Historiadores revelam que os três ou quatro mosqueteiros existiram, podem ter se conhecido, mas possivelmente não lutaram juntos. D’Artagnan era mais velho que seus companheiros de luta

ÍndicePoucos livros são tão divertidos e empolgantes quanto “Os Três Mosqueteiros” (Zahar, 792 páginas, tradução de André Teles e Rodrigo Lacerda), de Alexandre Dumas. (O romance “As Aventuras de Huckleberry Finn” [L&PM, 320 páginas, tradução de Rosaura Eichenberg], de Mark Twain, talvez seja o equivalente americano, embora escrito, naturalmente, noutra perspectiva.) A história ganhou pelo menos cinco versões para o cinema — a mais recente chega agora ao Brasil em 3D. Por que a história empolga e entretém tanto? Primeiro, é atraente, envolvendo batalhas, aventuras e amores. Segundo, é escrita numa prosa fluente, sem ganchos e arames linguísticos. Mas os mosqueteiros existiram mesmo ou são mera invenção do escritor francês? Eles existiram, sim, afirmam historiadores qualificados, mas não exatamente como foram descritos pelo prosador — o que, admitem, importa pouco.

No ensaio “O nascimento do romance histórico”, Pascal Mar­chetti-Leca, professor de literatura da Universidade de Córsega, diz que, com “Os Três Mos­queteiros”, de 1844, Dumas “fundou um novo gênero literário, o romance histórico”. Seu método era trivial: recriava fatos históricos, com “mestria”, ressalta Marchetti-Leca. O livro relata a história de quatro espadachins-mosqueteiros do século 17, cuja missão era “desarticular uma conspiração contra o rei Luís XIII da França”.

Marchetti-Leca frisa que Dumas fundiu história e ficção. “Ele consultava os documentos não tanto para analisá-los, mas sim para reinventá-los.” O escritor explicou-se: “A história é o alicerce sobre o qual construo meus romances”. Aos que o criticavam por “violentar” a história, forçando-a a atender seus caprichos de ficcionista, dizia: “Sim, reconheço que a violento, mas faço lindos filhos com ela”.

O romance conta a história dos três mosqueteiros Aramis, Athos e Porthos e do mosqueteiro, digamos assim, honorário D’Artagnan. Em 1625, aos 18 anos, muda-se para Paris com o objetivo de contatar o conde de Tréville, capitão da companhia dos mosqueteiros. Dese­ntende-se com os três mosqueteiros, mas logo se tornam aliados inseparáveis — “um por todos e todos por um”.

Noutro ensaio, “Os documentos por trás da ficção”, a jornalista e historiadora Joelle Chevé diz que Dumas usou como base para seu romance o livro “Memórias de Monsieur D’Artagnan”, do mosqueteiro Gatien Courtilz de Sandras (1644-1712). A obra, de 1700, relata a história do mosqueteiro D’Arta­gnan, que realmente existiu. Dumas dizia que outra base de seu romance foi o livro “Memórias do Conde de La Fère”. Na verdade, o ficcionista usou vários livros para escrever seu romance.

Dumas documentava mesmo suas histórias, ampliando-as com as infinitas possibilidades proporcionadas pela imaginação? “Se não existem provas convincentes do romance entre Ana da Áustria e o duque de Buckingham, o mesmo não se pode dizer sobre a popularidade de D’Artagnan. Ao que tudo indica, o verdadeiro mosqueteiro foi tão admirado em vida quanto o personagem criado por Dumas”, anota Joelle Chevé. Saint-Simon (1675-1755) escreveu que o mosqueteiro era um homem que “havia conquistado a estima na guerra e na corte (…) e que o rei sempre apreciou”. “Dumas pode ter carregado nas tintas, mas não inventou o heroísmo de seu principal personagem”, frisa Joelle Chevé.
No ensaio “As proezas do verdadeiro D’Artagnan”, o escritor e historiador Jean-Christian Petitfils revela que o jovem Charles de Batz deixou a casa da família, em Castelmore, em 1630. Seu destino era Paris, onde adotou o sobrenome da mãe, Montesquieu D’Ar­tagnan. Antes de encontrar os três mosqueteiros, dos quais fala Dumas, D’Artagnan serviu como soldado no exército do rei da França. Trabalhou como mosqueteiro para a companhia do senhor de Tréville e, em seguida, para o cardeal Mazarino. Em 1658, depois de uma série de promoções, chegou ao posto de subtenente dos mosqueteiros da guarda montada do rei. “Era a consagração.”

Em 1661, prendeu, a pedido do rei Luís XIV, o superintendente das Finanças, Nicolas Fouquet. Em 1667, na Guerra da Devolução, entre a Espanha e a França, “D’Artagnan foi o primeiro a entrar em território inimigo e se destacou tomando Armentières e lutando na primeira linha em Tournai e Douai. Era então tenente-capitão dos mosqueteiros. Era tido como esperto e corajoso e o rei o apreciava.

Aos 60 anos, em 1672, D’Arta­gnan foi promovido a marechal de campo e encarregado “de comandar Lille”. Revelou-se um governante capaz, mas “autoritário, inquieto e irascível”.

Em 1673, ao lado do rei, ataca a cidade holandesa de Maastricht. Questionou as ordens do duque de Monmouth, que queria atacar sem cobertura, dizendo: “Pura loucura”. Atacaram assim mesmo e venceram, mas “D’Artagnan jazia no chão, com a garganta atravessada por uma bala”.

(As histórias comentadas aqui são baseadas no excelente material de capa da revista “História Viva” — “A verdadeira história dos três mosqueteiros”.)

D’Artagnan, Aramis, Porthos e Athos “não” lutaram juntos

Os três ou quatro mosqueteiros atuaram juntos? Não há prova documental que indique que Aramis, Athos e Porthos tenham lutado nas mesmas batalhas ou que tenham conhecido D’Artagnan. Mas, como este, aqueles também são personagens históricos, que, se não tivessem sido recriados e imortalizados por Alexandre Dumas, teriam sido esquecidos.

Aramis, Athos e Porthos nasceram na Gasconha, no Sudoeste da França, relata o especialista em história militar Pierre Mon­tagnon, no ensaio “O mais célebre dos trios”. “Ao nascerem, no início do século 17, Athos, Porthos e Aramis já eram súditos do rei da França. Os três pertenciam a uma pequena nobreza local sem muito dinheiro.”

Athos, ou Armand de Sillègue D’Athos D’Autevielle, nasceu em 1615. Porthos, cujo nome verdadeiro era Isaac de Portau, foi batizado em 1617, em Pau. Aramis, ou Henri D’Aramits ou D’Ara­mis, nasceu em 1620, na aldeia de Aramits. “Quando Athos, Porthos e Aramis chegaram à capital, a companhia dos mosqueteiros da casa militar do rei era comandada por um gascão, o conde de Tréville.”

Athos entrou na companhia dos mosqueteiros possivelmente em 1641. Po­rthos pode ter entrado em 1642, mas não existe registro preciso de que tenha participado do grupo. Aramis tornou-se mosqueteiro aos 21 anos. No livro de Dumas e nos filmes, Charles de Batz, conde de D’Artagnan, é o caçula dos mosqueteiros. Na verdade, era mais velho, pois nasceu em 1613 e teria servido entre os mosqueteiros a partir de 1633. “Em tese, nessa época Athos, Porthos e Aramis ainda não faziam parte da companhia”, esclarece Pierre Montagnon. No romance, contrariamente à história, D’Arta­gnan é “recolhido” pelos três mosqueteiros, tornando-se o quarto mosqueteiro.

Mas os quatro mosqueteiros se conheceram? Pierre Montagnon assinala que “nada impede que esses quatro gascões tenham se conhecido e convivido em uma Paris que não era assim tão grande. (…) O autor das ‘Memórias do Senhor D’Ar­tagnan’ sugeriu essa convivência, ainda que sem grande fundamento e foi o que bastou para dar corda à imaginação fértil de Dumas”.

Athos, Aramis e Porthos, juntos ou isoladamente, “obrigatoriamente participaram de importantes campanhas do exército francês, aos que tudo indica contra a Espanha, o grande inimigo da época. Mas onde, quando e como? Não se sabe”, afirma Pierre Montagnon.

Athos teria sido morto provavelmente num duelo, “para resolver uma ‘questão de honra’”. Tinha 28 anos. “Não foi nem marido de Milady de Winter, nem amante da duquesa de Chevreuse e muito menos pai do visconde de Bragelonne, como afirma Dumas.” Pierre Montagnon informa que Porthos viveu mais, pois em 1650 há registro de que atuava como guarda de munições de uma cidadela militar. Não se sabe quando morreu. Aramis, que estava entre os mosqueteiros desde 1641, “usou o uniforme de guarda real por mais de uma década, ainda que nem sempre o dos mosqueteiros, pois a companhia foi dissolvida em 1646 pelo cardeal Mazarino”. Morreu em 1674.

Mosqueteiros eram a tropa de elite do rei da França

A companhia dos mosqueteiros da casa militar do rei foi criada há 389 anos, em 1622. O rei Luiz XIII criou-a para zelar por sua segurança. Jean-Pierre Bois, professor aposentado da Universidade de Nantes, escreve que “era pouco numerosa, jamais contou com um príncipe de sangue ou com um comandante de destaque entre suas fileiras e não marcou a história. A companhia foi basicamente uma tropa de elite criada pelo monarca para reforçar sua segurança pessoal em uma época marcada pela violência”. Portanto, o glamour que cerca os mosqueteiros tem mais a ver com o romance “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, que criou uma atmosfera principesca em torno de seus valentes heróis.

Por que o nome mosqueteiros? Jean-Pierre Bois afirma que há a tendência a associar os integrantes da tropa com duelos de capa e espada, mas os “mosqueteiros eram aqueles que empunhavam os mosquetes, armas de fogo de cano longo, precursoras das espingardas modernas”. Ocorre que, do ponto de vista da literatura, a luta com espadas é, digamos, mais principesca, uma atividade aparentemente de cavalheiros. A carabina foi substituída pelo mosquete em 1622 e a companhia militar foi batizada com o nome de mosqueteiros.

Os mosqueteiros eram tanto usados para proteger os reis quanto em guerras. “As primeiras campanhas de que participaram foram o cerco à cidade de La Rochelle, durante a perseguição aos protestantes franceses, em 1627; o assalto ao passo de Susa, quando as tropas de Luís XIII ocuparam o ducado de Savoia, em 1629; e a Batalha de Rouvroi, em 1632, quando o exército francês invadiu o ducado da Lorena”, diz Jean-Pierre Bois.

Os mosqueteiros eram guerreiros audaciosos. Entusiasmado, o rei Luís XIII passou a liderá-los, em 1634, dando “ao chefe da companhia o título de capitão-tenente. O primeiro a ocupar esse posto foi Jean de Peyré, conde de Tréville”. Ligado intimamente ao rei, Tréville sugeriu que matasse o cardeal Richelieu, em 1630. A hostilidade era tão ostensiva que Richelieu teve de criar sua companhia de mosqueteiros, em 1632, com 200 homens.

Os mosqueteiros eram homens bonitos e charmosos, como nos mostra Alexandre Dumas, no seu belo livro? Jean-Pierre Bois afirma que eles eram “considerados arrogantes, vaidosos, briguentos, insolentes e pobres”. A arma preferida deles não era o mosquete, e sim a espada. Paris, naquele tempo, era tão violenta quanto algumas ruas do Iraque. Era preciso andar armado para sobreviver. Os duelos eram tão frequentes que muitos jovens morriam. Por isso Richelieu pediu ao rei que proibisse os duelos.

Às vezes, quando lemos o romance de Alexandre Dumas, ficamos com a impressão de que os mosqueteiros lutavam praticamente por divertimento ou para defender a honra própria ou de outra pessoa. Eram nobres de sentimento. Jean-Pierre Bois afirma que, pelo contrário, os mosqueteiros eram, fundamentalmente, “homens de guerra”.

Com as mortes de Richelieu, em 1642, e do rei Luís XIII, em 1643, “os mosqueteiros perderam seus dois protetores. O novo senhor da França, o cardeal Mazarino”, extinguiu as tropas de Tréville. Mazarino alegou que consumiu muito dinheiro público. Mas ele próprio criou outra companhia, em 1652. Luís XIV organizou, em 1657, “uma nova guarda, integrada à infantaria”.

Jean-Pierre Bois diz que os mosqueteiros “foram suprimidos pelo conde de Saint-Germain em 1775. Reapareceram em 1789, mas foram mais uma vez dispensados em 1792. Restabelecidos em 1814, desapareceram definitivamente em 1815”. E, por intermédio de Alexandre Dumas, com o romance “Os Três Mosqueteiros”, ficaram “vivos” para sempre no nosso imaginário. A literatura às vezes tem mais vigor do que a história. Pode-se dizer que, com sua pena, Alexandre era o “quinto mosqueteiro” — aquele que garantiu a sobrevivência de Athos, Aramis, Porthos e D’Artagnan e de toda uma mitologia. Um mosqueteiro honorário. E, de algum modo, um dos primeiros marqueteiros da história. O “marketing” que criou “para” os mosqueteiros, com seu romance, sobrevive incólume há 167 anos.

Há uma excelente edição em português de “Os Três Mosqueteiros”, publicada pela Zahar. Há a edição normal e a edição de bolso, com capa dura. Ambas são integrais. A tradução precisa e fluente é de André Telles e de Rodrigo Telles. Fuja das versões condensadas, porque perdem-se as tramas paralelas, que quase sempre são apreciáveis. O gosto de Dumas pelo detalhe é sempre empolgante.