O volante que parou e provocou expulsão de Pelé
08 julho 2014 às 22h09
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Piazza não deixou o Rei jogar e provocou sua expulsão. Clodoaldo era craque. Falcão talvez tenha sido o maior volante brasileiro
“Os 11 Maiores Volantes do Futebol Brasileiro” (Contexto, 255 páginas), do jornalista Sidney Garambone, é um livro divertido, inteligente e bem escrito. Mas comete um erro imperdoável: inclui Dunga. Como se trata de uma escolha equivocada — o jogador teria sido decisivo na conquista da Copa do Mundo de 1994 —, o autor e os aliados de Dunga, como o amigo Taffarel, passam o capítulo 9 inteiro tentando justificá-la. Sem conseguir. “Dunga é destruição, antijogo”, metralha o ex-goleiro e técnico Leão. “Nunca passou de um Caçapava com ABS e vidro elétrico [leia-se sorte e liderança]”, bombardeia o jornalista Renato Maurício Prado. Perdoemos Garambone, pois, como disse a personagem do filme “Quanto mais quente melhor”, de Billy Wilder, “ninguém é perfeito” (só Pelé e Proust). Sobretudo, o escriba deve ser desculpado por incluir volantes de categoria incontestável, como Zito, Dino Sani, Dudu, Piazza, Andrade, Clodoaldo, Toninho Cerezo e, especialmente, Falcão. Este talvez tenha sido o maior volante da história do futebol brasileiro. O Pelé dos volantes.
Na década de 1970, acompanhava os jogos de futebol pelo rádio (os narradores Waldir Amaral e Jorge Curi eram maravilhosos – quase “jogavam”) e, durante a Copa do Mundo no México, pela tevê (preto e branco). Apaixonado por futebol (era bom atacante), lia tudo que saía nas revistas, como “Manchete”, “Veja” e “Placar” (cheguei a colecioná-la). A Copa de 70, quando eu tinha 9 anos, foi a primeira a me empolgar. Vi todos os jogos da seleção. Como a maioria dos brasileiros, acompanhava com prazer as jogadas do quinteto Pelé, Tostão, Gérson, Jairzinho e Rivellino. Eram os craques. Os outros? Como diz a palavra, eram os “outros”, seres quase invisíveis. Ainda menino, pensava diferente e gostava de ver o estilo sereno e firme de Piazza e Clodoaldo.
Wilson da Silva Piazza jogava como volante no Cruzeiro e como zagueiro na seleção que ganhou a Copa de 70.
Em 1966, duas “seleções” se enfrentaram, em Belo Horizonte e em São Paulo, na decisão da Taça Brasil. De um lado, o Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes e Piazza. De outro, o Santos de Pelé, Zito e Pepe — o maior time de todos os tempos. Hors concours.
Mineiros devem ter feito alguma reza brava, pois o plebeu Piazza colou em Pelé e não o deixou jogar. Enquanto o Rei mal tocava na bola, irritado com as antecipações do volante, Dirceu Lopes e Tostão davam show. “Naquele dia, Piazza não deixou Pelé entrar em campo”, escreve Garambone. Piazza teoriza: “Um jogador desse, tão cheio de recursos, você precisa se antecipar, chegar junto e não deixar de maneira alguma dominar a bola”. Pelé acabou expulso, pois perdeu a cabeça e chutou Piazza, que estava caído. O Santos perdeu por 6 a 2. Verdadeiro milagre.
Na revanche, no Pacaembu, o Santos começou ganhando por 2 a 0 e perdeu por 3 a 2. Levou um banho de bola da turma de Dirceu Lopes e Tostão, protegidos de Piazza.
Qual era o segredo de Piazza? O jornalista Henrique Ribeiro sugere: “Suas maiores características eram o posicionamento, o desarme e a antevisão das jogadas. Sempre chegava antes numa dividida, dava segurança ao meio de campo e à defesa”. O ex-goleiro e comentarista esportivo Raul Plassmann aponta três segredos de Piazza na marcação cerrada a Pelé: “Força para chegar junto, sem fazer falta, porém antecipando-se ao Rei. Velocidade para não deixar Pelé virar ou pensar muito em alguma jogada genial. E inteligência para cercar quando era preciso e, principalmente, não deixar a bola chegar limpa até ele”.
Na Copa de 70, Zagallo transferiu Piazza para a zaga. Seguro, “desarmava como poucos”, deu tranquilidade aos atacantes e ao meio de campo. Time que tem zaga sólida, protegida por um volante como Clodoaldo, ataca com tranquilidade. Pelé, Tostão e Jairzinho, apoiados pelo vigor físico de Piazza e Clodoaldo, não precisavam voltar a todo momento e, por isso, estavam quase sempre descansados para atacar.
O volante Clodoaldo, o Corró, foi uma das grandes estrelas do Santos no tempo de Pelé. Era uma estrela, mas pouco luminosa, por conta de sua modéstia. “Clodoaldo tem que estar em qualquer lista”, diz Falcão. “Não me lembro de ter visto Clodoaldo perder uma dividida”, afirma o jornalista Odir Cunha. “Do meio para trás, ninguém foi melhor que Clodoaldo”, atesta Pepe.
Em 1970, Zagallo deu a camisa 5 para Clodoaldo e pôs Piazza na zaga. Por quê? Porque, na posição, Corró era superior ao jogador do Cruzeiro. Diferentemente de muitos volantes, Clodoaldo desarmava com habilidade, apoiava os jogadores do meio de campo e ataque com destreza, e tinha um pulmão de aço.
Na Copa de 70, o jogo mais difícil não foi a final contra a Itália, e sim a batalha contra o arqui-inimigo Uruguai. “Se não fosse ele [Clodoaldo], não sei se venceríamos aquele jogo dificílimo”, acha o jornalista Milton Neves.
Time duro, o Uruguai logo fez 1 a 0. Zagallo relata: “Olhei para o banco e quando olhei novamente a partida, lá estava Clodoaldo no campo de ataque. De repente, invade a área e empata aos 44 minutos do primeiro tempo. Ainda bem que não o tirei!” O técnico queria substitui-lo para tornar o time mais ofensivo. A explicação de Clodoaldo: “A minha preocupação maior era fazer a cobertura quando nossos laterais avançavam. Mas logo percebemos que os uruguaios estavam conseguindo marcar Gérson de tal forma que o Canhotinha não concluía seus famosos lançamentos, uma das nossas armas secretas. Lembro que passei a avançar, mais do que o normal, para ajudar o Gérson”.
Garambone conta muito bem a história de uma grande jogada de Clodoaldo. O Brasil, na final, ganhava de 3 a 1 da Itália. “Quatro jogadores cercam o volante, na intermediária do Brasil. Tensão. Suspense. Perder a bola ali era suicídio. [Clodoaldo] Ficou sassaricando com a bola, driblando todos os italianos, numa espécie de roda de bobo às avessas, com o bobo de posse da bola, fazendo de tolinhos os que o cercavam. Oito toques mágicos.”
“Mas engana-se quem acha que eu estava muito tranquilo nesta hora. Sentia-me pressionado ali, com aquele monte de italianos saindo para fazer o abafa em cima de mim. Nem se fala se eu perco a bola!”, revela Clodoaldo. Corró passou a bola para Rivellino, que esticou para Jairzinho, que lançou Pelé, que transferiu para Carlos Alberto, que fez um golaço. 4 a 1.
Sobre Falcão, a palavra de Dino Sani, um dos maiores volantes de todos os tempos, diz tudo: “Falcão é espetacular, um jogador completo, talvez o melhor de todos nós”. Garambone escreve: “Adorava desarmar, armar e ainda concluir. Tudo numa jogada só. E não deixava buraco atrás”. Era tão bom jogador, e tão disciplinado taticamente, mas sempre capaz de surpreender — por exemplo, marcando gols de cabeça (tem 1,91m) —, que Hugo Amorim, colunista do “Zero Hora”, escreveu: “Falcão não é um jogador brasileiro, é um jogador holandês”. Dedicado, corria o campo todo e não se cansava. Não fosse jogador, teria sido velocista.
Depois de se destacar no Internacional de Porto Alegre, Falcão foi para a Roma, da Itália. Tornou-se “Rei de Roma”, título dado pelos torcedores e jornais. A Roma, que não ganhava o campeonato italiano há décadas, tornou-se campeã inconteste, em 1983, graças ao futebol de Falcão. Italianos disseram para Falcão: “Queremos show, firula”. Ele divergiu: “Não vim aqui para isso. Vim para ser campeão”.
Falcão tinha tudo para se tornar o Pelé branco na Copa de 1982, pois jogou ao lado de craques como Cerezo, Sócrates e Zico. Fizeram uma grande copa, jogando o fino, por música, mas perderam a final para a Itália. De 1982 em diante, o futebol-arte quase foi banido do Brasil. Mas a história fez justiça: a seleção de 1982 era quase tão boa quanto a de 1970 e graças, em grande parte, ao classudo Falcão.
Paulo Cesar Carpegiani, agora treinador do Atlético Paranaense, tido como volante — ele se diz “meia de ligação”, ou “ponta de lança” —, aponta Falcão como um dos maiores volantes de todos os tempos. “Não se fixava à frente da zaga. Paulo era um cara completo. E por isso, eu mesmo tinha que me policiar, pois, quando ele saía, eu ficava de volante, cobrindo seus avanços. Dava a impressão, às vezes, que ele era um meia-armador, tal a facilidade em criar e distribuir as jogadas lá na frente. (…) Sabia marcar como poucos, carregava uma noção de posicionamento absurda, era inteligente e possuía uma visão de jogo que facilitava a vida dos companheiros. Além do mais, batia bem com as duas pernas, cabeceava perfeitamente. Enfim, um craque completo. Uma exceção como volante. Incomparável. Você pode ver que até hoje é lembrado”, disserta Carpegiani.
[Texto publicado na edição de 6 a 12 de junho de 2010 do Jornal Opção]