“Ordem pra matar na Guerrilha do Araguaia era do presidente Emilio Médici”, diz o coronel Pedro Cabral
05 setembro 2022 às 18h54
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A entrevista do coronel Pedro Corrêa Cabral foi publicada no Jornal Opção na edição de 30 de novembro a 6 de dezembro de 1997 (25 anos depois, é natural que novos fatos e documentos tenham sido divulgados). E antecipou o depoimento que o militar da Aeronáutica concedeu à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, em maio de 2001. Ele responsabiliza o major Sebastião Curió pelo massacre final dos guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Curió deu entrevista ao “Jornal do Brasil”, na edição de 31 de março de 2001, na qual disse: “Apesar de a Guerrilha do Araguaia ser uma página negra da História brasileira, é uma página da História que não pode ficar omissa, oculta. Tem de ser contada. Não vejo por que esconder”. O oficial do Exército admite que ficou quatro anos no cenário da guerrilha. Sobre os mortos, frisou: “No combate na selva, você não tem como localizar corpos, transportar corpos. O máximo que você pode fazer é sepultar vítimas”. O Exército não quer se pronunciar sobre a guerrilha. O ex-chefe do Centro de Comunicação Social do Exército (Ccomcex), Luiz Cesário da Silveira Filho, disse ao “JB” que a Guerrilha do Araguaia é um fato “recente e ainda não pode ser considerado história”. Sem dúvida, uma nova teoria.
É puro clichê dizer que uma obra sobre determinado autor ou assunto é definitiva. Há, sim, trabalhos mais complexos. Definitivos, não. Sobre a história da esquerda brasileira pós-1964, por exemplo, há livros importantes, mas lacunares. Jacob Gorender (“Combate nas Trevas”), Luís Mir (“A Revolução Impossível”) e Carlos Eugênio Paz (“Viagem à Luta Armada” e “Nas Trilhas da ALN”) publicaram livros que merecem respeito, mas são problemáticos. Não no sentido de que sejam falsos. O problema é que são demasiado incompletos.
Ao optar por memórias romanceadas — os guerrilheiros têm pseudônimos, apenas alguns são esclarecidos no final dos livros —, Carlos Eugênio escreve para iniciados. Os outros autores têm problemas com fontes e informações mais detalhadas. Os dados ainda estão sendo lançados. Faltam informações mais apuradas sobre a esquerda e básicas sobre o outro lado — o da direita. O preconceito e, talvez, a raiva não têm permitido que historiadores e jornalistas brasileiros tentem entender as razões da direita civil e militar. É difícil atravessar o caudaloso rio das opiniões.
Por isso, a coleção “Os Anos de Chumbo”, organizada por Maria Celina D’Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro, se torna vital para quem quer conhecer o pensamento militar no período repressivo. A conclusão que se tira é que esse pensamento é, de certo modo, “tosco”. Mas dizer isso nada esclarece. E não é o objetivo desta apresentação. Um dos livros da série — “A Memória Militar Sobre a Repressão” — tem informações muito interessantes. Ressalve-se, porém, o preconceito militar contra quase tudo que não seja militar.
O depoimento do general Adyr Fiúza de Castro confirma o que os historiadores têm publicado: “O ‘Cabo’ Anselmo foi ‘virado’ pelo Cenimar (serviço de informação da Marinha). Ele entregou quase todo mundo do PCBR. Foi trabalho dele”. Ele acrescenta: “O instrutor dos guerrilheiros brasileiros em Cuba era um agente da CIA. Ele então trazia e entregava ao CIE, na época do Miltinho [general Milton Tavares de Souza, chefe do Centro de Informações do Exército, CIE], a relação de todos os brasileiros que lá iam, o aproveitamento, o codinome que tinham. E o Miltinho nos informava. Mas ele recebia da CIA”. No entanto, Fiúza não fornece o nome do informante.
Sobre a Guerrilha do Araguaia (1972-1974), os generais são lacônicos. O que se abre mais é o general Ivan de Souza Mendes: “As operações naquela região [do Araguaia] estavam sendo conduzidas pelo CIE”. Ele alega que não fez fogueira para queimar documentos: “Não fiz fogueira nenhuma. Se queimaram os documentos, queimaram normalmente. Evidentemente, quando eles foram se retirando, não iam deixar as coisas para trás. Deram destino ao que tinham que trazer, e o restante, provavelmente, devem ter incinerado. Mas não havia muitos documentos, porque eles não tinham condições de fazer arquivos, nada disso”. Ele assegura que vetou um churrasco “para comemorar a vitória”.
O general Ivan de Souza Mendes admite: “Quando começaram as primeiras ações, a população naquela região estava com eles” (os militantes do PC do B). E reconhece que, nas primeiras campanhas, o Exército fez o jogo de um adversário “invisível”. “Quando o Exército percebeu que estava jogando contra um adversário invisível, que fugia enquanto ele estava muito exposto, sentiu que tinha que mudar e passou a fazer a mesma guerra: sem farda, sem nada. Separou a população, usou a antiestratégia deles. Foi muito bem-feito. Acabaram anulando a resistência que havia.”
O general José Luiz Coelho Netto garante que foram infiltrados agentes no PCB e no PC do B. Os autores do livro perguntam: “Qual foi o comando mais importante para desmontar a guerrilha?” Coelho Netto responde: “Quem acabou desmontando foi o Milton Tavares de Sousa, chefe do CIE. Miltinho, como o chamavam. Bom, duro, firme, inteligente. Como eu, sempre foi considerado da ‘linha dura’”. Sobre os militares mais atuantes da linha dura, Coelho Netto aponta os generais Antônio Bandeira e Milton Tavares. “O Bandeira foi um grande combatente, inclusive pessoalmente. Isso no período Médici. São os dois principais: Bandeira e Milton. Não tem muito mais do que isso, não. Na Aeronáutica, era basicamente o [João Paulo Moreira] Burnier.”
Os historiadores propõem uma questão para o general Octávio Costa: “Quanto ao papel do SNI, a impressão que se tem é que ele saiu muito fortalecido do primeiro ano do governo Médici”. Costa responde: “Não foi bem assim. O SNI só seria realmente forte a partir do [João] Figueiredo e do [general] Otávio de Medeiros. A primazia coube ao Ministério do Exército, ao Orlando Geisel e ao CIE. A grande figura do CIE era, então, o general Milton Tavares de Sousa, que depois comandou o II Exército. Homem duro, capaz, inteligente, foi o grande planejador das ações da repressão ao tempo do ministro Orlando Geisel [no governo de Emílio Garrastazu Médici, entre 1970 e 1974]. Acho que muito do êxito da repressão se deveu a ele, e que o SNI não teve esse papel tão saliente”.
Sobre a Guerrilha do Araguaia, os militares ainda falam pouco. Talvez não sejam procurados com a devida insistência. Daí a importância de depoimentos como o do coronel da reserva Pedro Corrêa Cabral. Ele esteve no cenário da Guerrilha do Araguaia como capitão-aviador da Aeronáutica na terceira e última campanha, que terminou em 1974 (em 75, os militares “limparam” a área). Ele é autor do romance “Xambioá — Guerrilha do Araguaia” (Editora Record, 252 páginas), que já vendeu 12 mil exemplares. Sua entrevista foi concedida por e-mail (o coronel mora em Alagoas). Ele tem uma página na Internet.
A entrevista exclusiva do coronel Pedro Cabral
O deputado federal José Genoino Neto, do PT, foi um dos primeiros guerrilheiros presos. Ao contrário de outros militantes do PC do B, ele foi poupado. Por que inicialmente as Forças Armadas decidiram poupar os presos e depois optaram por matá-los e enterrá-los no próprio cenário da guerrilha?
O deputado José Genoino, por quem tenho grande apreço, não foi o primeiro guerrilheiro a ser preso. Foi, sim, um dos primeiros. A Guerrilha do Araguaia teve três fases distintas. A primeira foi um fracasso total para as Forças Armadas (FFAA), posto que estas não conheciam nada sobre esse tipo de combate, e não havia informações suficientes sobre o lado adversário. Na segunda, as FFAA obtiveram algum êxito no combate, mas houve um número de baixas inaceitável, resultando em elevada relação custo-benefício, igualmente em razão direta da carência de informações e de táticas incorretas de combate. Nas duas fases mencionadas, nas quais as tropas atuaram de acordo com os preceitos da guerra convencional, os comandantes eram oficiais combatentes por excelência, lutando e agindo como lhes fora ensinado na academia militar, ou seja, de conformidade com os princípios da ética, da hora e da dignidade. Nesses dois períodos, se algum excesso ocorreu, não foram ultrapassados os limites da Convenção de Genebra. Assim, os guerrilheiros presos eram encaminhados para julgamento nas Auditorias Militares competentes. Jamais um combatente pensaria em executar um prisioneiro. Infelizmente, o mesmo não aconteceu na terceira e última fase da Guerrilha do Araguaia, caracterizada, sobretudo, pelo comando dos agentes de informação, os nossos “arapongas”, aos quais todo o poder lhes foi dado. Eles estavam, por assim dizer, “acima do bem e do mal”, e, consequentemente, regras de moral, de ética, de honra, ou de dignidade não faziam parte do elenco de valores daquelas pessoas. Acrescente-se a esse contexto um presidente da República que gostava de se passar por “bom moço”, sorria para o público e torcia pelo Flamengo, mas que, nos bastidores, não escondia sua índole sanguinária. Este personagem, aliás pouco citado por estas mesmas razões, empolgado com seus índices de popularidade, achou que os prisioneiros do Araguaia iriam apenas criar problemas para o governo e trabalho para os órgãos da Justiça Militar. Determinou, portanto, aos órgãos de informações que “cortassem o mal pela raiz”, isto é, eliminassem todos, indistintamente, quer em combate, quer fora de combate, sumariamente, para que não viessem a perturbar o seu governo ufanista, regido pelo jargão do Brasil — Ame-o o deixe-o. Desta forma, não sem o apoio de Brasília, os agentes de informações agiram durante a 3ª fase da Guerrilha do Araguaia, como relato em Xambioá [romance publicado pela Editora Record].
O historiador e jornalista Luís Mir assegura ter encontrado evidências de que um general americano, com experiência no Vietnã, participou da Guerrilha do Araguaia. Segundo Mir, esse general não esteve no cenário da guerrilha. Teria ficado em Manaus. Seu intérprete seria o general Hugo Abreu. Trata-se de um mito ou não é uma possibilidade descartada?
Não tenho elementos para dizer se o jornalista Luís Mir está certo ou não. Posso, entretanto, conjecturar que tal possibilidade não pode ser descartada. Em 1967, poucos anos antes dos fatos em questão, quando eu era estagiário no 1º/4º Gav (1º Esquadrão do 4º Grupo de Aviação) em Fortaleza, assisti a palestras de oficiais da USAF que haviam lutado no Vietnã. Esta é uma evidência de que havia estreita ligação entre as Forças Armadas brasileiras e americanas, bem antes de ser rompido o Acordo do PAM (Plano de Apoio Militar) entre Brasil e Estados Unidos. Todavia, vale acrescentar que, apesar da possibilidade de ter havido uma assessoria desta natureza, as FFAA brasileiras não se livraram dos inúmeros erros que cometeram no combate à guerrilha. E isto se deveu ao fato de não terem conhecimento prático a respeito desse tipo de conflito. Eis aí o motivo principal do fracasso das duas primeiras campanhas de combate à Guerrilha do Araguaia. Devo acrescentar, até por dever de lealdade e de justiça, que, de todos os figurões do cenário político-militar da época, um dos que agiam com ética e dignidade, embora com determinação e dureza, era o general Hugo Abreu. Não se pode imputar a ele um único ato ignóbil, e é bom que se destaque este aspecto.
Quem foi o cérebro do combate à Guerrilha do Araguaia, sobretudo na terceira campanha: os generais Antônio Bandeira, Hugo Abreu ou Viana Moog?
Seguramente, afirmo que não era o general Hugo Abreu. Ele não pertencia à famigerada comunidade de informações mas, sim, era um combatente por excelência, com curso de paraquedista e de comandos. Não tenho procuração para defendê-lo, e nem sequer o conheci pessoalmente. Estou, simplesmente, externando a minha opinião baseada no que lia, no que ouvia de outros companheiros e, principalmente, do que deduzi de algumas conversas que tive com o coronel Kurt Pessek, ao tempo em que ele foi “deportado” para Fortaleza como castigo por ter sido assistente do general Hugo. Isto posto, não tenho elementos para apontar alguém que fosse o cérebro do combate à guerrilha. Não obstante, posso assegurar que o comando das operações no Araguaia estava nas mãos do chefe do SNI na época, embora as decisões mais cruciais fossem submetidas ao presidente da República.
Em regra, comando geral e os militares em ação têm um certo distanciamento. No caso da Guerrilha do Araguaia, os comandantes-generais tinham que tipo de participação? Ficavam sempre à distância? Quais os generais que estiveram mais próximos do cenário do combate? O grupo do sargento J. Pereira, de Goiás, que matou três guerrilheiros, teve contato com o general Bandeira.
O comando da guerrilha no cenário de combate, isto é, lá no Sul do Pará foi sempre exercido por oficiais superiores, a maioria do posto de coronel, embora, eventualmente, um ou outro tenente-coronel tenha comandado. De tempos em tempos, oficiais-generais visitavam a região acompanhados sempre de uma numerosa comitiva. Dentre esses, me lembro a visita do general Antônio Bandeira, como também do general Euclides Figueiredo, este comandante da 8ª Região Militar com sede em Belém do Pará. Todavia, essas visitas, em verdade, tinham mais o caráter de turismo, ou de curiosidade, do que de inspeção, ou acompanhamento, das operações. Uma dessas visitas é, inclusive, relatada no Xambioá.
Quem, nas Forças Armadas, decidiu mudar as táticas de entrada e combate no Araguaia? Quem foi o cérebro da campanha? O major ou coronel Sebastião Curió parece mais um homem de ação que um criador. Essa ideia procede?
Na terceira campanha, como está relatado no meu livro, as táticas e procedimentos, bem como a alimentação e o vestuário, foram completamente mudados em função direta dos ensinamentos negativos das duas primeiras tentativas de combate à guerrilha. Além disso, os agentes de informações descobriram a intenção do PC do B de transformar a região numa zona liberada, obtendo o reconhecimento, por parte de organismos internacionais, de que havia uma situação de guerra interna. Para não permitir que o inimigo lograsse seu intento, as Forças Armadas passaram a atuar em trajes civis, e as aeronaves foram descaracterizadas. Assim, oficialmente ficava mais difícil comprovar tal situação. Neste sentido, não se pode, portanto, apontar uma figura central que teria maquinado todo esse aparato. As táticas e demais procedimentos foram decididos de comum acordo com os órgãos de comando de cada uma das Forças Singulares assessorados, respectivamente, por seus serviços de inteligência, CIE, Cenimar e Cisa. Naturalmente, neste contexto, exercia grande influência o SNI, uma vez que era o órgão central do sistema, e dele emanavam todas as diretrizes concernentes à busca, ao processamento e à produção de informações. O então major Sebastião Moura, conhecido como Curió, era uma figura menor, procedendo, portanto, a ideia de que ele agia de conformidade com as ordens que recebia. Aliás, faço um reparo no texto das suas perguntas: o Curió jamais atingiu o posto de coronel; durante a guerrilha ele foi promovido a tenente-coronel e, depois do conflito, envolveu-se nas questões relativas ao Garimpo de Serra Pelada, deixando o serviço ativo do Exército para se tornar deputado federal. Para ser promovido a coronel ele teria que ter feito o curso de Estado-Maior, e este não foi o seu caso.
Quem foi o ideólogo da Operação Aciso (assistência social aos moradores da região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia)?
No que respeita à operação Aciso (Ação Cívica e Social), esta é uma operação normal das FFAA, estando capitulada na própria doutrina de cada uma das Forças Singulares como ação de natureza secundária. Não foi algo que tenha surgido em função da guerrilha. Ao longo da minha carreira militar, participei de diversas operações Aciso, um serviço meritório que as FFAA, sempre que possível, prestam às populações mais carentes em todo o território nacional.
O coronel Kurt Pessek, ajudante de ordens do general Hugo de Abreu, realmente participou do combate?
Não tenho notícia de que o Kurt Pessek tenha participado da terceira campanha. É possível que tenha participado da primeira, ou da segunda, já que era paraquedista, e a Brigada Aeroterrestre, com sede no Rio de Janeiro, foi empregada nas campanhas iniciais, com resultados desastrosos, posto que não estava preparada para esse tipo de conflito.
Há livros que apontam a participação no combate à Guerrilha do Araguaia de um militar português, o coronel Hermes de Oliveira, que tinha experiência de combate na África.
Não tenho conhecimento de que o coronel Hermes de Oliveira tenha participado da Guerrilha do Araguaia. É possível que o Exército português tenha sido consultado, pois tinha uma larga experiência em guerras irregulares nas suas antigas colônias africanas. Além disso, o governo brasileiro sempre manteve ótimas relações com a pátria-mãe. A respeito dessa questão, penso que a contribuição dos portugueses teria sido muito mais valiosa do que a americana, uma vez que a Guerrilha do Araguaia tem uma semelhança muito maior com os conflitos coloniais africanos do que com a guerra do Vietnã.
A mãe do guerrilheiro Divino Ferreira de Souza (o Nunes), morto em combate, Maria Gomes dos Santos (dona Santinha), pergunta se o senhor se lembra dos nomes das pessoas que foram desenterradas no DNER de Marabá. Ela acrescenta: “O guia (do Exército) Vanu carregou Divino (que estava ferido) nas costas para o destacamento dos militares. Ficou na cela 14 no DNER de Marabá. O guia, embora ajudante dos militares, também ficou preso. Para não fugir. À noite, ele passou no corredor, andando lentamente, e viu Divino. No outro dia, Divino não estava mais lá”.
Esta é uma questão que não guarda pertinência com a entrevista. Passados mais de 20 anos da Guerrilha do Araguaia, tenho dificuldade em me recordar dos nomes das pessoas que participaram comigo, das pessoas com quem convivi na época e, enfim, daquelas que, enquanto vivas, marcaram a minha atuação como aviador e oficial da Força Aérea. Ora, como é que iria me lembrar de nomes de pessoas cujos corpos supostamente teriam sido enterrados na Casa Azul, reduto quase que exclusivo dos comandantes e agentes de informação? Aliás, pelo que sei e relatei no “Xambioá”, não me consta que algum guerrilheiro tenha sido enterrado no DNER de Marabá. Compreendo perfeitamente as angústias de dona Santinha, mas estes são detalhes que fogem à minha alçada. Igualmente, não posso confirmar, nem negar, as afirmações do guia Vanu, a quem não conheci, pelo menos que me lembre. Posso, sim, adiantar, com todo respeito, que o Vanu era apenas um guia, rude e inculto, e, como tal, tinha acesso muito restrito às informações, razão pela qual sua visão dos acontecimentos da época está prejudicada por seu horizonte pequeno em relação às dimensões do tema.
Como os Estados Unidos acompanharam a Guerrilha do Araguaia? A CIA teria enviado relatórios sobre o assunto? Há algum arquivo sobre o assunto nos EUA?
Em relação à CIA, quem poderia adiantar alguma coisa seria, justamente, a comunidade de informações. A agência americana, sem dúvida alguma, deve ter relatórios sobre o assunto, pois sempre se imiscuiu na vida política de todas as nações, e o Brasil era um país importante para seus interesses anticomunistas àquela época. Não acredito, entretanto, que a CIA tenha detalhes a respeito dos combates e do dia a dia do conflito.
Há informações precisas sobre o número de militares e guerrilheiros mortos em combate? Onde estão essas informações? O frei dominicano Gil Vila Nova disse: “Quando o Exército entrou na mata foi malsucedido. Fiquei com pena dos rapazes do Exército. Foram mortos muitos. Caminhões saíram cheios de soldados mortos. Depois eles utilizaram os índios para caçar guerrilheiros, deixaram de usar fardas e cresceram as barbas. Começaram a empregar os sertanejos”.
As informações exatas sobre o número de mortos de ambos os lados certamente existem e devem estar com órgãos de informações das Forças Armadas. No que respeita a mim, novamente, posso apenas conjecturar. Embora não saiba os números exatos, digo com segurança que foram mortos ou capturados mais de cem guerrilheiros nas três campanhas. Do lado militar, garanto que não morreram mais de dez. A afirmação do Frei Vila Nova é leviana e destituída de qualquer fundamentação lógica, tanto no que respeita à quantidade de baixas entre os militares, quanto em relação ao emprego de índios. Quando ele diz que as Forças Armadas usaram os sertanejos, aí sim, ele aproxima-se da verdade. As FFAA, na terceira campanha, passaram a usar o soldado da região, elemento aclimatado à selva e, portanto, mais preparado para a luta naquele tipo de cenário. Este detalhe está também relatado em Xambioá.
O (extinto) Coojornal, de julho de 1978, conta que os índios Suruí “foram contratados como batedores pelo Exército para ajudar no combate aos guerrilheiros”. O senhor tem mais informações sobre isso?
Os índios jamais foram usados para combater, ou para localizar, guerrilheiros no Araguaia. A afirmação do Coojornal está errada. Na terceira campanha usou-se mateiros, isto é, homens da própria região, acostumados ao trabalho na mata, seja como seringueiros ou castanheiros, seja como caçadores de animais silvestres.
O PC do B diz que o povo da região do Araguaia (Pará e Tocantins, na época Goiás) apoiou os guerrilheiros. Um religioso da região confirma isso. As Forças Armadas, para obter informações, tiveram efetivamente que torturar os moradores da área? Não houve colaboração espontânea?
Esta questão envolve pelo menos três situações: 1ª — Antes da chegada das tropas, de fato, a população apoiava os guerrilheiros, ou os “paulistas”, como eram chamados. Afinal, todo um trabalho de conquista da simpatia do povo das vilas, lugarejos e cidades havia sido, meticulosamente, desenvolvido; 2ª — Com a chegada das tropas e com as demonstrações de força, como na Manobra Marabá 70, parte da população que antes apoiava, ou era neutra, passou a colaborar com as FFAA; 3ª — Final e principalmente, no início da terceira e última campanha, como relato no Xambioá, em muitos casos a colaboração foi imposta pela força, pela tortura e pela intimidação. É claro que houve muitos que colaboraram espontaneamente. Não se pode esquecer, e a experiência o demonstra, que as populações mais carentes e mais humildes têm uma forte tendência legalista, isto é, tendem a obedecer e a respeitar mais efetivamente àquilo que vem dos homens de farda (representantes do governo) do que o que vem de civis, vistos como seus iguais.
O dominicano Gil Vila Nova disse: “Eu penso que totalmente o povo apoiava os guerrilheiros. Só depois que o Exército entrou, muitos, por medo, foram mudando de opinião, porque foram presos e torturados”. O apoio popular à guerrilha assustou os militares?
O apoio à guerrilha por parte da população não era algo aberto e declarado. Pelo contrário, era sutil e disfarçado. Não se pode, assim, neste contexto, dizer que o apoio da população teria assustado aos militares.
Os documentos de uma guerra quase sempre são guardados. Os da Guerrilha do Araguaia foram preservados? Onde estão eles? O coronel Jarbas Passarinho costuma dizer que as informações estão no “arquivo”. Sim, mas em qual arquivo?
Novamente, posso apenas fazer conjecturas. É minha opinião que os documentos sobre a Guerrilha do Araguaia estão preservados em arquivos dos órgãos de informações, guardados a “sete chaves”. Além disso, penso que alguns elementos da chamada “comunidade de informações” têm a posse de papéis sigilosos sobre o assunto. Entre estes, o Curió deve ser um deles
O major Curió diz que tem um relatório sobre a Guerrilha do Araguaia em sua casa. Esse relatório foi produzido pelo Exército ou exclusivamente pelo Curió?
A pergunta deveria ser dirigida ao próprio Curió. Como poderia eu saber? Depois da Guerrilha do Araguaia, nunca mais falei com ele. Na época da publicação do
“Xambioá”, ele disse, em carta à “Veja”, que iria me processar. Até hoje aguardo a convocação da justiça.
Um militar como Sebastião Curió tinha visão de conjunto da guerrilha e informações privilegiadas do comando? Qual era o seu grau de liberdade para agir?
O Curió era major e apenas um agente de informações qualificado. Ele possuía, sem dúvida, algumas informações privilegiadas. Agora, quanto à visão geral do conjunto da guerra, no âmbito da Guerrilha do Araguaia, penso que ele não só possuía esta visão como influenciava grandemente o comando nas decisões táticas e estratégicas a serem tomadas.
Além de Curió, quais os outros militares que tiveram atuação destacada no combate aos guerrilheiros?
A quantidade de oficiais, tanto combatentes como do setor de informações, foi muito grande. De pronto, eu não teria condições de nomeá-los um a um. Neste sentido, portanto, se nomeasse uns e deixasse de lado outros, estaria cometendo injustiça. Acrescente-se, também, que, como anuncio na “Nota do Autor”, em “Xambioá”, não é mais tempo de se buscar culpados e apontar nomes. Lamentável, dirão alguns. Lamentável, digo eu mesmo, pois, embora a grande maioria daqueles militares da comunidade de informações esteja, hoje, fora do serviço ativo, ainda restam alguns que estão na ativa e em vias de serem promovidos ao generalato. Aliás, um deles pelo menos já é oficial-general. É claro que estou falando a respeito da minha corporação, o Ministério da Aeronáutica e a Força Aérea Brasileira. Os das demais forças, Exército e Marinha, desconheço-os, uma vez que, durante a guerrilha, todos usavam nomes-frios.
O presidente Ernesto Geisel diz (em livro publicado postumamente pela Fundação Getúlio Vargas) que, ao iniciar seu governo, a Guerrilha do Araguaia estava inteiramente liquidada. Porém seu irmão, o general Orlando Geisel, ministro do Exército de Médici, deu total apoio ao combate à guerrilha. Mas quem chefiava, à distância, era o general Milton Tavares. O senhor pode explicar, de forma detalhada, como era a cadeia de chefia?
Cabe apenas lembrar que o hoje coronel Pedro Corrêa Cabral era, na época, um simples capitão-aviador. Sabia e ainda sei tudo sobre a Guerrilha do Araguaia, no que respeita à terceira campanha, no âmbito do teatro de guerra. Sobre quem manuseava os cordéis em Brasília e qual a cadeia de comando não posso adiantar nada, sob pena de enganar a você e a mim mesmo, dando “chutes” inconsequentes.
O PC do B diz que a Baleia (Valkiria, dona de um bar), já falecida, era colaboradora dos militares. O senhor a apresenta, no romance “Xambioá”, como colaboradora dos guerrilheiros. Onde está a verdade? A minha impressão é que o senhor a apresenta de modo ambíguo.
De fato, propositadamente, apresento a falecida Iraci, a Baleia, de modo ambíguo, pois ela era, verdadeiramente, uma figura ambígua. Convivi com ela durante um bom tempo, mas não sei, até hoje, em qual lado ela jogava. Como opinião, arrisco-me a dizer que a Baleia dava a impressão de fazer jogo duplo, por pura conveniência, porém não estava nem de um lado, nem de outro. O partido dela era ela mesma. É possível, até, que ela não tenha sido colaboradora de nenhum dos lados, mas apenas tenha assumido a aura misteriosa de informante como forma de obter prestígio na pequenina Xambioá.
A Rádio Tirana continua um mistério sobre o qual o próprio PC do B faz mistério até hoje. Depois que escreveu o livro, conseguiu mais informações sobre ela?
A Rádio Tirana em si não envolve mistério algum. Cansei-me de ouvir o seu noticiário em português, com notícias fresquinhas sobre a região do Sul do Pará. O que é misterioso é o informante, ou informantes, da Tirana. Nunca se descobriu nada sobre como as informações chegavam à Albânia. Se o PC do B não sabe, muito menos sabemos nós, os militares.
O senhor admira quais militares brasileiros?
Admiro o general Luiz Alves de Lima e Silva, o marechal Eduardo Gomes, o marechal Castello Branco, o tenente-brigadeiro Lélio Lobo e alguns outros militares com quem convivi, mas cujos nomes não têm repercussão, entre estes, o meu colega de turma, já falecido, Miguel Ferreira Rodrigues de Lima, a quem cito em “Xambioá”, bem como o atual comandante do 6º Comando Aéreo Regional, com sede em Brasília, major-brigadeiro do Ar Henrique Marini de Souza.
As Forças Armadas são corporativistas em qualquer lugar do mundo. São fechadas. As discordâncias em geral não são expostas publicamente. Mas o fato é que, no caso brasileiro, embora as posições não sejam explícitas, muitos oficiais foram contra a tortura, a violência. O senhor sentiu isso quando militar da ativa? Percebeu isso em nível de oficialato? Presenciou algum debate?
Na Força Aérea Brasileira, corporação pela qual posso responder, visto que ali convivi, me formei e trabalhei por mais de 30 anos, a grande maioria da oficialidade foi sempre contra a tortura, vista como ato de covardia. Contudo, no período negro da ditadura militar, não se discutia, não se falava, nem sequer se mencionava assuntos dessa natureza. As críticas ficavam reprimidas no peito de cada um, pois em todos os meios, fosse de oficiais, fosse de praças, havia sempre um agente de informações pronto a relatar qualquer coisa que ouvisse. Eu, em particular, era um tanto rebelde e, vez por outra, falava um pouco além do que seria recomendável. Trazia dentro de mim as lembranças terríveis da guerrilha. Lembro-me, por exemplo, que quando major, servindo na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EAOAr), discuti contra a indicação do general João Figueiredo para presidente da República, chegando mesmo a ir ao Rio de Janeiro e procurar o general Euler Bentes, candidato das oposições, para lhe hipotecar solidariedade. Na ocasião, um outro major, mais antigo do que eu, me disse à boca pequena que já haviam comunicado ao Cisa a minha posição. Em conseqüência, não fui promovido a tenente-coronel por merecimento, mas por antiguidade.
Houve dissensão nas Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia, sobre a violência empregada? Houve uma certa perda de controle por parte dos comandantes? Se houve, ela foi propositada?
No que respeita à Guerrilha do Araguaia, não houve dissensão porque as decisões e as ações sobre o assunto eram compartimentadas. Isto é, as unidades militares que não tinham envolvimento com as operações não tomavam qualquer conhecimento do que estava acontecendo. Por exemplo, quando eu servia em Fortaleza (CE), antes de ser transferido para o 1º EMRA (Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque) em Belém (PA), não sabia nada sobre a guerrilha; não sabia sequer que existia guerrilha no Sul do Pará. Só fiquei sabendo depois que cheguei a Belém e, mesmo assim, não sabia de tudo. O conhecimento sobre a violência empregada só obtive lá, no teatro de manobras, em Xambioá e em Marabá. Para se ter ideia, os oficiais do 1º Esquadrão de Transporte Aéreo (1º ETA), sediado na mesma Base Aérea de Belém, não tinham conhecimento do que se desenrolava na área em conflito. E, pasme, até hoje existem oficiais daquela época que não sabem nada a respeito da guerrilha. São militares que serviam em unidades que não tinham qualquer engajamento neste tipo de problema e, portanto, jamais foram informados sobre nada daquilo que acontecia. Quer um exemplo? Pergunte ao major-brigadeiro Reginaldo, diretor geral do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos (SP), sobre a Guerrilha do Araguaia, e ele lhe dirá que não sabe nada. Este e muitos outros oficiais estavam, como ainda estão, envolvidos com a área de tecnologia e jamais souberam de nada. Você dirá: mas estes se justificam por suas atividades. Faça, então, a mesma pergunta a um oficial que, naquele período, estava servindo no 1º Grupo de Caça, em Santa Cruz (RJ). Este, igualmente, também não saberá responder nada. Quando você fala em perda de controle, por parte dos comandantes, em relação à violência, penso que está se referindo à violência praticada pela comunidade de informações. Se for, respondo que, de certa forma, a assertiva é verdadeira. Criou-se o monstro e, depois, perdeu-se o controle sobre ele.
Por que a ordem era matar, e não prender os guerrilheiros?
A alegação que o pessoal de informações apresentava, com a maior “cara de pau” do mundo, era a de que, se os prisioneiros fossem mantidos vivos, iriam criar uma série de problemas jurídicos no futuro; problemas que só trariam aborrecimento para o governo revolucionário; portanto — “é melhor eliminar o mal pela raiz, acredite, João Pedro” —, disse-me um elemento de informações, naquela época, e que, hoje, como coronel, está aí na bica para ser promovido a brigadeiro.
O senhor conta no livro “Xambioá” a história de guerrilheiros que se entregavam, colaboraram com os militares, mas foram assassinados friamente. Houve muitos casos? O senhor poderia dizer os nomes de mortos? No seu livro, os nomes são fictícios.
Esta questão está respondida, em parte, no próprio “Xambioá”. Não foram muitos casos, mas, se fosse apenas um, já seria suficiente para se abominar com toda a veemência. Infelizmente, não tenho condições de citar nomes. A memória poderia me trair. Arrisco-me a dizer, baseado nas fisionomias fotográficas, que duas das sacrificadas, depois de terem sido feitas prisioneiras, provavelmente, foram a Sônia Moroni e a Dina. Sobre esta, um companheiro meu que atuou no Araguaia, o coronel Delamora, conversando comigo no lançamento do livro, no Rio de Janeiro, recordou com precisão que a Dina ficara presa na Casa Azul antes de “viajar”. Todavia, embora confie muito no Delamora, não tenho absoluta certeza. Vi, é verdade, vários prisioneiros que depois “viajaram”. Na época, sabia seus nomes, mas, lamentavelmente, não me ocorreu anotá-los e, hoje, já não me lembro mais.
Quem era de fato a guerrilheira grávida?
Possivelmente, a Dina ou a Sônia Moroni. Não tenho certeza.
Que tipo de premiação os militares que participaram do Araguaia receberam: promoções, medalhas e elogios no histórico profissional?
Nenhum registro da participação no Araguaia ficou. Nas nossas cadernetas de vôo, as missões cumpridas na guerrilha estão registradas como simples vôos locais. Nenhum elogio, nem qualquer menção. Nada.
O que se apreendeu dos guerrilheiros, além de comida e algumas armas? Apreenderam diários, relatórios, livros e correspondência?
Não me consta que houvessem apreendido livros, diários, ou quaisquer outros papéis com os guerrilheiros. Contudo, não descarto esta possibilidade, embora não tenha a menor ideia de onde estaria esse material.
O senhor conversou com alguns dos guerrilheiros presos? O que eles diziam? Mesmo presos, mantinham as convicções? Eram gente muito jovem? Estavam muito abatidos, famintos?
Ufa! É um borbotão de perguntas na mesma questão. De fato, conversei com alguns, em ocasiões diferentes e diversas. Eram todos jovens, abatidos, magros e com olhos profundos. Não estavam famintos, pois haviam sido alimentados pelos próprios militares. Nossa conversa, todas as vezes, foi a respeito de trivialidades. Era impossível um diálogo mais consistente a respeito da guerrilha, ou de assuntos políticos, posto que havia, sempre, a presença de um agente de informações. De mais a mais, os prisioneiros estavam constantemente assustados para falar algo mais sério. Não havia tempo para estabelecer com eles uma maior confiança. Eu era visto como inimigo.
Por que, na terceira campanha, foi tão fácil destruir a guerrilha do Araguaia? O que deu certo nessa campanha e o que ocorreu de errado nas duas primeiras?
O principal fator que estabeleceu a diferença entre a terceira campanha e as duas primeiras foi informação. O notável Sun Tsu, autor de A Arte da Guerra, já anunciava, há cerca de 600 anos antes de Cristo: “Antes de tudo, conhece o teu inimigo; sem conhecê-lo, a vitória não te sorrirá…” Este aspecto está bem explicado no Xambioá, bem como outros fatores que contribuíram para a destruição da guerrilha, todos ligados a medidas operacionais e que foram aprendidas com os erros das primeiras campanhas.
Como a presença dos comunistas foi descoberta: com a prisão do militante Pedro Albuquerque ou por confissão espontânea da militante Lúcia Regina de Souza Martins?
O Pedro Albuquerque, creio, foi o estudante preso no Ceará pela Polícia Federal, por volta de 1969 [ou 1971, segundo outras versões], e, sem dúvida, foi a chave para se descobrir o foco da guerrilha no Sul do Pará. Sobre a militante Lúcia Regina, nada sei. Aliás, diga-se de passagem, grande parte das perguntas feitas por você deveria ser dirigida a alguém da comunidade de informações. Como já me referi antes, não sei tudo e, pelo contrário, a muitas informações eu não tive acesso por razões óbvias.
A história de que pelo menos um agente foi infiltrado entre os guerrilheiros é contestada pelo PC do B. No seu romance, o agente Gabriel (Simplício) é infiltrado. É ficção pura ou baseada em fatos reais? Há suspeitas, na verdade, de que alguém do PC do B, quando preso, tenha colaborado com os militares. Isso procede? No depoimento à Comissão Externa os Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados, o senhor registra: “Alguns (agentes) com a missão de infiltrarem nos grupamentos guerrilheiros”.
A história do agente Gabriel, ou Simplício, é baseada em fatos reais. Agentes foram infiltrados na fase que antecedeu à terceira campanha. Naturalmente, a maneira pela qual narrei a participação do Gabriel, bem como do japonês Tanaka e de outras personagens, foi fruto da imaginação. Não estive na floresta com eles, não estava sequer em Xambioá, ou em Marabá, na época da Operação de Inteligência, uma vez que esta antecedeu à terceira campanha. Construí estas passagens baseado em relatos, ou fragmentos de relatos, que ouvia aqui e ali, durante minha estada na região. Conheci o japonês Tanaka, por exemplo, mas troquei com ele poucas palavras. O universo dele era diferente do meu.
Até hoje o PC do B considera João Carlos Campos Wisnesky, o Paulo, como delator e considera sua fuga muito estranha. Ele disse que fugiu porque os guerrilheiros não atacavam, só recuavam. Ele foi mesmo colaborador das Forças Armadas?
Sobre o João Carlos Wisnesky, o Paulo, nada posso adiantar. Opino, simplesmente, que durante a terceira campanha não soube de nenhum caso de delação por parte de guerrilheiros. Acredito que, se tivesse havido, eu tomaria conhecimento, pois o fato seria comentado na roda dos oficiais.
Há uma história de que Rosalindo de Souza, o Mundico, tenha sido justiçado pelo PC do B no Araguaia por que queria escapar da região. É a versão de um coronel que serviu no Centro de Informações do Exército (segundo a revista Veja). O relatório de Ângelo Arroyo garante que ele morreu quando manuseava sua arma, que disparou acidentalmente. O historiador Romualdo Pessoa apresenta outra versão. Mundico teria sido morto por um fazendeiro informante do general Antônio Bandeira quando procurava comida. O que sabe sobre essa história?
Igualmente, nada sei a respeito do Rosalindo de Souza. Não li o Relatório Arroyo. Saliento que escrevi o Xambioá consultando apenas a memória. Não me baseei em nenhuma publicação sobre o assunto. Somente depois que o livro fora lançado é que me chegaram às mãos algum material que, eventualmente, poderia ter sido útil na construção do Xambioá. Entre estes, por exemplo, cito a publicação História Imediata: A Guerrilha do Araguaia, escrita por Palmério Dória e outros. Recebi um exemplar, no dia 19 de maio de 1994, com a dedicatória de Mário Lúcio Franco, um primo que mora em Belo Horizonte e que é um pesquisador dos assuntos do Araguaia.
Quem coordenou a operação de desenterrar e queimar os corpos dos guerrilheiros?
Não é o caso de se citar nomes. A operação foi coordenada pelo pessoal de informações que, de resto, coordenou todas as demais ações na área.
O senhor voltaria à Serra das Andorinhas?
Estou pronto para voltar à Serra das Andorinhas, no momento em que for solicitado. Não entendo por que se deu tanta ênfase às declarações infundadas do Vanu, as quais resultaram em escavações inúteis na área do DNER, em Marabá (Casa Azul).
Qual o número de militares utilizados no combate à Guerrilha do Araguaia?
Não tenho elementos para fornecer este tipo de informação. Os efetivos na região variaram muito nas diversas fases e nas diversas ocasiões. As equipes de combatentes eram substituídas com frequência.
Por que ninguém nas Forças Armadas apoiou publicamente o senhor, quando lançou o livro?
De fato, não obtive apoio público de nenhum dos meus companheiros de farda. Todavia, recebi inúmeros telefonemas e algumas cartas de solidariedade. Entre estas manifestações, cito as palavras do tenente-brigadeiro Murillo Santos: “Pedro, as pessoas que estão falando mal de você falam porque não leram o seu livro. Estão se baseando no noticiário sensacionalista da revista Veja. Li o seu livro, gostei muito e falei com o Lobo (tenente-brigadeiro, ministro da Aeronáutica) para ler e recomendá-lo à tropa”.
O senhor e o historiador Romualdo Pessoa (autor de “Guerrilha do Araguaia — A Esquerda em Armas”) discordam num ponto. O senhor diz que, depois de preso, nenhum guerrilheiro saiu vivo da terceira campanha. O professor Romualdo escreve: “O ex-soldado José dos Santos Aniká, que serviu na base militar de Clevelândia do Norte (AP), também afirmou que Dina foi capturada e levada com vida para o Rio de Janeiro: ‘Todo mundo no Exército comemorou sua prisão, porque ela tinha acertado com um tiro de garrucha a boca de um oficial. Era temida por todos”’. O que há de verdade nisso?
Repito: ninguém escapou vivo do Araguaia, a não ser o (Ângelo) Arroyo [Zenóbio no romance Xambioá]. O relato do soldado mencionado é completamente sem fundamento.
É verdade que recebeu ameaças por ter publicado o livro? Que tipo de ameaça?
Recebi, na época de lançamento do livro, inúmeras ameaças por telefone e algumas por carta. Estas, eu as tenho guardadas. Eram ameaças de morte a mim e a minha família, terrorismo psicológico que nos deixou bastante abalados. No auge do problema, deixei de comparecer a uma entrevista no Jô, Onze e Meia por absoluta falta de segurança. Um amigo meu, o Roberto Parreira, hoje chefe do gabinete do vice-presidente Marco Maciel, me disse: “Fica tranquilo, Pedro, se eles o matarem, a Lysia vai ficar rica, pois o ‘Xambioá’ vai estourar como o maior best-seller de todos os tempos”. Um grande humor esse do Parreira.
O romance-memória ‘Xambioá — Guerrilha do Araguaia’ parece inconcluso, à espera de uma sequência. O senhor pretende escrever outro livro?
Não sei se me disporia a escrever novamente sobre o Araguaia. Incorporei outros valores, nos últimos anos, e, agora, tenho escrito coisas que nada têm a ver com a violência, com a tortura, ou com as injustiças cometidas nos anos de chumbo. Aceitei o reinado absoluto de Jesus na minha vida e tornei-me uma nova criatura. Meus escritos, hoje, dizem respeito ao imenso e incomensurável amor do Senhor por todos nós pecadores. Estou escrevendo um livro sobre as Escrituras Sagradas cujo título provisório é: Histórias das Histórias da Bíblia.
Algum cineasta já se interessou em adaptar o livro para o cinema?
Sobre o projeto de transformar o Xambioá em um filme, adianto-lhe que há conversações neste sentido. Existem cineastas interessados, e um profissional já está trabalhando no roteiro. Penso que estamos em tempo de mostrar aos brasileiros, por todos os meios, os episódios escusos da nossa história.
Inicialmente, a esquerda recebeu seu livro com desconfiança. Agora, ele já é aceito como verdadeiro. Mas a irritação nas Forças Armadas foi intensa.
Julgo natural a desconfiança inicial das esquerdas. Contudo, as pesquisas sobre a Guerrilha do Araguaia estão demonstrando que o Xambioá é um livro não apenas verdadeiro, mas, sobretudo, que foi escrito com a alma e com o mais elevado espírito de brasilidade.
Por que o senhor escolheu uma espécie de romance-memória para dar forma ao seu livro-denúncia? O livro vendeu bem? O senhor ganhou dinheiro?
A forma literária teve por objetivo preencher os claros da memória, principalmente no que respeita aos nomes das pessoas. Creio que em termos de Brasil o meu livro vendeu bem, cerca de 12 mil exemplares. Acredito, também, que o lançamento do filme alavancará a vendagem do livro. Se ganhei dinheiro? Não posso dizer que não, mas o motivo de ter escrito o Xambioá nunca foi dinheiro, apenas idealismo e vontade de pôr para fora algo que me incomodava muito.
Os médicos que reanimavam torturados eram do Exército?
Eram militares. Ponto final.
Para o senhor, qual é a grande questão que falta ser respondida sobre a Guerrilha do Araguaia?
Penso que não se trata de responder a uma grande questão, mas, sim, que as FFAA coloquem para fora de seus arquivos tudo sobre a Guerrilha do Araguaia. E não só isso, oro sempre para que outros militares que participaram daquela guerra suja se disponham a contar tudo o que sabem. Que o Curió conte a verdade, se arrependa de seus pecados e peça perdão a Deus pelas barbaridades que cometeu.