Machado de Assis é Deus. Guimarães Rosa é Jesus Cristo. Graciliano Ramos, meu escritor patropi preferido, é o anjo Gabriel? Não sei. Só sei, se sei, que o Velho Graça é um escritor maravilhoso, que leio e releio com imenso prazer. Aliás, quando se trata do alagoano, não há releitura — só leitura. Porque, a cada leitura, seus romances, contos e memórias mudam os leitores e, lendo, os leitores “mudam” sua literatura.

Os romances (e talvez os contos) de Graciliano Ramos sugerem que quase tudo na realidade está “fora” do lugar — com seus desarranjos sociais e linguagens enviesadas. Mas o leitor percebe que na sua literatura não há nada — ou quase nada — fora do lugar.

A literatura de Graciliano Ramos não envelhece. Porque, exatamente, não sei. Imagino que tenha a ver com o fato de que escrevia muito bem, de maneira precisa e contida, sem excessos cortáveis. Mas há uma cosita que talvez seja crucial: não há melodrama nos dramas contados pelo autor de “Vidas Secas”, “Angústia” e “São Bernardo”. Se não é o autor da descoberta de que era possível narrar os piores dramas humanos sem apelar ao sentimentalismo mais vulgar, soube gestar uma espécie de secura que, produzindo realismo absoluto, é literatura de primeira qualidade. Suas histórias e linguagem parecem “grudar” nos nossos olhos — tal a intensidade e vibração (que, mesmo discreta, é vibração).

A prosa de Graciliano Ramos nunca é entretenimento barato. Não há adornos. A tristeza mostra, mais do que demonstra. Não busca lágrimas, e sim entendimento amplo das vidas exibidas e narradas. Parece reportagem? Não. Porque aos repórteres falta, na maioria das vezes, imaginação literária, não aquela que “falsifica” — ou puramente mimetiza —, e sim a que, ao contar bem e com palavras precisas, gera mais objetividade e, portanto, entendimento. A literatura de Graciliano Ramos torna a realidade mais real, digamos. Mas sem deixar de ser, sobretudo, grande literatura. Não choca pelo excesso — pela exibição do discurso —, e sim pela precisão milimétrica.

Na terça-feira, 26, li no “Estadão” a reportagem “Graciliano Ramos em domínio público: família entrega os pontos e editoras revelam primeiros livros”, assinada por Maria Fernandes Rodrigues.

Li, com prazer, a notícia de que a Record vendeu 4,5 milhões de exemplares da obra de Graciliano Ramos. “Vidas Secas”, o romance que mais amo, vendeu quase 2 milhões de exemplares. É uma maravilha e isto prova que o Brasil deu certo. Muito certo. É de primeira linha uma civilização que tem Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego (um autor de segunda que adoro, por causa de “Menino do Engenho”, um livro belo e delicado), Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Ana Maria Gonçalves (Graciliano Ramos, se tivesse lido “Um Defeito de Cor”, certamente diria: “Extraordinário”, sem exclamação), Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Yêda Schmaltz.

Entusiasmou-me saber que a Companhia das Letras e a Todavia preparam edições de “Angústia”, “Vidas Secas” e “São Bernardo”. Porque são duas editoras que realmente levam a sério a arte de publicar livros. Especialista em Graciliano Ramos, Thiago Mio Salla vai coordenar as edições da Todavia. Assim como meus gatos Filomena, Josephina, Serafim, Miguilim-Chaveiro e Dolores-Arlequina e meus cachorros Sartoris (de quase 15 anos, cego, como Homero), João Fidelis e Eduarda-Maria, não aprecio foguetes. Mas, cá entre nós, há foguetes imaginários. Então, soltei dois — e daqueles bem barulhentos — em homenagem às novas edições do Velho Graça.

“S. Bernardo”, de Graciliano Ramos

Como a obra de Graciliano Ramos caiu em domínio público, a Editora Record perdeu a primazia de editá-la.

Mas, de acordo com o “Estadão”, a Record pôs nas livrarias “um box para colecionador contendo” os “três romances conhecidos” de Graciliano Ramos: “Angústia”, “Vidas Secas” e “São Bernardo”. Já me vejo no caixa de uma livraria… alegre, não por gastar, e sim por levar para casa novas edições das obras do mestre genial. Tais edições contêm prefácios de Silviano Santiago, Hermenegildo Bastos e Godofredo de Oliveira Neto. Um texto inédito de Ivan Marques, conta Maria Fernanda Rodrigues, recolhe “histórias da composição dos livros e suas principais características literárias”. Em suma, néctar dos deuses.

A família de Graciliano Ramos está reclamando, alegando que as editoras vão ganhar, mas não o público. Ora, é um equívoco. Com mais livros no mercado, com edições de qualidade, a obra do Velho Graça vai se tornar ainda mais conhecida e lida.

A obra de Graciliano Ramos cai em domínio público exatamente na segunda-feira, 1º de janeiro. Alvíssaras. O ano de 2024 começa bem — muito bem.

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