Os adolescentes e a questão trans: “Apenas uma rebeldia”?

05 outubro 2021 às 19h12

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O que vem deixando muitos pais e professores assustados é a liberdade com a qual a geração atual tem se afirmado, como bissexuais, assexuais, não binários, transgêneros
Marcos Antonio Ribeiro Moraes
Especial para o Jornal Opção
Já faz um bom tempo que desejo escrever algo sobre a adolescência, muito precisamente para falar desse assunto com adultos, que convivem com adolescentes nessa travessia, na função paterna e materna, como professores, na atenção em saúde, dentre outras instituições. Meu desejo foi sempre falar sobre o que esse ciclo da vida apresenta de beleza e não apenas de uma sofrida encruzilhada. Pois tratar a adolescência como um problema tem levado, muitas vezes, vários adultos a desistirem dos adolescentes, relegando esses sujeitos às condições de vulnerabilidade.
Esse desejo me acompanha ao longo dos últimos 12 anos, em que venho trabalhando como professor do curso de Medicina da PUC-Goiás, no ambulatório de saúde do adolescente. Ao longo desse tempo, muitas questões já foram postas por diferentes adolescentes, em sua busca de inscrição e nomeação de seu mal-estar, enquanto sujeitos de desejo. Processo esse, atravessado por modos singulares de atuar, a partir do limite e fronteira entre o real do corpo e a nomeação desse desejo.
Questões essas, concernentes a relevantes aspectos de ordem sexual, disparadoras de muita angústia e sofrimento. Mas que não chegam ao consultório assim de forma clara e explícita; ao contrário, sempre em formas de sintomas diversos. Por exemplo, muitos desses encontram como saída e alívio para tal estado, se cortarem com lâminas, em seus braços e pernas, estranho, não é? Mas não seria, em muitos casos, maneiras de inscrição e nomeação de algo que os situe no próprio corpo? Diante do que muda radicalmente, que falta, falha e que parece impossível de circulação no campo da fala ao Outro? Nesse sentido, vale considerar, também, a grande onda de diagnósticos de transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, atribuídos a essa população. Sintoma que também diz muito da angústia vivida pelos adolescentes e que os coloca no limite do controle de seus impulsos.
Mas o que atualmente vem deixando muitos pais e professores assustados é a liberdade com a qual essa geração atual tem se afirmado, como bissexuais, assexuais, não binários, transgêneros, entre outras possíveis nomeações. Aqui, essas questões se tornam mais assustadoras, pois incidem diretamente sobre a sexualidade, que ainda é um tabu, assunto contornado por piadas, chistes, ou relegado ao não dito e ao terreno dos preconceitos, mas, como é de se esperar, o adolescente quer tratar disso de forma reivindicatória, quer saber sobre a lógica do seu desejo.
Outro aspecto inegável e interessante é que essas atuais questões — devido a importantes posicionamentos da Organização Mundial de Saúde (OMS) — não são passíveis de serem nomeadas como transtornos mentais, de comportamento ou intercorrências psiquiátricas tratáveis pela via de medicamentos, como tem sido com outras questões comportamentais e emocionais dos adolescentes. O que às vezes pode representar modos de cortar apressadamente o caminho, sem dar espaço à escuta e elaboração no campo da fala. De tal forma, famílias e instituições se sentem perdidas, interpeladas a terem que se haver com a questão da sexualidade, questão que marca por excelência a travessia da adolescência. Lacan já havia apontado para o entendimento da adolescência como o encontro com o real do sexo. Nessa hora os adultos e suas instituições também são interpelados a se haver com esse real, inscrito de algum modo na história de cada um de nós, como algo impossível de ser de todo dito, explicado e liquidado, pois sempre sobra um resto.
Na literatura, a adolescência é metaforizada de diversas formas, entre essas, como uma primavera, ou mesmo como um exílio involuntário vivido pelo sujeito. Gosto dessas imagens, sobretudo dessa que nos apresenta o adolescente como exilado, impelido por rápidas e inesperadas mudanças em seu corpo e sexualidade, a sair da infância. Mudanças desencadeadas, inicialmente por transformações hormonais, despertando o surgimento de caracteres sexuais secundários, marcando biologicamente as diferenças anatômicas entre os sexos. Tudo isso abalando a relação entre corpo e sexualidade. Em tal cenário, o adolescente é botado para fora da cena infantil, que era marcada por uma fase de latência de sua energia sexual e por um entendimento pueril acerca das diferenças sexuais. Ainda vale dizer que, nessa fase, a criança se encontrava bem estabelecida como objeto do desejo e do ideal de seus pais. Mas com o advento da puberdade, como dito, o sujeito perde essa imagem que tinha do seu corpo de infância, por consequência perde a referência de saber e autoridade que antes depositavam em seus pais. Nesse exílio é empurrado a partir em busca da nomeação de si mesmo e de seu desejo. Não se tratando, portanto, de um capricho “aborrecente”. A esse respeito, Freud afirma que, “ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Podemos dizer, então, que esse abalo no campo da sexualidade e das referências de autoridade se constituem inevitavelmente e necessariamente os dois grandes enigmas que sustentam as bases da nomeação do sujeito, entre outros. Enigmas impossíveis de serem contornados, porque se trata de uma condição para que cada um entre, enquanto possível, na vida adulta.
Cada um de nós, se fizermos um exercício de rememoração, para revisitar a experiência de nossa adolescência, iremos lembrar que foi exatamente com esses dois enigmas que tivemos que nos deparar e dar respostas possíveis para o momento. E sabemos que muitos de nós, mais tarde, foram levados a revisar suas nomeações e orientações no campo do desejo. Vivemos tudo isso no que era possível, no contexto cultural e discursivo que era o nosso, muito diverso do que vivem os adolescentes na atualidade, sobretudo num mundo marcado pela globalização e pelas relações virtuais.
Os diferentes tempos são, portanto, marcados por Ideais veiculados por diferentes discursos que vão sendo replicados no seio de cada formação de laços culturais, como significantes que orientam o ideal do sujeito em diferentes cortes geracionais. Em outras épocas os adolescentes promoveram mudanças sociais relevantes, no que se refere a sexualidade, aos hábitos, modo de se vestir, de se relacionar afetivamente e com as estruturas de autoridades. Posturas que marcaram no corpo e no laço social, relevantes mudanças de direitos e de identidade, onde os adolescentes passaram a ter lugar para dizer quem são e o que desejam. Tudo isso, somado às mudanças definidas como marco legal dos direitos da infância e adolescência, como por exemplo a que culminou na promulgação do ECA aqui no Brasil. Mas paradoxalmente essas importantes conquistas vêm sendo acompanhadas por um quadro de desorientação e insegurança, tanto da parte dos adolescentes como dos pais, professores e instituições. Que diante dessa virada, muitas vezes têm a tentação de negar ou desistir do adolescente.
É importante considerar que, quando se trata de uma condição trans sustentada no lugar de sujeito, se faz relevante ajudar os pais e toda a família no processo de elaboração, acolhimento e retificação da identidade de gênero desse adolescente

É justamente nesse contexto que a atual geração de adolescente vem, num processo de identificação grupal que lhe é característica, colocar as referidas questões de identidade de gênero. Isso não está sendo nada fácil para eles e nem para os seus pais, é o que percebo em minha prática clínica. O risco que se corre nesse momento é o de forçar saídas ou encontrar soluções imaginarias imediatas, para questões que necessitam justamente de tempo para serem compreendidas e escutadas. Posto que, como já foi dito, são incontornáveis e carecem de serem trabalhadas e retomadas no registro simbólico, com o tempo necessário para que cada sujeito se localize ao falar, podendo se inscrever de modo singular, para além das identificações grupais, onde se encontram sustentados com seus pares, em montagens pulsionais que muitas vezes veiculam a denominada pressão do grupo. Aqui se faz necessário justamente esse trabalho de diferenciação, entre uma condição de transexualidades ou transgeneralidade, que vem sempre acompanhada de um histórico prévio de vivência da identidade sexual ou de gênero afirmada por um determinado sujeito. E, por outro lado, uma afirmação de identidade trans que pode ser efeito de uma identificação imaginária ao grupo de pares, que possivelmente será apenas uma experiência transitória e exploratória, que ocorre com frequência na busca adolescente. Nesse último caso, sem nenhum histórico dessa referida vivência, que na maioria dos casos remonta a infância do sujeito trans.
Por mais sofrida que seja essa experiência, ela se dá num campo de laços ambivalentes entre pais e filhos. Tenho notado o quanto os filhos, nessa questão, parecem ao mesmo tempo rechaçar e buscar a aceitação e acolhimento de seus pais, querem ser acolhidos em sua afirmação de identidade de gênero, o que não é diferente no que se refere à afirmação da orientação sexual do seu desejo. Quando tal acolhimento não ocorre, o adolescente manifesta um profundo sofrimento. Pois, de algum modo, isso revela que continua sendo importante a sustentação da autoridade e da função de nomeação, atribuída as figuras parentais. Não ter o novo nome e pronomes aceitos e pronunciados por seus pais, marca um profundo sofrimento, quantas vezes ouvi esse desabafo por parte de diferentes adolescentes trans.
Os pais também sofrem de seu lado. Muitos me dizem que não conseguem, assim de imediato, acolher e nomear seus filhos de forma diversa daquela que lhes atribuíra, desde o nascimento. De fato, se trata de um limite que não pode ser negado, mas sim dito aos filhos, para que juntos reconheçam a necessidade de se estabelecer o referido tempo para escutar, compreender, elaborar e acolher, o que há de singular da verdade do sujeito em causa. Expressar esse limite, é uma atitude diversa de negar, recusar ou rejeitar um filho nesse momento de fronteira. Trata-se de um manejo delicada desse ajuste no campo da inscrição e nomeação da identidade sexual do sujeito. Pois, de outra forma — não sendo bem acolhido em seu anseio de liberdade e necessidade de inscrição de sua sexualidade, na pressa de romper com o lugar e função de autoridade dos pais, mesmo que de forma ambivalente, o adolescente corre o risco de se filiar, na relação de grupo, a um modo de liderança que passa a ditar regras, a nomear coletivamente o desejo e a identidade do sujeito, que se rende ao que o outro determina como o significante de sua sexualidade.
Dito isso, é importante considerar que, quando se trata de uma condição trans sustentada no lugar de sujeito, se faz relevante ajudar os pais e toda a família no processo de elaboração, acolhimento e retificação da identidade de gênero desse adolescente. Considerando que, em nenhuma dessas situações, seria válido tratar as questões de gênero, levantadas atualmente, não somente pelos adolescentes, como mera epidemia, modismo ou revolta trans. Tais questões portam relevantes significantes que podem validar atuações transfóbicas, revelando atuações contrárias ao que carece de escuta, do que antes estava em condição de recalque e que insiste em se inscrever na subjetividade de nosso tempo.
Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, membro da Appoa, professor da PUC–Goiás, especialista em saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia.