista e polemista. Assim como vários outros escritores. Editoras garimpavam seus artigos, em busca de consultoria gratuita e bem informada. Eram minas de diamantes, às vezes não lapidados, mas quase.

Dizer que Paulo Francis era a “New Yorker” dos brasileiros é, sem dúvida, exagero. Mas, como um exagero deste tipo faz tanto mal quanto o suco de abacaxi com capim santo do restaurante Panela Mágica, admito: trata-se de um exagero do bem. Quantos de nós não aprenderam a ler Saul Bellow, Philip Roth, Norman Mailer e John Updike devorando, com fome canina, os artigos de Paulo Francis na “Folha de S. Paulo” (que cometeu o maior erro de sua vida ao permitir que mudasse para o “Estadão”)? Nós, da direita, da esquerda, do centro, de qualquer coisa, postávamo-nos nas proximidades das bancas à espera da “Folha”, sempre quarta-feira (ou quinta, não me lembro bem) e aos sábados. Era uma religião, uma igreja, com um Deus e discípulos, mas sem fanatismo, porque o Deus esculachava tudo, até seus seguidores e devotos.

O “Diário da Corte”, direto de Nova Iorque, e não York, era o catecismo e até bíblia dos leitores de Paulo Francis.

Ah, Paulo Francis era de direita (havia sido de esquerda). Era, quem sabe. Mas, se era, era de uma direita divertida, dotada de um humor corrosivo, contra tudo e contra todos. Era, quiçá, de uma direita anárquica. Pois então: um anarquista conservador. Havia, na juventude, sido trotskista. Uma virtude de trotskista — fora que odeiam porque tinham vontade de amar os stalinistas (ódio demais resulta ao menos de um tiquinho de amor) — é que, ao contrário dos stalinistas, é amigo dos livros, mesmo que sejam apenas uns cinco. Não conheci nenhum stalinista que tenha lido cinco livros. Conheci alguns que haviam lido um livrinho de Stálin que usavam como catecismo ímpio, prontamente decorado. Catecismo de ideias descoradas, de tão pobres.

Hoje, com as redes sociais, há muitas polêmicas, porém quase todas adjetivas, perfunctórias. Mesmo intelectuais trocaram os livros pelas séries, às quais citam de maneira praticamente bibliográfica (diria, até, religiosa), deixando de notar, até, que se trata de ficção, mesmo quando baseada na realidade. A bem da verdade, a única coisa que existe é ficção, quer dizer, interpretação. Mas é preciso ter o mínimo de parâmetro. Os debates das redes sociais não funcionam porque não têm parâmetros e argumentos. Há palavras, palavras, palavras. Quase só isso. Quando há um debate real não há como não lembrar de Paulo Francis, que debatia a sério, mas também sabia bater abaixo da linha de cintura. Paulo Francis dialogava, estava aberto ao debate, mas, se provocado com certa grossura, respondia à altura. O ombudsman da “Folha”, Caio Túlio Costa, foi nos apresentado como tendo cara de lagartixa. E assim ficou. Os dois se acusaram de despreparo intelectual, o que, felizmente, era falso. Paulo Francis era ótimo, Caio Túlio Costa é muito bom, tendo se tornado um acadêmico com um pé no mercado.

Quando aos chutes de Paulo Francis só não chuta quem não escreve, sobretudo não escreve muito. O Paulo Francis que chutava era, e continua sendo, dados os livros com seus artigos que estão sendo publicados, muito mais interessante do que aqueles que não chutavam e não chutam, porque, a rigor, nem escrevem.

Paulo Francis deu certo porque arrancou a carranca do jornalismo, tendo incorporado o modernismo de 1922 com as influências da grande prosa americana — de Henry James passando por Faulkner, Fitzgerald e Hemingway até chegar nos mais recentes, como Saul Bellow e Philip Roth (os que leem Roth não devem deixar de ler Bellow, que é, em parte, sua matriz) — e europeia, via Flaubert, Proust e Joyce, além dos poetas, como T. S. Eliot (americano de dicção europeia).

Desconfio que líamos Francis mais porque era divertido e polêmico, além de altamente informativo — sobretudo no campo cultural —, o que seus críticos às vezes desconsideram, do que em busca de análises profundas e definitivas. Era alta cultura traduzida como média cultura.

A “Veja” estava certa: Paulo Francis faz falta, muita falta. A publicação de seus artigos — há um muito bom sobre George Orwell, no volume recentemente lançado pela editora da “Folha” — revela que, se morreu fisicamente, seus textos estão lhe dando sobrevida. Ele acharia uma tristeza o que se dirá a seguir: seu jornalismo era de primeira linha, contra uma literatura, ainda que interessantíssima, diria Mário de Andrade, de segunda linha. A literatura de ideias que fez, ou tentou fazer, só prova que precisamos retomar, não Paulo Francis, e sim Thomas Mann, Elias Canetti, entre outros, poucos outros, neste campo. Seu jornalismo, pelo contrário, permanece vívido, convocando os leitores para pensar com certa vibração. O seu texto é ativo, provocativo, praticamente militante, uma militância sem partidos e sem caciques.

Como o Brasil ficou mais triste, ou ao menos mais insosso, sem Paulo Francis. Com o fim de o “Pasquim”, ele se tornou o “Pasquim”, com mais liberdade para opinar, sem a necessidade de agradar a esquerda.